Boemia

Notre Dame de Paris

Postado por Simão Pessoa

Por Felix Valois

As lágrimas do mundo apagaram o incêndio de Notre Dame. As chamas não puderam resistir à intensidade do pranto que se derramou pelo planeta diante do espetáculo horrendo. Era impossível não reagir olhando a cena dantesca. Os seres humanos não merecem ser privados do direito de contemplar, sempre e sempre, aquele monumento de arte e cultura.

Victor Hugo, no romance que leva o mesmo nome da catedral, diz algo mais ou menos assim: as paredes de Notre Dame são tão conspícuas e arcanas que é impossível olhar para elas, tocá-las, sem que um sentimento de reverência e respeito nos invada. O gênio tinha razão como sempre. Notre Dame de Paris não é apenas uma igreja. Está muito acima disso. É patrimônio da Humanidade. E não só por uma decisão burocrática, mas porque traz em si mesma a marca e o timbre da própria História, que ela encarna com perfeição.

Vi-a pela primeira vez há coisa de trinta anos. Que deslumbramento! A solenidade daquele vulto gigantesco e austero tende a inibir a inevitável tendência à sua fixação numa fotografia. Parece vulgaridade incompatível com a monumental visão. Quando entrei, o fascínio foi imediato. A penumbra remete ao medievo. Inevitável que horas se passem na contemplação dos altares laterais, onde cada detalhe exige visão cuidadosa para permitir a assimilação de sua grandeza histórica. A luz filtrada pelos vitrais vai lançando, aqui e ali, nuances coloridas que deixam de ser meros reflexos para adquirirem um tom de encantamento. A magnificência do altar-mor está acima de qualquer tentativa de descrição por meras palavras. Há que senti-la por via de um deslumbramento prolongado em que o tempo perde qualquer importância, por isso que a contemplação tende ao infinito

Tenha o visitante a sorte de, durante sua permanência, um coro entoar um canto gregoriano ao som de órgão. Chega a ser estarrecedor e ninguém, nem a mais leviana criatura, pode deixar de sentir um frêmito inexplicável que remete à meditação. É a catedral exibindo todo o seu poder mágico, capaz de envolver o homem em golfadas de beleza, transportando-o a um delírio quase orgástico.

E isso tudo um patético incêndio ameaçou destruir. Que coisa absolutamente estúpida. Notre Dame não pode ser reduzida a cinzas porque faz parte daquilo que minimante podemos considerar como civilização. A queda de seus muros seria golpe fatal, irreversível, na nossa capacidade de preservar o que é indispensável para o respeito aos valores da cultura e da educação.

É inadmissível ir a Paris e não conhecer Notre Dame. Vou além: deveria ser proibido não a conhecer. Se a torre Eiffel, mesmo com seu entorno deformado por obra e graça do terrorismo, continua encantando turistas com seus restaurantes e lojas; se os passeios nos “bateaux” pelo rio Sena são indispensáveis para os que buscam uma visão panorâmica; se o Louvre, ainda que exibindo aquela pirâmide ridícula com que a modernidade lhe ornou a entrada, é parada obrigatória para os amantes da arte, só em Notre Dame é possível sentir todo o fascínio da cidade-luz, pois só ali se consegue sentir a capital francesa em toda sua grandiosidade e esplendor. Óbvio que me falta talento para explicar esse sentimento. Ele apenas vive em mim, gerado talvez pela aura fulgurante que emana do templo.

Com ele não conseguem ombrear as Tulherias, com a reminiscência de seus bosques a remeterem para cenários de romance de capa e espada; nem a Place da la Concorde, onde a história nos arrebata ao contemplar o lugar da execução do casal real. Também não lhe faz páreo o monumental Arco do Triunfo, plantado na Place de l’Etoile, e de onde é possível apreciar a grandiosidade dos Champs-Elysées. Fica para trás igualmente o ar boêmio de Montmartre, com a sua catedral do Sagrado Coração e as canções românticas que os violinos vão lançando nas tardes frias de outono. Tudo isso se curva diante da transcendência de Notre Dame de Paris.

Por que não confessar que chorei quando a televisão mostrou a tragédia que se desenvolvia? Com certeza, fui apenas mais um a deixar transbordar a angústia que tomou conta do universo. E, afinal de contas, se uma só das minhas lágrimas contribuiu para diminuir as consequências do absurdo, tenho é motivos para disso me orgulhar. Que os meus netos possam dizer: vovô participou da preservação de Notre Dame. É a glória.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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