Balangandãs de Parintins

Kokó Rodrigues e o Rapto das Sabinas na sua versão parintina

Alessandra e Kokó Rodrigues no Restaurante Luar de Uaicurapá, no Vieiralves
Postado por Simão Pessoa

O Rapto das Sabinas é um episódio lendário da origem da cidade Roma e está relacionado com a formação da população da cidade e com os primeiros momentos de sua expansão. As principais fontes da história encontram-se em Plutarco e Tito Lívio, que, através de trabalho biográfico e de história da cidade, apresentaram a lenda do Rapto das Sabinas e algumas de suas versões.

Segundo eles, a origem do rapto era uma tentativa de Rômulo, o primeiro governante da cidade, de conseguir esposas para a jovem população masculina romana. Ações diplomáticas haviam sido tentadas com os povos vizinhos a Roma, principalmente os Sabinos, para que fosse disponibilizada para matrimônio com os romanos parte de sua população feminina.

Entretanto, todos os chefes das cidades vizinhas negaram os pedidos dos romanos. O recurso à força parecia aos romanos ser a única forma de resolver seus problemas de descendência, pois, sem mulheres, estavam fadados a não deixar filhos, o que colocaria em risco a recém-fundada cidade de Roma.

Segundo Tito Lívio, Rômulo conseguiu dissimular sua resignação frente à negativa e organizou um festival em honra a Netuno Equestre, o qual chamou de Consualia. A população de cidades da vizinhança foi convidada, inclusive os membros das classes abastadas e seus familiares. Os princípios de hospitalidade foram respeitados no início, com os anfitriões oferecendo estadia e alimentação aos convidados.

Gravura de John Leech (1817-1864) mostrando satiricamente o Rapto das Sabinas para o livro A História Cômica de Roma

A surpresa ocorreu durante a celebração do festival. Com um gesto de Rômulo, anteriormente combinado, os jovens homens romanos lançaram-se na captura das jovens mulheres que estavam na cidade. O rapto teria ocorrido de forma indiscriminada. Entretanto, algumas das mais belas mulheres teriam sido capturadas a mando de patrícios romanos por plebeus a seus serviços.

Os convidados retiraram-se injuriados da cidade, frente à violência sofrida e à quebra da hospitalidade com os visitantes. Expedições militares foram pensadas para combater a ação dos romanos. As primeiras excursões contra os romanos foram derrotadas.

Mas os Sabinos conseguiram entrar na cidade de Roma, após uma traição de uma romana, que desejava obter o ouro que eles carregavam em seus pulsos. O inesperado aconteceu durante os combates. As Sabinas, que haviam sido raptadas, intercederam no combate com o objetivo de acalmar seus maridos e parentes. Não queriam que seus filhos e netos ficassem marcados com o estigma do parricídio, e se alguém deveria morrer que fossem elas, a causa da guerra.

De acordo com essa argumentação apresentada por Tito Lívio, as sabinas conseguiram pôr fim ao conflito. Foi travado um tratado de paz, e os Sabinos passaram a compor a população romana, que duplicou. Os chefes sabinos foram aceitos nas funções diretivas, auxiliando, dessa forma, o fortalecimento da cidade de Roma.

A intervenção das Sabinas, obra de Jacques-Louis David (1748-1825) referente à lenda presente nas origens de Roma

Em 1990, na cidade de Parintins, teve início um episódio semelhante ao Rapto das Sabinas, guardadas as devidas proporções, mas que também teve algumas pitadas de “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare, e do filme “O Selvagem da Motocicleta”, com Marlon Brando, em que o mocinho desordeiro, líder de uma gangue de motociclistas, se apaixona pela filha do delegado da cidade, exatamente o sujeito encarregado de reprimir os arruaceiros.

Morando em Manaus, o cantor e violonista Kokó Rodrigues havia chegado em Parintins pela primeira vez como integrante da banda de apoio do cantor Chico da Silva, para uma apresentação na Feira Agropecuária do município. Ficou encantado com a cidade

Alguns meses depois, em Manaus, ele soube que ia rolar o Festival da Canção de Parintins (Fecap), organizado por Fred Goés e Nelson Brilhante, e meteu pilha no compositor Chico da Silva para participar.

