Por Mário Adolfo (*)
Em julho de 1988, Armando, Lourdes, Ana Cláudia, Ana Lúcia, cachorros, gatos e papagaios resolveram matar as saudades da terrinha e viajaram para Portugal na maior cara-de-pau. De uma hora pra outra, deixaram os biqueiros num mato sem cachorro. Mais perdido do que cachorro quando cai do caminhão de mudança, só me restou fazer o relato abaixo, publicado no jornal Amazonas em Tempo, no dia 14 de agosto de 1988.
Andam sussurrando pelas alcovas que o Bar do Armando vai continuar fechado, mesmo quando o doce portuga voltar de “Além-mares”, onde há um mês e meio tem saboreado avelãs regadas a vinho do Porto, nos deixando aqui, num calor de 30 graus, com saudades de sua Antarctica “estupidamente gelada” e de seu “Cheese Porco”, único em todo o mundo.
A notícia não agradou nem a gregos e, muito menos, a troianos.
O que anda rolando na cabeça dos boêmios amazonenses é que os capuchinhos, proprietários do espaço (eu falei do espaço, o bar é nosso!) onde funciona o boteco, aproveitaram a saída do Armando, que foi abraçar seus patrícios, para puxar o seu tapete, aliás o nosso tapete, porque a decisão também sacaneia a gente, que já está há quase dois meses rolando desamparados por bares que não estão preparados para receber fauna tão seleta.
Durante seus quase 20 anos, esta foi a primeira vez que o Bar do Armando fechou.
– Bar do Armando não, olha a intimidade! O nome correto é Mercearia Nossa Senhora de Nazaré! – protestou certa vez o professor Ademir Ramos, fiel adepto da Pastoral Erótica.
– Mas um bar onde bebe tanto comunista ateu, como é que pode ter o nome de santa? – questionava na última Semana Santa a fiel escudeira dos jornalistas, Marluce Accioly, ao que o irreverente poeta Simão Pessoa “nefasta” respondia:
– Coisa de português, Marluce. Coisa de português… Cala a boca e continua bebendo!
Na primeira noite que demos com o peito nas portas fechadas do velho casarão da Rua 10 de Julho foi um “deus-nos-acuda”.
Rogelio Casado ensaiou um rabo-de-cavalo na sua vasta e negra cabeleira, colocou o capacete de motoqueiro no chão e, depois de ajustar a mochila, sentenciou:
– Vamos mandar comprar um isopor, gelo, uma grade de cerveja e vamos beber aqui, na sarjeta. O que você acha da idéia, Mário Adolfo?…
– Coisa de louco, Rogelio!… Coisa de louco!
O fotógrafo Carlos Dias, que naquele dia podia esticar até mais tarde – a Eleonora havia viajado pela Funai para cobrir uma assembléia de índios em São Gabriel – comprovou mais uma vez porque é chamado de McGiven.
– Tenho um canivete suíço que abre o cadeado!
Mas não deu certo. O português é vivo e deixou o garçom Marcha Lenta lá dentro, dormindo em cima da frisa com aquele facão que corta o porco nas mãos.
Deocleciano Souza coçou seu longo narigão vermelho e pôs em prática suas táticas sindicais:
– Seguinte, companheiros. Não tem Armando, não tem cerveja. Vamos fazer greve. Enquanto o Armando não abrir ninguém toma cerveja. Aprovado?…
– Aprovado, companheiros! – responderam todos.
Mas a estratégia também não deu certo.
Duas horas depois pegaram o jornalista Inácio Oliveira, Simão Pessoa, o fotógrafo-cinegrafista Isaac Amorim, juntamente com o autor da proposta, furando a greve no Bar Construção.
– Já que ninguém consegue ficar sem beber, vamos então protestar fazendo greve de fome – propôs o jornalista Sebastião Assante, que anda meio gordinho e está a fim de fazer um regime.
– Boa idéia! – gritou Aníbal Beça, por motivos óbvios.
