O cangaço existe desde o início do século 18, tempo em que o sertão nordestino ainda não havia sido desbravado. Foram os jagunços que deram origem ao cangaço.
Segundo Nina Rodrigues, no livro “As Coletividades Anormais” (Civilização Brasileira, 1939), “não é jagunço todo e qualquer mestiço brasileiro: jagunço é o mestiço do sertão, que tem as características dos seus ascendentes selvagens – índios ou negros. No jagunço se revelam inteiros o caráter indomável do índio selvagem, o gosto pela vida errante e nômade, a resistência aos sofrimentos físicos, à fome, à sede, às intempéries, decidido pendor pelas aventuras da guerra cuja improvisação eles descobrem no menor pretexto, sempre prontos e decididos para as razias das vilas e povoados, para as depredações à mão armada, para as correrias de todo o gênero que os interesses do mando, as exigências da politicagem e as ambições de aventureiros fazem suceder-se de contínuo por toda a vasta extensão das zonas pouco habitadas do país”.
Na verdade, jagunço ou capanga era todo e qualquer indivíduo que se prestava ao trabalho paramilitar de proteção e segurança a fazendeiros, políticos ou pessoas influentes, no interior do Brasil. O termo deriva do quimbundo “junguzu” ou do ioruba “jagunja-gun”, ambos servindo para designar a palavra “soldado”.
“A luta entre os que estão de posse do poder e os que disputam essa posse, admiravelmente favorecida nos tempos monárquicos pelo revezamento no governo dos dois partidos constitucionais, mas então como ainda hoje melhor favorecida ainda pelas intrigas e arranjos das camarilhas que cercam os governos centrais, sempre trouxe dividida a população sertaneja em dois grupos opostos e rivais, em dois campos inimigos e irreconciliáveis, capitaneados, por verdadeiros régulos de que os jagunços representavam apenas o exército, a força material”, anotava Nina Rodrigues, em novembro de 1897. “Esta situação que o jagunço não chega mesmo a compreender, mas de que acaba sempre sendo o responsável legal, oferece-lhes, todavia, o melhor ensejo para satisfação dos seus instintos guerreiros. Foi sempre nessas lutas, políticas ou pessoais, que se revelaram todas as qualidades atávicas do mestiço. Dedicado até a morte, matando ou deixando-se matar sem mesmo saber porque, foi sempre inexcedível o valor com que se batiam, consumada a tática, a habilidade de guerrilheiros que punham em prática, relembrando as lutas heroicas do aborígine contra o invasor europeu”.
Um tipo especial de jagunço eram os “cabras”, como ficaram conhecidos os cangaceiros de Lampião. Segundo o dicionarista Raphael Bluteau, autor do pioneiro “Vocabulario Portuguez Latino” (1712), o termo “cabra” foi cunhado pelos navegadores portugueses para nomear os nativos que encontraram em Goa, estado indiano localizado na costa do Mar Arábico, que ruminavam como cabra a noz de betel, que sempre traziam na boca.
Encontrada em toda a Ásia e utilizada por milhares de pessoas, a noz vem da palmeira de Areca e é mascada por suas propriedades estimulantes semelhantes às da folha da coca. Seu efeito é tanto que, ao lado de nicotina, do álcool e da cafeína, a noz de betel é tida como uma das substâncias estimulantes mais populares do mundo.
Apesar de ser usada por mulheres e crianças, são especialmente populares entre os homens, que mascam a noz para ficarem acordados durante longas horas, dirigindo, pescando ou trabalhando em canteiros de obras.
Possuindo a cor amendoada dos indianos, os “cabras” brasileiros eram mestiços de negros com mulatos ou morenos (que por sua vez eram filhos de pai branco e mãe negra ou vice-versa), dando origem ao mestiço “cabra”, o filho macho de moreno e negro. A mestiça desse cruzamento era chamada de “cabrocha”. Em Portugal surgiu o termo “cabrão” para designar homem mau, criminoso, safado.
