Por Mouzar Benedito
Um dia desses, um velho amigo apreciador de cachaça mineira me mandou essa pergunta via whatsapp: “Compadre, poderia me explicar o que quer dizer furupa?”
Furupa era o apelido da senhora do rótulo da cachaça. O significado eu perguntei pra muita gente e ninguém soube me dizer. Descendente de índios e negros, nascida na zona rural de Nova Resende (MG), ela se mudou jovem para a cidade no início do século XX. Chamava-se Ana.
Na época, todas as mulheres dali usavam cabelos compridos, mas os dela eram curtos, pixaim, por isso foi apelidada de Homem de Saia, que acabou virando Ana de Saia. Depois, não sei porquê, Furupa.
Minha mãe a conheceu mocinha e dizia que a cara dela não mudou ao longo do tempo. Quando eu era criança, a admirava muito e gostava bastante dela – como todos os moradores da cidade, aliás.
Ela, mendiga, era muito respeitada. Almoçava em qualquer casa que quisesse, fosse do prefeito ou de alguma casa de classe média. Entrava numa casa na hora do almoço, ocupava um lugar na mesa… e se alguém negasse almoço a ela era excomungado por todo mundo.
Pitava direto fumo de corda num cachimbinho de barro. Desde quando eu era jovem nós brincávamos dizendo que ela era minha namorada, desfilávamos de braços dados no jardim da praça central da cidade (eu já morava em São Paulo, mas ia lá com muita frequência). Ela sempre pitando.
Um dia, quando eu fumava cachimbo, sentados num banco da praça, propus: “Ana, já que somos namorados, vamos trocar os pitos um pouco?”. Ela topou, pegou meu cachimbo italiano abastecido com fumo holandês e eu peguei o cachimbinho dela, de Barro com fumo de corda. Dei duas baforadas e fiquei tonto quase meia hora. E ela fumava aquilo com mais de 90 anos.
Um dia, um grupo resolveu fazer uma casinha pra ela. Ficava depois de uma rua de ladeira forte, e ela subia numa boa.
Ah… e bebia cachaça direto. Um litro por dia.
A última vez que a vi foi na década de 1990. Fui com a Célia e um amigo à casa dela às 9h da manhã. Era no quintal de uma casa maior, em que morava um rapaz a quem foi dada uma obrigação: na hora que ela acordasse, tinha que ter um litro de cachaça em sua mesinha de cabeceira. Nesse dia, ela estava acordando nessa hora e rapaz pediu pra gente conversar com ela enquanto ele corria até a venda pra comprar um litro da “marvada”.
Na mesinha de cabeceira, o cachimbinho dela já estava abastecido com fumo de corda. Acordou alegre com a nossa presença, acendeu o cachimbo e conversamos. Ela se lembrava bem de mim… e o rapaz voltou com o litro de pinga propondo uma comemoração. Mostrou a carteira de identidade dela e fiquei sabendo que era aniversário de 101 anos dela.
Há alguns anos precisei fazer uns cartões de visita, a moça da gráfica me disse que podia pôr uma foto no verso e me lembrei de uma com ela, tirada num circo de touradas (no interior de Minas tinha uns itinerantes). Mando a foto em que estou jovem e ela com a cara de sempre e o vestido sujo.
Uma vez fomos com uma equipe de futebol jogar em Nova Resende e a encontrei com um vestido limpinho. Uma hora e pouco depois a reencontrei e ela tinha trocado o tal vestido por um bem sujo. Perguntei por que e ela disse: “Chegou ontem esse monte de gente de São Paulo. E se eu estiver limpinha eles não me dão dinheiro”.
Faltou falar do rótulo da cachaça…
Um amigo, o Fausto, começou a alambicar uma pinga boa e sugeri a ele dar o nome de Furupa, grande apreciadora. Outro amigo, o Luizim, já tinha dado a mesma sugestão. Ele topou.
O resto é história.