Por Joaquim Ferreira dos Santos
Ele, evidentemente, já se esqueceu. Coisas do Underberg. Mas a verdade histórica é que eu conheci Jaguar no Cabaré dos Bandidos, em Caixas, algo ocorrido lá pelos idos de 1977. A primeira guitarra de Lennon e McCartney em Liverpool ou a primeira troca de bola de Pelé com Coutinho no Santos, todas essas tabelinhas foram encontros bem mais emblemáticos para explicar o século passado. Mas o encontro de Joaquim e Jaguar, a dupla J&J, não deixa de ser curioso pela sua absoluta improbabilidade.
Das canas eu não conheço muita coisa além daquelas que via na prateleira do armazém do meu pai, na Vila da Penha. Aos meus olhinhos infantis, feito os olhos do bandido no bolero do Chico, vibrava especialmente uma, cheia de varetinhas dentro, chamada catuaba. Mas, sem querer exagerar ainda mais na patetice que me permeia a alma, não sou chegado. Sóbrio por vocação, destino e desgraça, como o também Nelson Rodrigues. Andei, confesso, entornando umas batidas no Tangará, na Cinelândia, mas era só para fugir do plantão da redação da Abril, ali no prédio da Mesbla. Uma vez coloquei o lead no pé da pirâmide invertida. Meu chefe, Alessandro Porro, percebeu que era porre, deu um esporro e me mostrou que o sobrenome pode trazer rima e solução. Nunca mais. Sóbrio forever.
Por isso, e antes que este prefácio comece a ter mais curvas que um papo de bêbado, eu insisto: conheci Jaguar no Cabaré dos Bandidos e comemos, sem couvert e sem malícia, uns pedaços de cobra no boteco de uma senhora. Jaguar escrevia o BIP, a Busca Insaciável do Prazer, para o Pasquim; eu era repórter da Veja anotando suas façanhas pela baixa gastronomia. Acho que tomei um chope, acho que Jaguar tomou um conhaque. O mundo, sábio, tomou seu rumo. Fomos, na hora do almoço, comer uma feijoada num boteco mais adiante. Ô homem insaciável!
Rubem Braga e Joel Silveira foram enviados aos Balcãs para cobrir a Grande Guerra. Jaguar é o nosso enviado especial aos balcões. Não recebeu nenhuma pauta, nenhuma ordem do Assis Chateaubriand. Simplesmente gosta. É um milagre que ele tenha sobrevivido a tamanho roteiro de comilanças e porres. Ficou apenas com uns calos no cotovelo de tanto beber em pé, debruçado no mármore dos tais balcões. Mas valeu a pena. É um milagre, insisto, coisa de quem oferece o primeiro trago ao Santo, que Jaguar não tenha esquecido de tudo depois de ter provado até o banadrink, um uísque com banana fabricado em Itaguaí. Passo a palavra ao próprio: “É inacreditável como meu fígado não se desintegrou.”
Este despretensioso roteiro de pés-sujos, e outros nem tanto, que ora se lhes apresenta em mãos, preenche mais uma daquelas lacunas lamentáveis na falta de memória carioca. Apicius e danúsias já fizeram a crônica dos antiquarius e quadrifólios. Mas quem mais poderia sentar e escrever, com palavras redondas feito os tremoços do Bracarense, o humor fino como as lascas de presunto do Paladino, quem mais poderia escrever uma ode à moela do Bar do Costa, em Vila Isabel? Jaguar já bebeu com Madame Satã na Casa da Cachaça, na Mem de Sá. Se bobear uma sílfide daquelas já desceu do afresco do Nilton Bravo na adega Flor de Coimbra e, enfeitiçada pelo charme do nosso enviado, tomou com ele um traçado de conhaque e quinado Dubar.
Você deve conhecer aquela piada do garçom recolhendo o guarda-chuva no final do dia e balançando a cabeça, compreensivo: “Coitados, eles bebem para esquecer”. Jaguar diz que, na época em que frequentou o Paulistinha, conheceu o Timbira, cupincha e fiel escudeiro de Noel Rosa. Timbira, quase sempre bêbado, às vezes também esquecia a perna artificial no táxi (felizmente, os motoristas sempre devolviam no dia seguinte). Pois bem, por mais histórias que o nosso Jaguar tenha esquecido por aí, o repertório que guardou é valioso. De uma noite no Petisco da Vila, por exemplo, regalando-se com croquetes de carne, ele anotou de Perna, bamba do bairro, a frase que Confúcio assinaria: barata não atravessa galinheiro.
O livro de Jaguar, prenhe ainda de seus cartuns geniais (ele traçou Steinberg com Steinhager), é como o fabuloso acervo da Família Geyer. Esses pintores estrangeiros, em visita ao Rio logo após o descobrimento, mostram o paraíso que destruiríamos com o passar dos séculos. O Rio dos bares folclóricos, com ovo cor-de-rosa e mesas em que Pixinguinha compunha choros clássicos, também está tomando a saideira. Você sabia, é Jaguar quem alerta depois de ter dado um rolé na Bangladesh, aquelas ruas ao redor da Central do Brasil, você sabia que o Rio não tem mais boteco com serragem no chão? Urge um Patrimônio Histórico nessas denúncias. Depois do Corredor Cultural, com tão bons resultados na recuperação de prédios no Centro, a prefeitura devia instituir o Bebedor Cultural para preservar os bares. E colocar Jaguar, rápido, nesse balcão.
(Prefácio do livro “De Bar em Bar: Confesso que bebi”, do cartunista Jaguar, publicado pela Record em 2001)