Por Zemaria Pinto (*)
O que torna um bar interessante não é a paisagem – especialmente, se ele não tiver calçada.
Um bar é uma instância individual que às vezes se torna coletiva. O Armando, por exemplo, era o lugar onde eu ia, sempre às sextas-feiras, encontrar pessoas com quem eu tinha afinidades eletivas. Uma instância individual minha que também era a de muita gente com as tais afinidades, o que tornava o lugar único – para mim e, acredito, para elas. Então, muito além da cerveja e outras cositas más, o que interessava mesmo era o papo, a conversa, que (quase) nunca era fiada, diga-se de passagem.
Hoje, falar de cerveja me dá náuseas. Mas, vamos lá: Antarctica e Brahma. A primeira, a preferida da maioria. Pois eu desenvolvi um gosto pela Brahma, só para me livrar das varejeiras, filando, de mesa em mesa. Quando me viam tomando Brahma, ainda reclamavam. Só esse cara toma isso.
Mesmo entre os fixos em nossa mesa – chamada de mesa dos poetas ou mesa dos artistas, pois não éramos só poetas – havia os filões, que, na hora de pagar a conta, desapareciam como por artes bruxas, crentes de que, dado o alto grau alcóolico dos demais, ninguém iria lembrar a aleivosia.
Olhando pelo retrovisor, sinto falta de muita gente que não está mais aqui para contar histórias: Aníbal Beça, Inácio Oliveira, Engels Medeiros, Marco Gomes, Carlos Araújo, Anísio Mello, Luiz Bacellar, Marcileudo Barros, Almir Graça – poetas; Rogélio Casado, fotógrafo e gaitista; Celito Chaves, Afonso Toscano, compositores; Celeste Pereira, atriz; Mestre Pinheiro, mago…
Foi naquele junho de 1998 que eu comecei a me afastar do Armando, lentamente: o melhor papo, tanto para o civilizado debate acadêmico como para o embate mais sanguinário (metaforicamente, claro), já não o frequentava mais: meu amigo Antônio Paulo Graça. O Paulo Graça. O Paulinho.
Foi no Armando que dois projetos da geração de escritores nascida mais ou menos entre 1955 e 1965, mas não só, vieram à luz: O fingidor e Poetatu. Ambos, fazendo jus aos nomes, divulgando poesia.
O fingidor era um jornal, impresso em papel A4, dobrado, e diagramado no Word. Duas folhas: oito páginas. A organização era deste locutor que vos fala, com o auxílio luxuoso do nefelibata João Sebastião e da inefável Clara Nihil. Éramos a Edições Flor do Mal. Com tiragens de 500 exemplares, e um total de 15 números, O fingidor circulou entre maio de 1993 e novembro de 2002. Iniciou com um lema mutante, fixando-se, nos últimos seis números, já no século 21, em “poesia de invenção”, o que não era pouco, mas também não era nada.
Tinha três sessões fixas: “Estante do Tempo”, com poemas de autores que já haviam se tornado clássicos; “tirando prosa”, com notas e notícias provocantes e provocáveis; e “like a joke”, com traduções de letras de rock, por Simão Pessoa. De resto, era poesia da RNP – Rede Nacional de Poesia –, que no início era na base do selo, e Caixa Postal era uma caixa de ferro numa agência dos Correios.
A RNP começava em alguns dos nossos ídolos, com quem nos correspondíamos – como Glauco Mattoso, Wilson Bueno e Leila Míccolis –, e terminava com os poetas da mesa cativa do Armando. Um dia ainda conto essa história.
Poetatu foi um livro, melhor dizendo, uma série de quatro livros, organizados por Carlos Araújo e Marco Gomes – o Poetatu 4 contou ainda com a expertise de Celestino Neto. Era o Coletivo Gens da Selva. O primeiro volume eu acredito que seja 1995, já que o segundo, “O Retorno”, é do ano seguinte. Mas, se não foi, paciência. O quarto volume é de 2009, quando Anibal Beça, Marcos Figueira e Narciso Lobo já haviam entrado no modo “in memoriam”.
Os quatro livros tiveram apresentações antológicas de Simão Pessoa. Para não ferir suscetibilidades, os poetas apareciam em ordem alfabética, o que me deixava sempre por último – e como todos sabem, os últimos nunca serão os primeiros. O projeto Poetatu gerou ainda dois filhotes: Manaus Versiprosa (1997) e O Amor e os Poetas (1998).
Eu dizia que o que torna um bar interessante não é a paisagem – especialmente, se ele não tiver calçada.
Mas, o Armando tinha mesas na calçada e até na rua – onde numa noite de lua cheia o poeta e artista plástico Anísio Mello foi atropelado ¬– e uma belíssima paisagem de fim de tarde: o sol se pondo por detrás do Teatro Amazonas, em raios rosas, amarelos, laranjas, violetas, tingindo as nuvens sob o fundo azul, somando-se ainda os verdes dos benjamins: um arco-íris LGBT – sim, naquela época eram só quatro letrinhas.
Verão amazônico, eu saí do trabalho às cinco da tarde e cheguei cedo no bar. Meu amigo Jorge Palheta, pintor de gênio que morreu cedo e na maior pindaíba, aproximou-se com o copo vazio e o olhar pidão.
Enquanto o servia, apontei o quadro que se erguia sobre nossas cabeças e perguntei com os olhos: o que achas? Com sua voz de barítono gripado, Palheta respondeu com um clichê qualquer. Orra, Palhetone, só tens isso a dizer diante de tanta arte?
Palheta acusou o golpe, matou no peito a pernóstica pergunta e emendou um tirambaço no meu olho esquerdo. Meu irmãozinho, nem almocei hoje… Estendeu-me a mão direita, com a qual segurava seus mágicos pincéis. Tremia.
Chamamos o garçom e pedimos um clássico da casa. Depois da pantagruélica bomba de calorias, Palheta serviu-se ele mesmo da indefectível Brahma. O espetáculo de quarenta minutos atrás se desfazia em cinza escuro. Meu irmãozinho, hoje não dá mais, mas amanhã de manhã vou pintar aquela paisagem pra você.
E assim começava mais uma noite de sexta-feira no bar do Armando.