Chico da Silva topou e inscreveu a música “Os Caboclos”, parceria dele com Amazonino Mendes. Kokó Rodrigues e Carlito Cego fizeram os arranjos para a canção, que teve como intérprete a incrível Lucilene Castro.

Ele e Casqueta estavam fazendo a passagem de som para a apresentação de Chico da Silva quando uma jovem nativa, de short e camiseta, atravessou o campo visual dos dois.

– Olha aí, Kokó, olha aí… – avisou Casqueta. – Essa é escrita grossa… (escrita grossa era uma gíria da dupla para a dimensão das pernas da mulherada)

– Porra, Casqueta, que mulher linda… – suspirou Kokó.

E ironizou:

– Ela vai ser a mãe dos meus filhos…

A garota deu uma ou duas olhadas para o músico e foi embora, sem dizer uma palavra. Mas a flecha de Cupido já havia sido disparada.

A música de Chico da Silva conquistou todos os prêmios do Fecap: melhor arranjo, melhor letra, melhor música, melhor intérprete, etc. Os integrantes da banda fizeram uma comemoração com estilo.

Kokó Rodrigues, entretanto, estava obcecado pela cunhantã parintinense que havia visto uma única vez.

Resultado: a banda de Chico da Silva voltou para Manaus, mas Kokó Rodrigues ficou em Parintins, para procurar aquela musa que não lhe deixava mais dormir direito: Alessandra Oliveira, na flor de seus 17 anos, uma das estudantes mais bonitas da cidade.

Com pouco mais de 20 anos, boa pinta, educado, elegante, dono de uma voz aveludada e afinada, e desfiando um repertório de MPB da melhor qualidade, Kokó Rodrigues começou a cantar nas noites parintinenses, onde angariou um razoável prestígio entre o público feminino.

Para voltar a encontrar Alessandra, foi conta de multiplicar. Para começarem a namorar, também.

Havia, porém, um obstáculo para a felicidade do casal: Alessandra era a filha caçula de Dona Juliete e de seu Carmona Gonçalves de Oliveira, um comerciante local da velha guarda, autoritário e moralista como um verdadeiro “coronel de barranco”, brabo que só siri em lata e mais grosso que dedo destroncado.

O velho Carmona não via com bons olhos aquele namoro da filha adolescente com aquele cantor paraense com pinta de cafajeste e fazia de tudo para embaçar a parada.

– Cerca ruim é que ensina boi a ser ladrão! – vociferava, quando alguém vinha lhe contar que tinha visto o casal conversando na Praça da Catedral.

Kokó Rodrigues e Alessandra Oliveira, já então com 18 anos

Para evitar a maledicência de uns e os ataques de fúria do velho Carmona, os dois pombinhos começaram a namorar escondido dos olhares incriminadores dos futriqueiros de plantão.

Kokó Rodrigues suportou estoicamente aquela indigesta provação pelos dois anos seguintes. Foi quando resolveu picar a mula e retornar para Belém. Mais sofrido do que bode embarcado, o cantor contou seus planos para a namorada. Alessandra foi curta e grossa:

– Se você for pra Belém, eu largo tudo e vou contigo. Só te digo isso!

A fuga do casal da ilha de Parintins foi rocambolesca. Como não dava para simplesmente comprar as passagens e embarcar num motor de linha, Kokó Rodrigues fretou um minúsculo bote de alumínio com cobertura de plástico. O barquinho não possuía nem holofote.

Por volta das 14h, com apenas duas sacolas de roupas nas mãos, os dois, se escondendo de tudo e de todos, embarcaram no bote num ponto previamente acordado no Lago da Francesa, e dali chegaram à cidade de Juriti por volta das 19h.

Sem iluminação no bote, o jeito foi esperar o luar surgir e iluminar o rio, para continuarem a viagem até Óbidos, onde Haroldo Tavares, cunhado de Kokó, era o prefeito da cidade. Deram sorte. Naquela noite a própria lua referendou aquela marchinha carnavalesca gravada por Ângela Maria: “Todos eles estão errados / A lua é dos namorados”.

