Por José Castello
Tomado sempre pela compulsão de falar, um falar sem pausas que não lhe permitia algumas vezes nem mesmo ouvir o que dizia, a palavra foi, a rigor, uma sedução constante, mas também um tormento para João Antônio. Essa relação aflita com a língua se evidenciou, antes mesmo que eu viesse a ler seus livros, já no primeiro momento em que o vi.
Meados dos 70. Um homem entrou rastejando na redação do Diário de Notícias, no Centro, Rio de Janeiro. Arrastava uma perna, envolta em ataduras e bandagens escandalosas, e praguejava. Alguns repórteres, quase todos muito jovens, logo o cercaram. “Um ônibus quase passou por cima de mim”, vociferou o homem. “Por muito pouco não morri”, e sua voz ressoou pela sala, misturando-se à crepitação das máquinas de escrever, à fumaça espessa dos cigarros, nos despertando um pouco.
Fiquei a distância, ouvindo aquele homem baixinho, de cabelos encaracolados, os braços cobertos de pelos, a pele morena, a voz ardente, que agora se sentava e estendia a perna sobre uma cadeira, em posição dramática. “O chefe já chegou?”, perguntou, tentando conter o falatório que arrastava atrás de si. Responderam, sem muita certeza, que ainda não.
Ele passou a reclamar do despreparo de nossos motoristas, e de seu desespero pelos baixos salários que os convertiam em assassinos, e também da perna que lhe pesava, mas disse que o pior era o braço direito, sobre o qual caíra, e que lhe doía muito, mal podia mexer com os dedos. “Não posso fazer movimento algum”, explicou, enquanto tentava alongar o cotovelo sobre a mesa, movimento pontuado por caretas e interjeições. “O médico me disse que serão pelo menos quarenta dias paralisado”, disse, aumentando o volume da voz, mas em vez de desamparo havia naquele comunicado uma ponta de sarcasmo.
Havia pelo menos um ano, eu trabalhava como repórter do Diário de Notícias, um jornal decadente que vivia apenas do nome e da tradição. Sempre via aquele homem barulhento a circular pela redação, e sabia que ele era considerado um dos melhores repórteres do jornal, um profissional de elite, mas na verdade nunca lhe dera muita importância. Agora, ao vê-lo cheio de ligaduras e curativos, e com uma plateia tão entusiástica, achei que devia considera-lo melhor.
Sempre de longe, simulando estar concentrado na redação de uma reportagem, acompanhei a entrada em cena do chefe, um homem que, com movimentos estudados e falsa pompa, nos causava horror. O grande teatro da imprensa, com seus personagens exagerados, enredos previsíveis e ritos sumários, se me intimidava, me parecia também fascinante. Ainda mais quando o papel principal era desempenhado por um talento como João Antônio, de quem se podia até dizer que fosse extravagante e aborrecido, mas a quem não se podia negar o reconhecimento de um estilo muito particular.
O chefe se instalou na mesa principal, que ficava bem diante da minha, um emaranhado de papéis, fios de telefone, canetas e bilhetes, um copo com resto de café frio ameaçando cair no chão. Era um sujeito de bigodes, sempre nervoso, uma gravata torta afrouxada no pescoço, um paletó surrado no encosto da cadeira e aquela pilha de laudas e telegramas sobre a mesa, os telefones a tocar e gente a perguntar, perguntar, até não poder mais. E logo o homem baixinho se aproximou, o rosto coberto de caretas, a mão machucada erguida como um troféu, a perna doente arrastada atrás como um cachorro que já se alimentou e só quer dormir.
“Então você sofreu um atentado?”, o chefe não se conteve, evocando com ironia os tempos duros em que vivíamos. Eram anos de luta surda, de uma guerra sem nome que sacudia o Brasil, e brincadeiras não caíam muito bem, mas o chefe era mesmo arrogante e, além disso, era o chefe. João Antônio pareceu não gostar muito da zombaria, ou então odiava o chefe, e só agora eu descobria isso. “Antes fosse só uma brincadeira”, respondeu ele, enfatizando o tom de irritação. “Não estou para piadas, hoje estou me torcendo de dor.”
