Boemia

O jantar e o botequim

Postado por Simão Pessoa

Por Moacyr Luz

Devo ter escrito em algum canto que malandro que é malandro não diz em casa o butiquim em que bebe, nem sob ameaça do rolo de pastel. Mas o “aparelho” citado é esse butiquim anônimo, onde só se fala o indispensável na dose escondida ao pé da máquina de café, o traçado cotidiano com chiclete de troco antes de encarar o patrão: ele, o traçado e o português anotando no quadro o prato do dia, quando o sol da manhã pouco importa. Ainda no fundo do copo, a crônica, o bar onde todos sabem o nome de cada um, mas é apenas um aceno o único gesto de intimidade.

Tem aquele outro estabelecimento, em frente de casa, que pendura para a família, ainda vende refrigerante litro de garrafa e outros agrados. Até a sogra evita passar em frente, mas sabe o telefone. É aquele fastio do português chamando pelo seu nome quando, decepcionado, atende ao chamado e joga o fone em cima do mármore de má vontade:

– Ernesto, é pra você!

Um sintoma, nesse momento é a coincidência dos fatos o sujeito está na melhor parte da história, a amante apaixonada ou o gol entrando com bola e tudo, quando vem o grito:

– Fulano, é pra você!

É quase uma ordem. Ele levanta, esbarrando no garçom que trocava o cinzeiro da mesa ao lado, e sai chispado como se fosse votar na sessão. Sei que a história carece de modernidade, com todos tendo seus próprios números e celulares, mas não há um gaiato que não mantenha como uma medalha no paletó o telefone do bar na memória. Na memória dele!

Ernesto, caso raro, recusava-se a ter esses inventos capitalistas e só era chamado por meio de velho aparelho preto ainda marcado na gordura da chapa. Os fregueses já conheciam a cronologia: às seis da tarde, vinha o primeiro telefonema da patroa, dizendo que o jantar estava quase na mesa. Ele, sempre com um “querida”, um “meu docinho”, um “minha flor”, pedia mais 15 minutos com um velho amigo que não via há tempos, e falava que já estava chegando, coisa e tal.

Dava sete horas e o português nem atendia mais. Tocando o som mais tradicional possível, sem óperas ou hino de clubes, nosso Ernesto já levantava tropeçando no chinelo e, de novo: “Minha boneca”, “amôôô” e outras delicadezas mais, dizendo “só mais cinco minutos” e oferecendo a sobremesa:

– Levo o sorvete, quer?

Um dia a casa caiu, quer dizer, o jantar caiu. A patroa, vista pela primeira vez sem maquiagem, apareceu no salão com ginga de atacante, entrando pelo meio, e arremessou o prato de talharim ao molho no alvo certo: a cara do marido. Ela ainda gritou na saída que fora o último prato que fizera para o dito, e que, agora, se ele quisesse, que comesse também no butiquim.

Só restou ao Ernesto perguntar o prato do dia. E era coisa fina.

Hélio de La Peña, Chico Paula Freitas e Sérgio Rodrigues na Bienal do Rio

Papo reto com Chico Paula Freitas

Por contas das iniciais, Jaguar o chama de Chico PF, e ele honra o apelido. Jornalista dos melhores, meu amigo de maracujás e pé-de-porco à moda portuguesa, também tem um amor pelo butiquim. Um dos seus livros, Café e Bar Ponto Chic, é um atestado da boa loucura que são esses ambientes. Foi um dos primeiros a me visitar na roda de samba que organizo às segundas no Renascença.

Você já foi convidado para degustar algo que nem preso comeria?

Já. Na verdade, por pura ignorância, quando pedi um bife tartar. Eu, um garoto do Méier, suburbano, achava que esse bife teria a ver com aquelas saladas de molho tártaro que minha mãe fazia: maionese, picles picado, coisa e tal… Quando chegou aquela carne crua e um ovo cru em cima, uma alcaparra que nunca tinha visto e achei até que fossem moscas, ainda disse que adorava o troço, mas foi duro de comer.

O jantar está servido e o anfitrião reclama do tempero com a esposa. Você finge que não ouviu?

Eu finjo que não ouvi e nunca mais volto nessa casa. Esse não merece a minha consideração.

Qual é o bom restaurante para se jantar a dois?

Tem que saber qual é o segundo! Se for um amigo é um, se for um diplomata é outro. Tem que saber quem é o segundo!

E para jantar “a vários”?

Ah, um lugar barulhento. Eu gosto de restaurante barulhento, de antigamente, o pessoal feliz, comendo. Agora é tudo cheio de carpete até o teto, música ambiente. Restaurante é pra celebrar a vida!

Você consegue comer pouco pra fingir que é educado?

Isso eu não consigo. Você não está vendo hoje, nessa festa?…

Se você está de olho na comida e alguém passa mal, oferece-se para levar ao hospital ou se esconde para encarar o manjar?

É evidente que eu me escondo! Mas, falando sério, depende da comida. Tem alguns jantares em que você até reza para alguém passar mal e você poder se arrancar.

Um jantar inesquecível?

Isso eu não posso contar, mas adianto que o sujeito era um cirurgião famoso.

Você acredita que o talher de peixe serve mesmo para alguma coisa?

Pra mim, só serve pra abrir garrafa!

Mas entre beber e jantar, onde fica a gula?

De coração, eu prefiro beber.

Só que no dia seguinte vem a ressaca. Alguma dica?

A minha dica é sincera. Depois que parei de fumar, nunca mais tive ressaca. Antes era mortal, hoje acordo zerado.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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