Chegaram em Óbidos já com o dia amanhecendo e foram direto para a casa do prefeito, onde Kokó Rodrigues narrou a odisseia. Ouvindo aquilo, Haroldo Tavares ficou de boca aberta que nem burro que comeu urtiga, mas deu um papo reto:

– Fique tranquilo, que daqui ninguém lhe tira!

Eles passaram dois dias na casa do prefeito, aí viajaram para Santarém e de lá pegaram um avião para Belém.

Em Parintins, o “rapto da filha do Carmona” era o assunto do dia. Injuriado e puto da vida, o velho Carmona estava à beira de um ataque de nervos.

Músico, compositor e tocador de charango do bumbá Caprichoso, Sílvio Camaleão relatou a presepada, que observou de longe:

– O seu Carmona ficou possesso e só deu pro rabo dos vendedores de coco de Parintins. Acompanhado de uns seis bate-paus, ele começou a vasculhar a ilha, de ponta a ponta. Aí, quando via uma placa dizendo “Casa do Coco”, ele entendia que era “Casa do Kokó”, e já entrava distribuindo porrada. Quem tinha alguma placa de venda dizendo “Paraíso do Coco”, “Refúgio do Coco”, “Supermercado do Coco”, “Taverna do Coco”, “Mercadinho do Coco”, entrou na peia, sem dó nem piedade. O homem tava com o cão no couro.

Uma semana depois, para alívio dos vendedores de coco, o velho Carmona encerrou as diligências, reuniu a família e, mais nervoso do que gato em dia de faxina, foi peremptório:

– A partir de hoje, a Alessandra deixou de existir para a nossa família! Esqueçam que ela existe!

Dona Juliete reagiu:

– Ué, você não vai mais procurar nossa filha não?…

– Vou não, mulher, vou não! – avisou o velho Carmona. – Porque se eu encontrar, vou matar os dois!

A partir desse dia, o ambiente na casa do comerciante ficou com um ar de velório permanente. Ninguém podia falar no nome da menina. Era realmente como se ela tivesse morrido.

Instalados em Belém, com o apoio da família de Kokó Rodrigues, os dois pombinhos foram à luta. Durante o dia, o cantor trabalhava como escriturário e nos finais de semana fazia shows musicais em barzinhos. Alessandra também começou a trabalhar num escritório.

Com uma semana em Belém, Alessandra ligou para uma de suas cunhadas e falou que os dois estavam bem, que ninguém se preocupasse com eles, que estavam morando no Rio Grande do Sul – uma mentira básica, para desestimular o velho Carmona de ir procura-los.

Com o passar dos meses, Alessandra começou a conversar com a própria mãe e os telefonemas semanais para Parintins viraram uma rotina em sua vida.

Algumas vezes, quem atendia o telefone era o velho Carmona. Sabendo que era ele, Alessandra indagava gentilmente:

– Pai?!…

Ficava aquele silêncio do outro lado da linha e o velho batia o telefone. Alessandra passava o resto do dia chorando.

O tempo foi passando.

No dia 20 de junho de 1994, mesmo dia em que o Brasil enfrentava a Rússia pela Copa do Mundo (o Brasil ganhou de 2 a zero), nascia Yan, o primeiro filho do casal. Ele nasceu branquinho, puxando mais para o lado da mãe.

Naquele dia, Kokó tinha um contrato com a Alcoa para fazer uma sessão musical em Barcarena, onde ficava a sede da empresa. Ele teria que fazer isso – entreter previamente os torcedores com o melhor da MPB – em todos os jogos do Brasil, mas em compensação ia levantar uma grana preta.

De manhã cedo, por volta das 5h, ele deixou a esposa na clínica de um amigo, onde todo mundo era fã de Chico Buarque, e se mandou para Barcarena. Por conta do fã-clube do Chico, o procedimento médico foi 0800.

Yan Rodrigues, o primeiro filho do casal

Após o parto, Alessandra ligou para a família para dar a boa nova. Nesse dia, ela voltou a falar com o pai, que se disse duplamente feliz: pelo nascimento do neto e pela vitória do Brasil (que acabaria sendo campeão do mundo).