Segundo Luís da Câmara Cascudo, “chamamos cabra ao filho do mulato com a negra e não é simpático ao folclore sertanejo. Há longa criação no adagiário contra o cabra. Não há doce ruim nem cabra bom. Cabra bom nasceu morto. Cabra quando não furta é porque se esque-ceu. Cabra valente não tem semente. Valentia de cabra é matar aleijado. O tratamento de cabra é insultuoso. Ninguém gosta de ouvir o nome. Reage quase sempre. Todas as estórias referentes aos cabras são pejorativas e são eles entes malfazejos, ingratos, traiçoeiros”.
Nessa perspectiva, é interessante ressaltar que ao fazer referência à figura masculina em termos de cabra, Cascudo também se reporta ao animal. Ao discorrer sobre a história desse animal, o folclorista nos informa que do convívio com a cabra e o bode, teriam surgido histórias, segundo as quais ambos os animais desapareciam por uma hora durante o dia para ir ter com Belzebu.
Cascudo avalia, então, que “desta participação religiosa a cabra nunca se libertou. Não se aproximou de santo algum e não há lenda ou história em que figure como elemento favorável. Familiar, doméstica, da intimidade sertaneja, não inspira confiança integral ao povo. Em lenda alguma da literatura oral cristã comparece com a cabra num plano de boa educação ou afeto. Na etiologia de sua voz, há uma condenação popular que tivemos de Portugal: “Cristo nasceu!” – cantou o galo. “Onde” – muge o boi. “Em Belém!”, baliu a ovelha. “Mentes, mentes” – resmungou a cabra, guardando até hoje a negativa gaguejada e pagã.”
Cascudo acrescenta ainda que, no século 16, além de já constar nos cardápios populares da região setentrional do Brasil, a cabra garantia por meio de seu leite a alimentação, sobretudo, da criança brasileira. Registra igualmente que havia a crença de que o leite de cabra podia transmitir “o caráter inquieto, buliçoso, arrebatado, da amamentadora. O menino, demasiado vivo, arteiro, endiabrado, teria a justificativa no consumo do leite de cabra”.
Diante de tais fatos, estimamos que haja correlação entre a compreensão do “cabra” como indivíduo “malfazejo”, “ingrato” e “traiçoeiro” e a cabra como animal “endiabrado”. Ou seja, consideramos que tais crenças motivaram o mapeamento de características negativas do homem nordestino em termos de cabra.
Existe mais de uma versão para a origem da expressão “cabra da peste”, que até hoje possui duplo sentido. “Em geral, é usada para designar o sujeito destemido, mas também pode ser dita em tom de ofensa, quando a valentia vira prepotência”, diz o linguista Flávio de Giorgio, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Com o passar do tempo, o animal ruminante pode ter virado sinônimo de homem forte por causa de seu leite, considerado mais denso e nutritivo que o da vaca. Tudo indica que a associação com “peste” surgiu por causa da má fama da cabra, considerada um animal simpático ao diabo na tradição sertaneja (basta lembrar da famosa “Oração da Cabra Preta”). Vale lembrar que os nordestinos também usam a palavra “peste” para nomear doenças graves.
Assim, o “cabra da peste” seria o sertanejo que sobreviveu superando todos os sofrimentos, “da dentição difícil, do sarampo certo, da caxumba, da desidratação inevitável, da catapora, da coqueluche, da maleita e do amarelão, e de tudo mais que atormenta a vida de um cristão nascido no Nordeste”, como sugere o folclorista Mário Souto Maior no livro “Como Nasce um Cabra da Peste” (Editora Grumete, 1969). “Por tudo isso, a expressão completa só deve ter surgido por volta do século 17”, afirma Flávio de Giorgio.
Mas alguns especialistas defendem outra hipótese. A expressão seria uma variação de “cabra-de-peia”, também usada para indicar a valentia do nordestino, que apanhava sem reclamar. “Depois de açoitada com a peia (chicote), a vítima era obrigada a beijar o açoite na mão do seu algoz”, diz o etimologista Deonísio da Silva, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar).
Os “esquadrões volantes” que combatiam os cangaceiros os chamavam de “cabras da peste” com intenção altamente ofensiva, no sentido de eles serem oriundos da mais completa degradação racial e moral.