Cantadas Literárias

Reggae trágico ou Breve História de Sete Assassinatos

Marlon James: viagem turbulenta à terra de Jah conduzida por dezenas de personagens
Postado por Simão Pessoa

Por Cristovão Tezza

Na imaginação dos brasileiros, a Jamaica evoca um país multicolorido, cenário de surfe, paz e amor ornado com dreadlocks, um inocente aroma de Cannabis no ar e embalado pelo reggae de Bob Marley. Na contramão dessa visão mansa, a leitura de Breve História de Sete Assassinatos, o terceiro romance do jamaicano Marlon James, de 46 anos, dá uma assustadora injeção de realidade naquela imagem que moveu boa parte dos sonhos da geração contestatória dos anos 1970.

Ganhador do Man Booker Prize de 2015, o livro é um painel devastador da Jamaica dividida que emergiu da independência da Inglaterra, em 1962. E que, poucos anos depois, na esteira da explosão mundial de Bob Marley (1945-1981), se tornou uma estranha salada psicodélica: à sombra da Revolução Cubana, de um lado, e dos interesses da CIA, de outro, mesclava a paranoia da Guerra Fria com as peculiaridades do movimento rastafári professado por Marley — que via em Haile Selassie I (1892-1975), imperador da Etiópia, a reencarnação do deus Jah e o profeta do retorno dos negros do mundo inteiro à África.

O romance de James — convidado da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que acontece nesta semana — parte de um episódio real: a tentativa de assassinato de Marley, ocorrida em 3 de dezembro de 1976, poucos dias antes das eleições no país, quando sete homens invadiram sua casa-estúdio em Kingston, capital da Jamaica, dispararam mais de oitenta tiros, ferindo o cantor, sua mulher e seu empresário. Milagrosamente, ninguém morreu. E, misteriosamente, ninguém foi preso — até hoje, o atentado permanece inexplicado.

Dois dias depois, ainda com a bala que lhe atravessou o peito e parou no braço, o cantor faria um show em defesa da paz, chamado Smile Jamaica. Pela sua imensa popularidade, Marley era o fiel da balança em um momento de polarização extrema. De um lado, Michael Manley, o candidato de esquerda do Partido Nacional Popular, que então flertava com Cuba, e, de outro, Edward Seaga, do Partido Trabalhista da Jamaica, apoiado pela CIA. Nas sombras do embate entre o populismo da esquerda e a truculência da direita, gangues de traficantes das favelas de Kingston estão igualmente em guerra mortal — e é pelo olhar de dezenas de personagens desse submundo que a história se conta.

Ao rastrear o destino ficcional dos que tentaram matar Marley, o romance se concentra em dias específicos dos anos de 1976, 1979, 1985 e 1991, na Jamaica e nos Estados Unidos, para onde as gangues locais se expandiram no negócio do tráfico. Cada capítulo é narrado por um personagem diferente, em primeira pessoa. E dessas vozes individuais, marcadas por uma oralidade embrutecida, o leitor vai montando seu quebra-cabeça. Ao explicar sua opção narrativa, Marlon James já disse que o leitor não deve ter um “senso de perspectiva” maior do que o dos próprios personagens. É uma boa metáfora para ilustrar a estrutura do livro, mas é claro que personagens não falam senão atravessados pela intenção de quem os escreve. Numa das cenas acompanhamos, de viva voz, o que se passa na cabeça de um dos pistoleiros do atentado enquanto ele vai sendo enterrado vivo — imagem que dá boa medida da violência gótica do texto de James.

O preço literário dessa sinfonia de vozes é a eventual perda de rumo de que em certos momentos se ressente o romance, engolfado na volúpia autorreferente. A algaravia da violência percorre assassinatos, estupros, consumo de drogas, escatologia sexual, tortura, racismo, tudo sob um frequente metralhar de palavrões, num confessionário íntimo que se revela, muitas vezes, paradoxalmente desprovido de introspecção — muitos dos personagens são sociopatas que falam e se movem com a pura urgência instintiva de um bicho acuado. Entretanto, é tal a intensidade cega de suas falas que o livro segura o leitor até o fim. De certa forma, a estética à Quentin Tarantino, o cineasta que decupou a violência em filmes como Pulp Fiction (1994), já preparou nossa sensibilidade para aceitar a brutalidade gráfica do olhar de James.

Nesse panorama, três figuras sobressaem, sempre recolocando a história no seu eixo e dando um senso de perspectiva ao romance. Josey Wales é um chefe de bando que estaria entre os sete perpetradores do atentado e acabaria amigo do Cantor (como o livro se refere a Marley). Anos depois, chefão do tráfico em Nova York, Wales comete uma sequência alucinada de assassinatos, descontrole que selará sua desgraça. Talvez a personagem mais sutil e complexa do livro, Nina Burgess é uma jovem que tem um affair com Marley (“Só duas pessoas sabem que Midnight Ravers foi escrita para mim”, diz, referindo-se à música do ídolo).

Tentando reencontrá-lo, ela por acaso testemunha a tentativa de assassinato e foge para os Estados Unidos, onde vai reaparecer com outros nomes. Nina funciona como uma janela em que a tensão racial — inescapável em cada página do livro — passa da pura catarse à ponderação mais fria. Também com ela se entrevê a distância cultural sempre traumática entre a ex-colônia e a metrópole. Distância que no livro se ilustra pelo dialeto popular jamaicano: alternadamente, os personagens se orgulham de seu jeito de falar e se envergonham dele, por acharem-no inferior ao linguajar dos brancos.

Finalmente, é por meio do “branquelo” Alex Pierce, personagem mais leve do livro, que uma série de fios soltos ganha liga. Repórter da revista Rolling Stone com a função de acompanhar as fofocas de Mick Jagger em visita à Jamaica, ele acaba se envolvendo indiretamente no atentado. Há um toque farsesco no personagem — que, a certa altura, é sequestrado e torturado por traficantes interessados em mudar uma reportagem que ele está escrevendo. É no embalo dessa cena engraçada que se fecha a turbulenta viagem pela terra de Jah.

N. R.: Publicado em VEJA de 26 de julho de 2017, edição nº 2540

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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