Boemia

O cheque no butiquim

Postado por Simão Pessoa

Por Moacyr Luz

Meus amigos, eu não queria tomar mais do que duas doses do seu tempo para contar um pouco desse folclore que é trocar um cheque em qualquer butiquim. Pode ser íntimo, um primo distante do dono, mas você acaba esbarrando com aquela cara de fastio, o homem nervoso batendo com a gaveta da caixa registradora, não ouvindo o “obrigado” e muito menos falando o “de nada”.

Eu, que ando com o cotovelo calejado de tanto ouvir mentiras no pé do balcão (de mármore, é claro), perdi a conta dos avisos diferentes sobre o tal de “trocar um cheque”. Tem gente que manda fundir com ferro em brasa na madeira envernizada os dizeres “Não trocamos cheques, favor não insistir” e prende a placa a uma corrente preta para fincar no prego. Outros, para constranger, emolduram com vidro, passe-partout e laca, um quadro com os cheques carimbados, assinaturas ilegíveis, vistos em vermelho e outras siglas bancária. Tudo devolvido.

Eu falei de assinaturas ilegíveis, de rubricas do caixa do banco, por que ainda existe a questão de a assinatura não conferir por causa do teor alcoólico com que foi escrita. Lembro de um amigo íntimo que num fim de tarde trouxe o gerente do banco para a nossa mesa de bar. O engravatado chamava-se Ernesto. Meu amigo pediu um uísque duplo, duas pedras apenas para não alterar o sabor, e bebeu como quem bebe remédio, de uma só vez. O garçom enroscava a tampa do litro e ele de copo vazio:

– Mais duas doses, parceiro! – derrubando do mesmo jeito.

Ernesto, sem demonstrar espanto, abriu a mala sanfonada e sacou aquela fichinha de banco feita para a gente assinar três vezes, em branco. Caneta esferográfica na mão, olhou indiferente para o meu amigo e pediu:

– Assina agora, ô fulano.

Três linhas depois, documento preenchido, o gerente respirou aliviado:

– Pronto, agora não vamos mais sofrer com os cheques devolvidos. Você só assina bêbado.

É, meu irmão, cheque é um problema.
Você sente que precisa trocar uma folhinha e então, para justificar, gasta além do prometido: pede logo cinco maços de cigarro, oferece uma rodada e, já com a conta no talo, encosta no caixa:

– Fulano, você não imagina, fui no banco 24 horas ali da esquina e estava fora do ar. Atravessei para fazer hora, encontrei beltrano e me perdi na saideira. Sabe como é, fiquei sem dinheiro… Dá para fechar a conta e arredondar o cheque?

Silêncio.

– Olha aí, a conta deu R$ 42, faz de R$ 50 para ficar redondo…

Fazer o quê?

No fundo, no fundo, o problema foi a saideira.

Aliás, eu tive um cunhado que perdeu a mulher por causa de saideira, mas essa é outra história.

Papo reto com Arthur Dapieve

O jornalista, todos conhecem. Mantém em sua coluna a sina da estrela solitária, o Botafogo, sempre brilhando em cada parágrafo. Costuma escrever sobre música estrangeira, mas nossos encontros se dão sempre em rodas de samba – e com muita bebida nacional. Temos o mesmo afeto pela cidade e foi isso que nos aproximou de vez.

Você já assinou algum cheque tão mal a ponto de o português chama-lo num canto no dia seguinte e enrubescer você de vergonha?

Olha, não que eu me lembre, mas isso não quer dizer nada: a gente não paga pra esquecer? Me lembro, aliás, é de ter esquecido de assinar…

E o cara que assina errado só para voltar e dar mais tempo de arrumar dinheiro? É possível?

Perfeitamente possível, mas só se ele tiver algum crédito (de cobrança) na casa. Se não, acaba parando no SPC por causa de meia dúzia de louras geladas.

O truque da última folha existe?

Confesso minha ignorância da expressão. Qual seria o truque? Dizer “puxa, achei que ainda tinha um cheque aqui…” Se é isso, existe, certifico e dou fé.

Aquela carteira que para fechar se precisa de ajuda por causa da quantidade de cheques é coisa da Zona Sul ou só na Zona Norte se trabalha com isso?

É mais coisa da Zona Norte, decerto. Na Zona Sul, o chique é desenrolar aquela carteira cheia de cartões de crédito. Ainda, naturalmente, que alguns sejam de papelão que acompanham a carteira desde a loja…

Teria sido a partir do cheque que nasceu o clássico movimento com as mãos enquanto se grita para o garçom: “Fecha a conta”?

Este é possivelmente o mais universal dos gestos, não é? Em minhas bebedeiras pelo mundo, não encontrei um lugar em que ele não seja entendido. Por isso, acho que o cheque não é a inspiração, não. A inspiração é a soma, a adição, a conta, a dolorosa…

Rico também pede para segurar cinco dias com a desculpa de que está esperando um depósito?

Rico é ainda mais cara-de-pau, rapaz. Sendo rico, nem dá o cheque para ser segurado: diz que passa dali a cinco dias e paga em cash.

E quando o porre foi implacável a ponto de o talão cair inteiro na tulipa de chope? O cara aproveita e mexe para fazer espuma só para disfarçar?

Você já viu que coisa mais deprimente? Aquele cheque preenchido por letras borradas… Ou talvez fosse melhor dizer: letras borrachas. Um dos dois: ou o talão ou o correntista está na maior água.

Pergunta feita a todos: há algum segredo pra curar ressaca?

Só consigo curar ressaca comendo bem. Ou seja, só depois do almoço do dia seguinte é que ela vai embora, e sem deixar gosto amargo na boca. Nisso, massas são fundamentais. Deve ser coisa de carcamano.

O sujeito que põe centavos no extenso é um pão-duro?

Tremendo muquirana. O sujeito que não sabe reconhecer a galhardia do trabalho do garçom, anotando uns caraminguás a mais no cheque, é um equivocado. O cara que não arredonda nem centavos, então, é indigno da cerveja que bebe.

Já lhe aconteceu de pedir do português o cheque assinado pela morena só pra pegar o telefone no verso?

Não. Hum… Não ainda. Grande ideia!

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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