Tirou um lenço amarfanhado do bolso, enxugou a testa que estava coberta de suor e, com uma lentidão maldita, que era apenas uma forma de enervar o chefe, começou a descrever em detalhes o confuso acidente de que fora vítima. Havia um ônibus, um motorista alcoolizado, um sinal defeituoso, um asfalto cheio de buracos e muitos curiosos, que quase o asfixiaram antes que a ambulância chegasse para levá-lo para o hospital.
“Sim, sim”, o chefe o interrompia, querendo chegar logo ao desfecho da história. “Mas, e depois?”, insistiu. João Antônio tinha, porém, esse dom fabuloso de espichar as histórias, distende-las até o absurdo e então rechear os rombos que nelas abria, verdadeiras feridas, com pequenos relatos curiosos, digressões acaloradas e indignação. A essa altura, enquanto fingia ouvir, o chefe já estava lendo uma reportagem datilografada e cheia de emendas a caneta que um repórter colocara sobre a mesa. “Estou ouvindo, estou ouvindo”, dizia.
Mal-humorado, João Antônio fazia algumas pausas de decepção, ou fingia que esperava. “É que estamos a meia hora do fechamento”, lembrou o chefe, dando os primeiros sinais de desespero. “Será que você não percebe?” Mas João não se abalou. E aproveitou o momento em que a atenção do chefe estava mais diluída, em que ele dizia “sim, sim” apenas como um tique nervoso, ou um vício, para comunicar o pior: “E o médico me disse que serão quarenta dias em casa, com o braço e a perna imobilizados, em repouso absoluto.” Aproveitando o silêncio constrangido que se seguiu, ele ainda conseguiu dizer: “ Talvez sessenta.” E pude ver, mesmo sem ver, as gargalhadas que se esforçava para esconder, e que guardaria para si até o final daquele ato, nem que para isso tivesse que sufocar.
Agora, o pobre chefe, pois eu já sentia pena dele, ainda que não o odiasse, o pobre chefe ergueu os olhos. Examinou João Antônio de alto a baixo, com o rigor severo de um anatomista, e depois perguntou: “E onde está a licença médica?” Senti que algo de ruim estava para acontecer, pois João deixou a boca cair, bem aberta, e soltou os lábios como se não lhe pertencessem; depois disso, passou a mastigar o vazio, a revolver a língua contra o céu da boca, a franzir as bochechas, até que, enrubescido, gritou: “Eu estou aqui morrendo de dor, faço o sacrifício de vir para lhe dar uma satisfação e você vem me perguntar por um papel?” E, como não ouvisse nenhuma resposta, repetiu, agora aos berros: “Um papel?”
O chefe tinha a fama de comunista, ou pelo menos era ligado ao grupo de jornalistas que mantinha relações estreitas com o velho Partidão. Por essa época, as redações dos grandes jornais brasileiros estavam tomadas por comunistas clássicos, que galgavam os cargos de chefia e os postos de poder inspirados pelos preceitos, vantajosos, da “infiltração”; não era preciso afrontar a ditadura, argumentavam, bastava roê-la por dentro, como um rato vermelho.
Era melhor, mais sadia e mais eficaz a luta silenciosa, branda, apaziguadora até, que a histeria dos jovens guerrilheiros que praticavam assaltos e sequestros, sem chegar a lugar algum que não fosse a morte. Eles pensavam assim, e, pensando assim, tinham as melhoras posições, os melhores salários e acumulavam muito poder, e apesar disso talvez tivessem mesmo razão. Tinham um poder silencioso, quase cínico, uma força secreta que João Antônio, na intimidade, não se cansava de ridicularizar. “Lá vem o senhor de engenho”, costumava dizer assim que via o chefe despontar no fundo da redação. “Onde estará o chicote?”
E para nós, naqueles tempos radicalizados, era realmente estranho, quase obsceno, que um comunista viesse, diante de uma vítima, perguntar por um documento oficial. O pobre chefe ficou olhando a boca aberta de João, já que ela continuava aberta mesmo depois do desabafo, e certamente se perguntando como poderia dar uma ordem sem parecer autoritária, ou até reacionário. Nem percebeu que João Antônio já estava de pé, e beijava as repórteres com desenvoltura, preparando-se para sair. E saiu, sem nem mesmo se despedir, arrastando a perna com alvoroço.