Mas não durou muito o protesto. Soube-se que o Marcha Lenta estava passando por baixo da porta um restinho de salame e queijo bola que dona Lourdes deixou no cofre.
No meio daquela zorra toda, ouve-se tocar o telefone dentro da Livraria Nacional:
– Trrrrimmmmmmmm!!!!!
– Alô! – atende o Zé Maria Beija-Flor, dono da livraria, que atinge em cheio a massa: mussarela, espaguete, papaguara….
– Quero falar com alguém do Bar do Armando! – intimou a voz do outro lado.
– É pra vocês! – gritou o Zé.
E depois completou:
– É uma voz baixinha.
– Deve ser o Rosendo! – concluiu.
Foi o Deco, o eleito para atender:
– Alô, Rosendo, o que tu queres, pô?…
– Que horas abre a droga desse bar?
– Só quando o português voltar de Portugal, daqui a dois meses!
– Eu quero que abra agora! E avisa que eu sou comunista ortodoxo. Manda aproveitar que eu estou calmo!
– Aguenta o Armando voltar, daí você entra.
– Pó Deco… Eu não quero entrar. Eu quero é sair!!!!
O Bar do Armando não pode fechar. Está dentro de cada um de nós. Assim como o bar Esperança estava pra aquele tipo de Carvana.
As nossas sextas-feiras estão vazias.
Nesses quase dois meses já rolamos de bar em bar em busca de alguma coisa parecida com o boteco do português.
– Não existe nada igual. Aquilo lá parece que é festa todo dia! – definiu George Cúrcio, certa vez, quando deixávamos o Amazonas em Tempo a caminho da noite.
Todos nós estamos condicionados ao nosso bar.
Minha mulher, certo dia, não suportou a minha fossa e assou um pernil, num desses domingos sem ressaca (sem o Bar do Armando, não tem ressaca). Teresa caprichou, mas… “Não adianta, Tê. Nem se compara com o pernil de dona Lourdes”.
O artista plástico Arnaldo Garcez, que quase mora no Bar do Armando e de lá só sai para tomar banho (“em bar de português não tem chuveiro”, disse-me certa vez) está tão condicionado que, nas andanças por outros bares, não consegue fazer pipi:
– Huuummmmmmmmmm!!!
Espreme-se, espreme-se, mas não sai o derivado da cerveja.
– Não adianta, Mário Adolfo. Eu não consigo mijar em banheiro limpo!!!
Não é só o bar, com suas mesas antigas, seu barulho ensurdecedor e sua sarjeta alagada de lama que faz falta.
O português também faz. Porque é um cara bonachão e tão gozador quanto seus eternos fregueses.
Isso, é claro, quando ele não está de mau humor, brigando com dona Lourdes.
Nós, da BICA (Banda Independente da Confraria do Armando, para os ignorantes), não vemos a hora de o português chegar e reabrir o nosso bar, com ordem vinda do Vaticano, para os capuchinhos entregarem o espaço para a comunidade etílica:
“ENTREGUEM BAR PT NÃO AGUENTO PRESSÃO VG TEM CHATO CHAMADO ALDISIO FILGUEIRAS VG QUE LIGA TODA HORA PT SE NÃO DEVOLVEREM ARMANDO VG EU EXCOMUNGO PT – ASS. JOÃO PAULO II”.
Neste dia, vamos até nos fazer de inocentes e cair na manjada piada do Armando.
Ele vai chegar com aquela cara de gaiato. Calças enroladas na barra, sandália e bata azul suja. Vai abrir a cerveja e perguntar, com riso preso no canto dos lábios e a sobrancelha esquerda levantada:
– Vais ao monte?
E nós ingenuamente:
– Que monte???
– De merda, pois, pois…
(*) Mário Adolfo é jornalista, cronista, chargista, cartunista, tem dois prêmios Esso de Jornalismo na bagagem e é pai do personagem Curumim, o último herói da Amazônia