Cantadas Literárias

Nada está acontecendo, é uma noite de celebridades

Postado por Simão Pessoa

Por Joaquim Ferreira dos Santos

Não o conheço. Ele também não tem a mínima idéia de quem eu sou. Não importa. É como se fosse um balé dos novos ritos. O ator da novela das oito cumprimenta reverente a todos na minha roda, como se lhe fosse um dever o gesto de simpatia. A cena resume a noite, todos empenhados na grande encenação de sorrisos.

É apenas uma festa no Copacabana Palace para fazer fotos e preencher as revistas amanhã. Uma bolha de notícia. Não mais se procura matar o horror, o horror dos tempos de guerra, mas preencher o vazio, o vazio das páginas em branco. Ver, ser visto e, a partir daí, em mais uma tentativa vã de saber a que se destina, existirmos.

O ator-que-cumprimenta parece estar na banal caminhada dos que seguem em direção ao banheiro. Enquanto não chega lá, faz o estilo gente boa recomendado em algum manual de auto-ajuda aos famosos. Pára na minha roda. E aí, beleza? Antes que o chamem mascarado-cabotino, sai estendendo a mão com ligeira flexão de ombros, como se recém-chegado de um estágio no teatro japonês. Pode parecer patético.

É apenas um homem em seu árduo ofício de prolongar a fama e se manter querido. Respeite-mo-lo. Vai-se indo, gente boa.

É segunda-feira no Rio de Janeiro, ninguém tem muito o que fazer na noite chuvosa. Na entrada do hotel, um pequeno grupo de curiosos se junta para ver os artistas e, contaminados pela maluquice da cidade em que vivem, quando aparece Malu Mader todos gritam “protagonista, protagonista”. Malu, que mais tarde fugiria dos fotógrafos da Caras, abaixa o vidro do carro e se deixa fotografar sorridente por essa patuléia de coadjuvantes, gente que ainda fixa seus ídolos em máquinas pré-digitais.

É uma cidade de artistas. Todos se reconhecem pelos nomes ou funções. Sem rancor, sem pedir texto melhor ao autor. Na chuva, na possibilidade zero de manter a maquiagem, os coadjuvantes parecem conformados com o anonimato de barrados no baile. Abrem alas para o Peugeot de Malu e seu marido, o guitarrista-titã Tony Belotto. Hoje a festa é sua. Hoje a festa é deles.

É apenas mais uma daquelas festas, de canapés esquisitos, que logo depois da publicação em Quem Acontece a História tratará de esquecer. O vestido de Juliana Paes acaba na cintura. Nada de especial. Apenas uma prise de euforia para manter os convidados por alguns minutos além, muito além do aborrecido mundo dos comuns. Sorria. Congele o sorriso por meia dúzia de segundos. O flash é o genérico eficiente do Prozac.

São os famosos. Uma atriz que gravou a tatuagem “Livrai-me de todo o mal, amém” nas costas divinas, um bombeiro que exibiu o dorso nu num calendário e mais dezenas de senhores que, antes mesmo de saírem na próxima edição da Chiques, podem ilustrar os jornais num novo escândalo de corrupção. Um deles, jovem-empresário-conquistador, tinha sido acionado, ainda naquela tarde, a depositar em juízo os R$ 2 milhões pela contratação de um show, jamais pago, dos Trapalhões em 1988. Parecia indiferente aos problemas dessa ordem jurídica ou de qualquer outra ordem terrena. De olhos fechados, sussurrando os melhores versos da canção dentro da orelha da namorada, ele dançava ao som da balada “Ruby”, cantada por Ray Charles.

Os candelabros do Copa não pedem folha corrida de seus iluminados. Projetam luz em todos com a mesma dignidade e honra. Há quem lave dinheiro nos gerentes gentis dos bancos suíços. Festas de celebridades lavam a imagem na legenda elogiosa de um redator estressado.

Estão todos reunidos aqui para a festa de lançamento de uma novela da Globo, uma oportunidade carioca de se ver no mesmo salão um senador da República, um travesti montado de Carmen Miranda, outro de Marilyn Monroe e uma cineasta com dificuldade de explicar o que fez com o dinheiro que o Estado lhe deu para filmar. São todos iguais esta noite. Recepcionistas empertigadas sorriem para um ponto vago no salão onde não tem ninguém. Leram a vida de Adriane Galisteu e sabem que a loura milionária já esteve ali em outra encarnação, faiscando com os olhos o mesmo mantra esperançoso – “me descobre, moço, me descobre”.

Numa festa de celebridades roça-se o mito. Isso dá onda, eleva e consola a dor anônima. É a droga do momento. Ninguém está aqui exatamente para se divertir. O prazer é quase zero. Não há muito o que fazer a não ser circular e, como vai?, fixar o sorriso. O papo é outro. Trabalho. Esta festa é a que os manuais chamam de “para produzir imagem”. “Oportunidade de foto”. Aparecer. Representar. Dar a cara ao tapa do flash. É o business da coisa, uma convenção ao estilo da profissão, com atrizes de vestidos transparentes, mas todos visando gerar negócios como qualquer fórum de empresários. A ata será escrita em papel quatro cores por cachos e cachos de fotógrafos, aqueles que estão ali gritando “ei, Gilberto, dá um selinho na Deborah”, “ei, Fábio, olha pra cá”.

A produção da festa da novela “Celebridade” despejou caixas de uísque 12 anos, litros de suco de melancia e espera que todos aproveitem a vitrine. Esperam pela pose do que imaginam ser o novo Gatsby, o novo Valentino, o novo ai meu deus! da mídia. O marido da ministra que viajou com dinheiro público para congresso de evangélicos está de chapéu-panamá. O ator de “Malhação”, de gorro hip-hop. Alhos, bugalhos, todos na bolha protegida dessa existência cheia de galhos. Estão nem aí, como na letra da música que enche a pista de dança. Mas sem censura, sem moralismo. São os tempos e as técnicas dos novos trabalhos.

Suaves, dentro do ar-refrigerado do Golden Room, as celebridades brincam de novela e deixam-se cegar pelos flashes para tudo o que lá fora é a quente apoquentação dos trópicos.

 

(Publicado no livro “Em Busca do Borogodó Perdido”)

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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