Vi quando chefe largou pelo meio a matéria que lia, ergueu-se, arrastando a cadeira, e foi na direção do banheiro masculino. Trancou-se – e eu o imaginei chorando, ou em alguma cerimônia íntima de autoflagelação, pois sem concordar com o pedido de João, e só porque ficara em silêncio temeroso, acabara concordando com ele. Faltava-lhe o estofo dramático, o domínio de cena, a desenvoltura que seu repórter tinha de sobra. Faltava-lhe malandragem – modalidade na qual João Antônio, escolado entre os merdunchos, como gostava de chamar os outsiders daqueles tempos desprovidos de elegância, era uma espécie de doutor. Esse era o grande defeito daqueles velhos comunistas, pensei: não tinham elasticidade espiritual, e, em consequência, suas almas pareciam engessadas. Voltei a me concentrar em minha matéria, que deixara pelo meio na velha Remington cujas teclas enferrujadas era preciso socar para escrever, e me esqueci do caso.
Dois ou três dias depois, um sábado tórrido, decidi dar uma caminhada ao longo da praia de Copacabana. Ia perdido naqueles pensamentos frouxos que germinam quando estamos sozinhos e andamos sem destino fixo, quando uma mão peluda me segurou pelo ombro. “Não diga a ninguém que me viu”, a mão me advertiu antes mesmo que eu pudesse me virar. “Finja que sou um fantasma.” Voltei-me e vi João Antônio, que, vestindo bermudas pretas de corte antigo e calçando um par de surradas havaianas, dava sua caminhada ao longo do mar. A mão peluda, a direita, era a mesma que, dias antes, estava engessada. Logo olhei para baixo e constatei que as duas pernas estavam também em perfeito estado. Nada de bandagens, ataduras, gesso, nenhum sinal do acidente que quase lhe amputara um pé. As pernas estavam, ao contrário, queimadas de sol, e João Antônio, com uma toalha de mão enrolada sob o braço, parecia muito feliz.
“É isso mesmo”, disse ele, assim que percebeu meus olhos fixados em seus joelhos. “Eu fingi.” O impressionante não era que tivesse mentido para conseguir uns dias de folga, expediente que é bem mais usual do que os chefes, mesmo os mais desconfiados, podem cogitar. Mas, sim, o sofisticado teatro que ele armara para obter o que desejava. João Antônio, o homem de coração quente, não parecia combinar com tanta premeditação. Mas dessa vez ele me obrigava a admitir que as pessoas são muito mais dissimuladas do que costumamos crer. “Tenho uma antiga namorada que é enfermeira”, tratou de explicar, “e ela me engessou.”
Depois, ele mesmo quebrara o gesso, desferindo golpes no próprio braço com um martelo de cozinha. Ainda usara o martelo, logo depois, para bater uns bifes. Chegara a machucar um dedo, o indicador, que agora levava um curativo de verdade, mas já quase não sentia dor. Quanto à perna, o falso curativo era apenas um amontoado de bandagens, que ele jogara em uma lixeira a dois quarteirões do jornal, ainda na Rua do Riachuelo, e logo depois entrara em um bar para tomar um chope e comemorar. Ainda tomara mais uns tragos algumas quadras abaixo, só para não desperdiçar a sensação de vitória. Ele vencera, isso não se podia discutir.
Começamos a caminhar. Em poucos minutos, entendi que João Antônio era um homem para quem as palavras, mesmo as suas, eram sempre movediças, valendo mais pela serventia que pelo significado, devendo ser vistas, primeiro, como instrumentos de luta. Na boca de João, a palavra transbordava para estrangular seus interlocutores, que, como eu ali, eram sempre obrigados a se debater naquele emaranhado de frases, sentenças que se costuravam sabe-se lá através de que mistérios, frases enroscadas em outras frases, um novelo de palavras.
