Por Moacyr Luz
O verdadeiro butiquim, Cosme & Damião com balas Juquinha, tremoços num vidro embaçado, chave para o banheiro e aviso de “Não Vendo Fiado”, esse butiquim cascudo, tem sempre a mesma especialidade: o limão da casa. Uns podem até botar duas azeitonas na empada, mas o que vai garantir a eternidade de muitos é a batida feita quase às escondidas para ninguém saber a medida do anis na cachaça sem rótulo.
Descasco a fruta para explicar: o português, que antes de enriquecer morava nos fundos do estabelecimento, não aceita “estragar” a aguardente com misturas caseiras e, falando baixo para o vendedor, encomenda sempre uns garrafões feitos na destilaria anônima, que vira o “sem-rótulo” ou, na mais profunda fantasia, vem exclusivamente para ele do Sul de Minas, terra boa. O litro, que antigamente servia para água sanitária, é reservado no acesso ao mictório.
Ficam ali, recipiente e poeira, os dois construindo uma cirrose. Mas do repúdio que essa leitura acaba nos engasgando, nasce uma constatação: o limão da casa só presta, só arde com prazer, se for feito dessa maneira – a fruta espremida na colher, o açúcar em exagero e, para proteger, a rolha, relíquia de um Natal qualquer. Dura mais que conservas europeias para um gaiato ainda esperar dizendo: “No finzinho é que fica bom!”
No entanto, a modernidade veio complicar a relação do português com o Ernesto, um aposentado que lia diariamente todos os jornais populares na única mesa inteira do bar e só pedia uma minissaia de abrideira. Aprendendo por acaso sobre a quantidade de agrotóxicos inseridos em frutas cítricas, condenou o limão da casa e propôs a mais dois desocupados transformar em horta a jardineira que ficava em frente ao bar, colhendo o necessário para a batida e até para o tempero da sardinha de balcão. Profético, gritou:
– Morro bêbado, envenenado, não!
Suspensas as doses, esperaram a primeira colheita até o inesperado fazer uma surpresa.
A esposa do “agricultor”, que resolveu entrar para a autoescola no mesmo período da safra aguardada, pediu ao instrutor para passar em frente ao bar, a fim de que o marido visse seus dons de piloto, nota dez em baliza, coisa e tal… Só que fez a curva justo no canteiro semeado, e não sobrou nem pneu, nem calçada e nem limão para pôr no primeiro copo. Ernesto desistiu da minissaia, do bar, do português, do limão, claro, e hoje é visto em pé, no balcão da padaria, embromando com um cafezinho no copo americano.
E olha que a padaria é farta em frutas!
Papo reto com Zé Luiz do Império
Somos parceiros em apenas uma música, mas não há um encontro de samba em que a gente não acabe sentado à mesma mesa. A ele tenho um agradecimento: levou-me à serrinha, origem do Império serrano, de onde saí com um samba do Mestre Fuleiro, “Tantas primaveras”, que gravei no CD “Na galeria”. A dica que ele deu para curar ressaca eu pedi para incluir aqui em casa.
Você acha que o limão da casa é um patrimônio carioca?
Sem dúvida nenhuma. Cada casa tem seu limão, seu jeito de fazer e, diga-se de passagem, não tem nada a ver com caipirinha.
Há limão que só serve pra peixe e limão que só serve pra batida?
Sim. Limão amarelo, por exemplo, não serve pra batida. Assim como a cachaça tem que ser a pior do mundo.
Você acredita nessa história de que o açúcar é que dá porre na bebida?
Mentira. Aliás, tem uma história minha e de todos os suburbanos, os malandros. A gente não tinha o hábito do vinho. Era um hábito europeu que a gente não conhecia. Então, esses malandros com quem eu convivia – o Campolino, por exemplo – botavam açúcar no vinho porque achavam amargo.
Você já bebeu algum limão que o fez depois ficar chamando urubu de meu louro?
Todas as vezes. Na década de 1960, tinha aquelas batidas tipo leite-de-onça, um horror. Mas a gente, sem dinheiro pra cerveja mas querendo ficar bacana, partia pra essas coisas de nome e paladar horríveis. Me lembrei: calcinha-de-nylon.
Dizem que o Candeia oferecia uma batida maravilhosa. Você chegou a conhecer?
Conheci. Porque eu tive o privilégio de estar na formação do Quilombo, fui fundador da Ala dos Compositores, com Rubem Confete e ao lado de Nei Lopes e Carlinhos Doutor. Então, conheci não só a batida como a feijoada, maravilhosa.
E onde hoje você diria que a batida é inigualável?
Eu tô afastado das batidas há um certo tempo. Mas o Beco da Cirrose – o antigo Tangará, o Carlitos – é um lugar que tem sua bagagem. O Bar do Gengibre na Cinelândia merece também respeito.
Tem alguma dica pra combater a ressaca?
A minha receita é a seguinte: primeiro, é a mulher não dá bronca. Você já fica bem demais. Depois, melhora tudo.
Se o maracujá acalma, o que dizer do limão da casa?
Se existe essa de que maracujá acalma, o limão agita. Agite e beba!
Se você entra numa birosca e só tem Belco e o limão da casa? Você vai de quê?
Pergunta difícil de responder, porque a birosca deve ser ruim pra burro. Aí, eu corro pra genebra. É o jeito.
Na Mangueira, a Sônia da Pedra faz um chá de macaco imperdível. O Noca da Portela também. E no Império, tem alguém?
No Império é Toninho Fuleiro. Na comida e na bebida, o homem tem a mão santa. E Toninho é do tempo que malandro não tinha idade, já nascia com esse dom.