Em dezembro daquele ano, Kokó e Alessandra viajaram a Parintins para apresentar o rebento à família. Ainda ressabiado com aquele sogro mais grosso que papel de embrulhar prego, ele deu logo um toque pra esposa:

– Deixa eu levar o moleque no colo porque se o teu pai vier me agredir, vou me defender com o Yan…

O encontro foi bastante civilizado e não houve qualquer altercação.

Na confraternização do Natal, Kokó Rodrigues se aproximou do sogro, lhe deu um abraço e falou em seu (dele) ouvido:

– Seu Carmona, eu quero lhe pedir perdão pelo que fiz, por ter roubado a sua filha. Mas se tivesse que fazer de novo, eu faria do mesmo jeito, sem tirar nada, porque o que fiz foi por amor.

O velho não segurou as lágrimas. Ele abraçou Kokó de volta, beijou-lhe na testa e falou:

– Você é meu genro querido!

A partir desse dia, o velho Carmona e Kokó viraram unha e carne.

Depois disso, o casal se mudou para Manaus, onde Kokó Rodrigues montou uma pequena empresa de arte-educação, voltada para a ressocialização de menores infratores por meio de atividades musicais (curso, recitais, oficinas, etc), e continuou cantando na noite.

Foi aqui, também, que nasceu o segundo filho do casal, Luan, moreno como a família do pai.

Luan e Yan Rodrigues, mostrando que a vida é sempre preto no branco

Formado em música, pianista, maestro e compositor, Yan mora em São Paulo, mas está de malas prontas para viajar para a Europa no próximo ano.

Estudante de Jornalismo e Turismo, Luan mora na cidade de Porto, em Portugal, é estagiário em uma grande empresa e não tem planos para voltar ao Brasil tão cedo. Tutti buona gente.

Irmão mais velho de Alessandra, Carmona Filho foi presidente do bumbá Caprichoso, de 2005 a 2010, e conquistou três títulos. Sua gestão foi marcada pela ousadia. Foi ele quem tirou David Assayag, do bumbá Garantido, e o levou para assinar contrato no Caprichoso, em 2010.

Em uma das comemorações do título do Caprichoso, o velho Carmona – que só bebia Johnnie Walker Black e era sócio-fundador do touro negro – foi encontrado desmaiado em um dos banheiros do Curral Zeca Xibelão, com a cabeça quebrada. A família acredita que ele foi agredido.

Imediatamente ele foi trazido a Manaus, por conta do empenho pessoal do então vice-governador Omar Aziz, onde passou por uma cirurgia em regime de urgência. Devido à sua idade avançada e às gravidades da lesão, o procedimento médico deixou sequelas.

Alguns anos depois, quando estava visitando a filha Alessandra, em Manaus, e morando na casa do casal, o velho Carmona começou a passar mal.

Solícito como sempre, Kokó Rodrigues colocou o sogro no carro e saiu a mil por hora em direção ao Hospital e Pronto Socorro 28 de Agosto.

Mal estacionou, ele já colocou o velho Carmona numa cadeira de rodas e saiu alucinado em busca dos enfermeiros, para os quais entregou sua preciosa carga. Na sequência, foi fazer o preenchimento da papelada de internação.

Cinco minutos depois, um dos enfermeiros voltou a falar com ele:

– Sinto muito, meu senhor, mas seu sogro acabou de falecer!

Kokó Rodrigues relembra isso até hoje, sem esconder as lágrimas.

Dona Juliete Batista de Oliveira, que todo mundo achava um doce de pessoa, faleceu no dia 1º de abril de 2020, aos 79 anos, de parada cardíaca.

Mas Dona Juliete e o velho Carmona devem ter muito orgulho da filha Alessandra Oliveira Rodrigues.

Porque essa autêntica índia guerreira parintintim, com sua coragem, determinação e força de vontade, jogou todas as convenções sociais no lixo para estar vivendo há 33 anos com seu eterno namorado Kokó Rodrigues. Não é pouca porcaria.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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