João desandou a falar, emendando histórias irrelevantes a comentários furiosos, casos antigos a vaticínios pessimistas a respeito do futuro brasileiro, e, à medida que caminhávamos, parecia mais e mais entusiasmado. Tentei interrompê-lo por várias vezes; não consegui. Não pude nem mesmo responder às perguntas que ele me fazia; antes mesmo que eu pudesse falar, ele já me oferecia as respostas. Só me restou caminhar a seu lado e me deixar entranhar por aquele lodaçal de palavras, que me seduzia mas também me dava nos nervos. Em alguns momentos, quase asfixiado, achei que nunca mais iria me aproximar daquele homem. Mas isso era só uma intenção que não levava em conta o seu contrário, a excitação mental que a companhia de João Antônio sempre despertou em mim.
À altura do Leme, paramos um pouco para tomar um mate. Fiquei olhando aquele homem atarracado, as bermudas amarrotadas, a camisa semi-aberta sem nenhuma elegância, as sandálias tortas com as solas gastas, já sem cor, e me fixei em particular no seu rosto redondo, a barba por fazer, os olhos ainda embaçados pela noite, as costeletas imperfeitas, o desleixo como expressão de um modo torcido de ver o mundo. Tentei me abstrair. Quem o visse ali, agachado diante daquele vendedor ambulante, a mão metida no bolso a catar o dinheiro para pagar o mate, pensaria num operário, num lojista, num motorista em dia de feriado, num bancária deprimido – tudo isso que João Antônio foi um pouco. Não veria o escritor; mas isso será coisa que se vê?
João gostava das calças quadriculas, penteava os cabelos em ondas de carapinhas, cultivava um tipo de vaidade desleixada e viril. Ali estava um homem dono de si. E eu, que apenas me exercitava na arte em que ele era um mestre, a reportagem, querendo reter aquele turbilhão de palavras. Repeti: “João, preciso ir.” Não precisava ir, era só minha ansiedade que me levava a dizer. Eu temia ser sugado.
João Antônio estava sempre tão indignado, sentia tanta aversão pela realidade, tanta raiva, e sabia expressar essas visões entristecidas com tanta clareza, que a vida, com ele, parecia vacilar. Nada daria certo; os intelectuais eram seres preguiçosos, impróprios para a verdade; os políticos simplesmente não podiam ser levados a sério; a ordem das coisas parecia prestes a se desvanecer, pois a vida, tal qual nós a víamos, era só simulação e mentira. Nessa visão de mundo havia, sim, muita mágoa, mas era dela que João Antônio tirava seu apego à vida, e isso eu, que apenas me afogava, não podia ainda entender.
João Antônio simulou o desastre para ter, em seu lugar, a felicidade. Sempre compreendera as fronteiras extremas que ligam as coisas díspares; nunca se recusara a aceitar a imaginação como parte ativa do real. Um homem assim, jogado em um mundo pragmático e cartesiano, só poderia desejar sumir. Esse desejo, como uma premonição, se materializaria muitos anos depois.
A biografia de João Antônio ajuda a entender um pouco a urgência com que viveu, falou e escreveu. Ele nasceu em São Paulo, em 1937. Boa parte de sua habilidade para viver foi herdada do pai, o funcionário de frigorífico e jardineiro João Antônio Ferreira, português de Trás-os-Montes, que sabia recitar os nomes das orquídeas em latim e depois se tornou dono de um armazém e até sócio de uma pedreira que vivia a falir. “Meu pai sempre soube driblar para viver”, ele me disse. O pai conviveu com músicos do porte de Garoto e era ele próprio um bom tocador de bandolim. Tiveram uma relação difícil.
O escritor começou a vida trabalhando como office-boy. Nas horas vagas, frequentava a zona de meretrício e jogava sinuca, conhecendo ali, sem saber disso, alguns de seus melhores personagens. Trabalhou no mesmo frigorífico em que o pai trabalhava, depois foi bancário e redator de publicidade. Estudou jornalismo e logo começou a escrever e a publicar seus contos em jornais e revistas. No fim dos anos 50, um incêndio destruiu a casa da família, na Lapa paulista, e levou consigo os originais de “Malagueta, Perus e Bacanaço”, que João Antônio acabara de escrever e que só seria publicado em 1963. Ele foi obrigado a reescrever todo o livro, o que fez com paciência e um pouco de sorte. Graças a Mário da Silva Brito, conseguiu uma autorização para usar a cabine 27 da Biblioteca Mário de Andrade, que transformou em seu escritório particular.
Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1964. Trabalhou no Jornal do Brasil, na primeira equipe da revista Realidade, na revista Manchete. Quatro anos depois, internado por três meses para tratamento no Sanatório da Muda, começou a elaborar sem saber o livro “Casa de loucos”, que dá forma a seu amor por Lima Barreto, de quem se considerava herdeiro literário. Depois, recuperado, trabalhou em O Globo, na editora Rio Gráfico e no Diário de Notícias, onde o conheci. Tornou-se cronista de O Pasquim. Em seu apartamento, ressuscitou o célebre “Livro de cabeceira do homem”, editado por Ênio Silveira na prestigiosa Civilização Brasileira. Passei a frequentá-lo nessa época. João fazia o trabalho de edição em meio a pilhas italianas de jornais velhos, construções temerárias de que parecia incapaz de se livrar. A mulher, Teresa, uma negra de lábios grossos recém-chegada de um romance de Lima Barreto, nos servia cafezinhos. João trabalhava sem método, ou melhor, com um método muito peculiar: a cada página que lia, correspondia uma longa divagação, que avançava pela noite. João não precisava de muito estímulo para se encher de fúria.
As ideias de João Antônia sobre a literatura estão no texto “Corpo-a-corpo com a vida”, capítulo da coletânea de reportagens e artigos de “Malhação do Judas carioca”, seu terceiro livro, de 1975. Ele desejava uma literatura que aderisse à vida e que, por mais bem-sucedida que fosse, não excluísse o reconhecimento de que é sempre menos importante que ela. Não se interessava, na verdade, pela busca do texto perfeito, chegando, ao contrário, a desconfiar daqueles que dele se aproximaram, já que não lhe pareciam adequadas para competir com a realidade, que, a seu ver, era sempre dada a desvios, dejetos e imundícies. Daí seu apego aos merdunchos; aliás, gostava de se considerar um deles, o que não era de todo um disparate, se considerarmos a infância difícil e o gosto, que vinha da juventude, de frequentar salas de sinuca, prostíbulos, bares abjetos, lugares nos quais, na verdade, ele se sentia muito bem.
Gostava dos marginais, dos malandros, dos infelizes, não por algum tipo sórdido de piedade, mas porque se julgava um deles, e de fato era. Via nos merdunchos dotes especiais: não estavam anestesiados para a vida, nem se preocupavam com formalidades (João gostava de dizer “salamaleques”, palavra antiga que significa “afetação”), e também não tinham o hábito de vender a própria alma. Podiam estar mal – mas eram o que eram. João cultivava em si mesmo, com nobreza, essa ascendência merduncha. Traçou a linha de seus ancestrais: Carne Frita, Boca Murcha, Estilingue, Malagueta, Bacanaço, nomes de sujeitos sem cidadania, que sobreviviam na noite graças a expedientes inconfessáveis e à arte da malandragem. A arte de ser João.
João Antônio desprezava os “embelecos” (outra palavra antiga, hoje preferimos dizer “imposturas”) e chegou a propor uma literatura escrita “de bandido para bandido”; julgava que o escritor devia tomar o ponto de vista dos marginalizados (hoje diríamos excluídos) e incluía nessa categoria, com uma dose pesada de romantismo, os bicheiros, traficantes, jogadores e outros tipos de malfeitores. Jamais escondeu seu gosto pelo realismo, se bem que esse era um realismo de boxeador e não de retratista, pois ele achava que a literatura só interessa quando tenta enfrentar a realidade, desafia-la, atiça-la a se mostrar tal qual é.
Queria “uma literatura de murro e porrada”, e por isso seus livros, coletâneas de textos curtos e raivosos, estão repletos de referências ao presente e referências explícitas e quase desnecessárias – o INPS, por exemplo, que hoje nem existe mais com esse nome, mas que, nomeando, ele tentava reter. Dizia faltar ao país a figura do “romancista-marginal”, papel que tentava exercer com seus escritos, sempre breves e incisivos, cheios de contradição como ele mesmo, que era doce apesar de alvoroçado, e carinhoso apesar de cheio de raiva.
