Por Mateus Habib
É início de semestre em Coimbra. A cidade pulsa. A mesma que hibernou nas férias de verão, que se escondeu no inverno, se abriu inteira para o início das aulas que coincide com o começo do outono. Mercados lotados, bares apinhados, ônibus cheios. Faz um ano que chegamos, mas todo mundo garante, todo ano é assim. A alta da universidade, com todos seus prédios repletos de alunos, parece um gigante formigueiro alvoroçado em dia de chuva de açúcar. Por estar acostumado com as proporções brasileiras de tudo, não chega a ser caótico. Talvez por isso não veja nada de ruim nisso. Pelo contrário: acho bonito. Gosto de sentir a vida assim, em pleno curso.
No almoço, comi o que havia no restaurante universitário: um frango assado sem muita graça, um pouco de arroz e umas folhas de alface. Sopa de ervilhas no início e maçã verde no fim, meia hora de fila no meio, tudo pelo equivalente a R$13. Durante o dia, o sol ainda segue quente. Subo as escadas monumentais de tamanho (são 125 degraus) e de nome (se chama assim, Monumentais, essa escadaria). Ofegante, me sinto vivo.
Na biblioteca central, no subsolo da faculdade de letras, onde estudo — e de onde escrevo este texto — a temperatura é amena graças às paredes ultragrossas. Parece que esse andar não tem sala de aulas, só essa, de estudos. Os corredores, com cara meio abandonada de depósito, ainda guardam certo charme junto aos móveis antigos da universidade, que desde o ano passado pareciam estacionados aqui, sem uso. Muitas mesas, cadeiras, estantes e gaveteiros empilhados, alguns desmontados, até. Todos em madeira maciça cor de canela.
Na biblioteca, a paz. Sempre me senti bem dentro de bibliotecas. Abraçado por livros e pela liberdade de poder estar em silêncio. Nesta, um corredor de livros e outra carreira de mesas, umas vinte, todas com duas cadeiras de espaldar alto, tudo bem antigo, bem preservado. Nenhuma delas é virada de frente para a outra, na certa para evitar olhares cruzados e distrações. Nas mesas garrafas d’água, estojos, dicionários, calhamaços de texto, livros, cadernos, computadores, dúvidas. Todo mundo está aqui para ler e escrever e pesquisar. Seis janelões enchem a sala de muita luz natural, todos com uma mesma cortininha desbotada em algum lugar entre o cinza e o azul. Embaixo, o Mondego impassível passando.
O que rompe o silêncio são cliques de mouse (chamam ratos, adoro como são literais) e batidas de teclado. Cochichos eventuais e soprados, o bipe do leitor infravermelho registrando um livro sendo retirado ou devolvido. Alguns tacos soltos do piso que parecem bater tamancos quando alguém cruza o corredor, mesmo tentando pisar em ovos. O telefone que toca grave e baixíssimo, quando toca. O sino da torre que bate às 16:45h não sei por que motivo e os carros que passam lentos do lado de fora das janelas. O ar rescende a óleo de peroba (para eles, óleo de cedro). Penso e vejo que há muita madeira em toda a universidade. Tudo isso um dia já foi árvore. Tudo aqui já foi mato.
Começo este semestre mais uma bateria de aulas novas. Entre os professores uma classicista (não classista), uma contemporanista, antropólogos, turismólogos, historiadores. Tudo novo, mas o mesmo tema: alimentação. Até agora foram só dois dias e pra mais de mil sementes plantadas. Falamos de tanta coisa! Do papel dos eletrodomésticos no jeito de cozinhar, gula e moralismo, nas guerras e pandemias, nas materialidades da mesa — copos, pratos, talheres— e na mala de viagem dos que migram — o que levam e trazem?
No surgimento dos restaurantes, no simbolismo dos hambúrgueres, nas comidas de engolir (as swallow foods africanas), no aquecimento global. Nas dimensões de gênero — quem cozinha a sua comida? — raça —, a dupla opressão de cozinheiras negras — e classe social — para quem é feita a alta gastronomia? Ouvi sobre a importância de escrever com regularidade na forma da mais precisa metáfora: “Quem faz sopa todos os dias atira o sal com a mão e acerta o ponto, não precisa provar”. A frase mais linda: “Nada se faz sozinho”, e a palavra mais portuguesa — “enchouriçar”. A noite está fresca. Descendo as escadas, respiro tranquilo. Me sinto vivo. A cidade pulsa.