Por Aldisio Filgueiras
Nada em Manaus consegue existir mais que 30 anos. O Bar do Armando nasceu com esse prazo de validade. Desconsiderada a sua data de fundação, nos anos 1970, como mercearia Nossa Senhora Sei lá das Quantas, em um prédio alugado à Ordem dos Capuchinhos, criou fama nos 25 anos em que durou a ditadura civil-militar que nunca teve muitas queixas da cidade, tempo suficiente para que se fundasse ali uma das mais famosas e prestigiadas bandas carnavalescas, a Banda Independente Confraria do Armando (BICA).
Os religiosos jamais imaginariam o que aconteceria ali na sua vizinhança, quando o simples comércio varejista de secos e molhados nos próximos anos, quando o mercado orientou a oferta e a procura para os produtos “molhados”, preferivelmente gelados e o exercício de se falar mal de Deus e o mundo.
Não à toa: adaptado para a venda em pequena escala, a antiga construção, de pé direito alto não seria capaz de resistir ao calor que cresce à proporção que se expande e o aumenta o público de jornalistas, artistas de todas as expressões e perversões – cantores, poetas, compositores e mais quem tinha algo a dizer para uma audiência eu não era lá tão grande, mas bastante barulhenta era se impor; logo a calçada precisou ser ocupada por cadeiras, que exigiram também um pedaço do asfalto da rua 10 de Julho, com a visão privilegiada da praça São Sebastião e do Teatro Amazonas, cujo entorno fora transformado em estacionamento, porque Manaus não foi construída para automóveis: a cidade se urbanizou com feição europeia do século 19, como centro administrativo da produção da borracha, que era exportada para produzir pneus e não se pensava que voltasse montada em quatro rodas.
Foi uma dificuldade desmontar esse estacionamento, pois patrimônio histórico na capital amazonense é um conceito pós-moderno e o automóvel e outros automotivos continuam ditando as regras de urbanismo a cidade, embora esses meios de transporte não tenham e jamais tiveram por onde circular na Paris dos Trópicos.
Manaus era uma franquia urbana europeia para se viver do dinheiro da borracha e isso não durou, também, mais que 30 anos. Tombamento em Manaus significa derrubar, literalmente, e o pedestre, o cidadão a pé, estão em face de extinção nas ruas.
A fama do Bar do Armando viveu o momento tardio em que além de compra, venda e troca administradas por atrás do balcão, também havia um comércio de ideias em Manaus, hoje completamente falido e sem crédito na praça.
Em plena ditadura de civis e militares, a ex-mercearia tornou-se um centro de compra, troca e venda de ideias, energizado pela cerveja sempre bem gelada e pelo sanduíche de pernil impecável.
No bar, desmontavam-se sistemas filosóficos; derrubavam-se ditaduras (embora, no outro dia, na tortura da ressaca, continuassem de pé e autoritárias, como se nada tivesse acontecido); criticavam-se os governos populistas, que agiam com a mesma visão administrativa dos seringalistas falidos.
O Bar do Armando era uma universidade livre, muito mais verdadeira do que as poucas faculdades que formavam servidores para a máquina do novo regime extrativista, inaugurado com a implantação da Zona Franca. Era o point da cidade, dos que iam para um bar conversar e não divulgar em smartphones sobre quem come quem e cheira o quê. Falava-se de livros que acabavam de ser ou estavam sendo editados.
Um bar de ideias ecumênicas, cumpria sua função dentro de uma cidade que fora construída para a convivência, embora a explosão demográfica e a favelização que se iniciavam já conspirassem para o soterramento desse espaço de cidadania.
A revitalização do Largo de São Sebastião chegou tarde demais. Ele ficará, se não o demolirem para “resgatar” o estacionamento, como um pedaço da Manaus que jamais será restaurada: não tem prefeito que dê jeito.
As faculdades da universidade federal foram encurraladas em um campus, na Zona Leste da cidade, a quilômetros de engarrafamento do Bar do Armando; as faculdades do ensino privado estão localizadas tão distantes umas das outras, que só podem ser contadas ou conectadas por WhatsApp, Facebook e outros meios que só admitem 140 caracteres de escrita, para não provocar acidente vascular cerebral em seus operadores.
O Bar do Armando se inscreve hoje naquela categoria de herança cultural, de que se tem apenas uma lembrança – enquanto não desaparecer a geração que lembra – e um ponto histórico para o turista que chega e sai sem saber exatamente do que se trata. Neste momento, o Bar do Armando, tombado como patrimônio imaterial (como um prédio pode ser imaterial?) está sob ameaça de despejo.
Pode ser uma premonição: o bar vai mudar de lugar – como uma tradição pode mudar de lugar? A boemia bebe para esquecer que já não existe boemia e as ideias continuam mais curtas. Pode ser que se esteja inventando uma tradição de outros 30 anos. Todo dia é dia de se inventar uma tradição. A imprensa não cansa de festejar restaurantes e famílias que “já” têm 15 anos de tradição em Manaus.
Aos nativos sobreviventes (os que suportarem mais 30 anos e não apenas 15) permanece o estigma de Manaus, a da cidade “que já teve”. Manaus já teve o Bar do Armando. A igreja talvez fixe ali um centro de alcoólatras anônimos e continuará a realizar casamentos, missas de finado e outros rituais sem a intromissão mundana das Banda da Bica, que tem mais foliões do que tem fiéis nos domingos de missa da igreja. Se a franquia “Bar do Armando” se estabelecer em outro lugar, precisará criar o estatuto de uma nova tradição, com fôlego para mais 30 anos. E com um carisma, como o tinha seu antigo dono, difícil de se replicar.
N.R.: Aldisio Filgueiras é poeta, jornalista, membro da Academia Amazonense de Letras e amante da cidade que já teve