Boemia

O choro no butiquim

Postado por Simão Pessoa

Por Moacyr Luz

Não tenho a menor intenção de prejudicar a classe, chamar a atenção para o fato, mas eu conheço muita gente que só frequenta o bar tal, o restaurante tal, por causa do choro do garçom.

Por favor: o choro que eu falo é o do uísque, da vodca pura, coisa e tal.

Ernesto era um barman que servia no centro da cidade. Exibia na gravata um pingente de ouro, dizendo ser uma comenda, presente da rainha, por serviços prestados à exportação escocesa. Vê se pode…

Eu tinha uns vinte anos e me enturmei com um gaiato que jurava de pé junto ter feito um curso prática de Dose Caprichada.

Curso de Dose Caprichada e A Arte de Furar uma Lata de Azeite.

Verdade. E lembro bem: ele encosta no balcão e pede um prato com meia dúzia de bolinhos de bacalhau, acompanhado por uma lata de azeite.

Dá uma olhada no furo do azeite. Um só furo, para dificultar a saída do ar. E que furo! Feito com um alfinete afiado no esmeril, o furo transforma uma lata do óleo comestível em bem durável. É assim como a chopeira, a chapa quente para passar o bife, o vidro de cebola em conserva: não acaba nunca.

O sujeito conseguiu abrir e falir um bar com o mesmo azeite na mesa.

Mas a conversa é outra, é o choro. Se você reparar, o garçom, quando é malandro, serve a dose miudinha o depois faz o suspense para servir o choro.

Palavra de honra, o bar inteiro pára. O dono erra no troco, a cantada é interrompida, o estranho se aproxima, tudo na ponta do pé para ver a que horas o garçom vai levantar a garrafa. O fulano que está sendo servido olha para o copo como se fosse uma roleta, um pênalti para decidir o campeonato, e aqui vale uma dica: mesmo que o choro tenha sido exagerado, ainda assim você reclama:

– O que é que houve? Tá de mau humor?

Sem querer ofender, cá para nós, venhamos e convenhamos, tem medidor por aí que de medidor só tem o nome.

Fui beber com alguns amigos íntimos num famoso bar de subúrbio. A conversa animada, cadeira de palhinha, queijo prato cortado em forma de dado de cassino, tudo certo. Achei por bem pedir uma dose do chá escocês, um quente para abrir os trabalhos. O dono fez questão de servir. Pano de prato no ombro, traz o copo com o gelo feito em casa, desenrosca a tampa e apresenta o medidor: um dedal.

– É um dedal? – perguntei.

– É. herança da minha avó. Não tem preço.

Paguei a conta e pedi um táxi. Bati a porta devagar a pedido do plástico e murmurei:

– Copacabana.

– Por dentro ou por fora, senhor?

Ih, já vi tudo.

Papo reto com Sérgio Cabral

Quando fui a primeira vez na casa do jornalista e escritor Sérgio Cabral, passei pelo corredor e notei pequenos quadros emoldurando coisas mínimas em tamanho, mas enormes como história: um cartão do Cartola, outro do Ciro Monteiro… Guardei para mim esse conceito e, na minha casa, o primeiro bilhete que emoldurei foi justamente um escrito por ele, desejando-me sorte no CD Vitória da Ilusão. Escreveu as biografias de Ari Barroso e da Elizete Cardoso, dois de meus ídolos. Um dia, sentei numa mesinha de butiquim perto da janela da sua casa. Ele me ofereceu um uísque e chegou com uma garrafa com duas doses tomadas, que trocou por uma fechada. Me disse que a conversa seria boa e demorada. Que aula!

O uísque 12 anos é muito melhor que o de oito?

Nem sempre. O meu preferido é Buchanna’s. Agora, um Red Label… Sei não, mas acho melhor que o Black.

O sujeito percebe que está no Paraguai na primeira dose ou só no dia seguinte?

Olha, eu tinha um amigo que saiu de Brasília num porre bom, chegou ao rio, dormiu, e depois, falando com um sujeito ao telefone, ficou confuso e achou que ainda estava na capital federal. A ponto de, cego da ressaca, gritar da janela: “Eu quero ir pro Rio!” Esse uísque ele só notou que era falso no dia seguinte. O escritor William Faulkner certa vez chegou de porre a São Paulo, saiu do avião, entrou num táxi ainda bêbado e quando voltou à lucidez gritou: “O que estou fazendo em Chicago?” Pra fechar, o Sergio Porto só bebia uísque nacional, pra não correr o risco de beber falsificado.

Quando você começou a beber, qual era a marca da moda?

Eu demorei a ter dinheiro pra beber uísque, mas meu preferido era o Mansion House, marca que o Tom Jobim também adorava e sempre pedia pra alguém trazer quando estava fora do Brasil. Minister e Mansion House, era o pedido.

Dá pra citar as décadas vividas através das marcas de uísque?

Olha, teve a época do Vat 69, do Cutty Sark – um dos meus íntimos desejos –, até o Old Eight, que pertencia ao Ibrahim Sued, foi de uma época. O fino também era o Dimple, que marcou muito. Uma vez fui ao show da Elizete Cardoso, representando o Carlos Machado, e colocaram na mesa uma garrafa de Dimple. Nem toquei, achando que tinha que pagar – e era um oferecimento.

E essa história de que tem cachaças melhores do que uísque, coisa e tal?

Às vezes, é real. Antes de um almoço especial, uma cachaça é insubstituível. Quando cai bem, então, fico nela direto.

Qual o melhor garçom que já lhe serviu? De que bar é?

O Zelito, do Antonio’s. Ali, havia garçons a quem eu entregava minha vida. Quando saí da prisão, naquela época tortuosa, fui direto pra lá comemorar e abriram um champanhe!

O choro é fundamental?

Fundamental. Aliás, eu não volto a um lugar que me negue o choro.

Você gosta de copo curto. Há uma explicação científica?

Tem sim. O longo é pra misturar com água, e eu só bebo puro, com gelo.

E contra a ressaca? Alguma dica?

A famosa dica do azeite na colher tem seu valor. Depois, um remédio para o fígado à noite.

Dá pra fazer um gráfico relacionando a boa conversa e as doses derramadas?

Olha, isso é muito sério. Quando eu escrever as minhas memórias, daqui a sessenta anos, espero, vou dizer tudo o que vivi em mesa de bar. Os bares estão na minha vida.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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