João tinha um alter ego para uso íntimo, o Truman Capote que escreveu “A sangue-frio”, e repetia tanto essa referência que parecia mais querer se livrar dela, esvaziá-la de qualquer sentido, do que perpetuá-la. De qualquer forma, ela denota esse gosto pela escrita fronteiriça, que fica a meio caminho entre a invenção e a realidade, à borda dos gêneros instituídos, e que era sempre um pouco suja, apressada, exibindo um desleixo proposital que ele jamais permitiu que se petrificasse em um estilo.
Escreveu sobre guardadores de automóveis, tocadores de cavaquinho, jogadores de futebol, loucos, pingentes, andarilhos como ele, que estava sempre e caminhar por Copacabana metido em calções antigos, com a cintura alta, à espera de um encontro imprevisto que lhe fornecesse um interlocutor. “Está certo que não me leiam”, ele me disse um dia. “Mas queria ao menos que ouvissem minhas histórias, para que elas pudessem existir.” Desde então, por mais atrasado ou exausto que estivesse, jamais deixei um relato de João Antônio pelo meio.
Ele viveu num mundo de dicotomias, repartido entre o bem, em geral do lado dos marginais, esquecidos e excluídos, e o mal, que estava sempre com os ricaços, poderosos e bem-sucedidos, e embora não visse o mundo de modo simplista, pois aceitava e até se entusiasmava com as contradições que todos carregamos, jamais admitiria a possibilidade de um mundo unificado e igual como o de hoje – e talvez por isso tenha morrido tão cedo.
João concentrava todos os fantasmas de sua época na “grande imprensa”, em eterno contraste com a “imprensa nanica”, expressão que ele cunhou nas páginas de O Pasquim, e que logo se tornou bastante popular, passando a designar, de modo mais carinhoso, o que se chamava, em geral, de “imprensa alternativa”. E, se falava sem parar, derramando seu verbo como sangue, é porque se sentia sufocado, asfixiado mesmo por um mundo que se organizava cada vez mais no sentido contrário de seus sonhos, e que o deixava para trás, tão para trás que teve que morrer; então, agarrava-se teimosamente aos valores e às expressões fora de moda (gostava de falar do “maximalismo”, por exemplo, em vez do “bolchevismo”), e se enfurecia com os “formalistas” cheios de pudores e de recatos, preferindo os escritores “mais sérios, mais atraídos, mais sensíveis, fecundos, rasgados, num corpo-a-corpo com a vida”. Pois a vida foi a sua paixão.
Voltamos a nos encontrar outras vezes, por acaso, na praia do Copacabana. Mas tenho de admitir que, sempre que o avistava de longe, mudava de rumo e, prudente, o evitava. Encontrar com João era um risco. Ele me arrastava para onde queria, prolongava a conversa até o ponto que lhe era mais adequado, e emendava as histórias umas nas outras, em abismo, como uma Sherazade barbada.
João tinha verdadeiro horror de se despedir. Sempre que eu dizia: “Bem, tenho que ir”, ele remendava: “Eu te acompanho.” Eu pensava que isso era o sinal de uma grande solidão – e era. Mas havia outra coisa: uma entrega sem limites aos prazeres da palavra, que o conduzia ao êxtase mas também agia como um nevoeiro que o protegia da rudeza do mundo, pois a maldade em geral é muda. A esse respeito, João me disse um da: “Assassinos não falam. Não precisam falar.” E tinha toda a razão.
Pudemos nos aproximar mesmo quando João Antônio foi convocado pelo editor Ênio Silveira para editar o “Livro de cabeceira do homem”, uma revista em forma de livro que marcou época na história das publicações de esquerda. A editora Civilização Brasileira, com seu catálogo de autores marxistas e engajados, vivia sob a mira da polícia. Para ter maior liberdade, a redação do “Livro de cabeceira” foi levada para a sala de jantar de João Antônio, no último andar de um velho edifício em frente à Praça Serzedelo Correia, no centro de Copacabana. Sempre que eu chegava, Teresa, sua mulher naqueles tempos, uma negra altiva que se comportava como uma vassala, servia um café com gosto de pó, ao estilo árabe.
João estava sempre atolado entre pilhas de jornais velhos, blocos cheios de anotações, originais que não encaixavam em seus envelopes, e reportagens recortadas a golpes de gilete, xícaras de café frio pela metade e muitos livros. Ali, entregues ao caos da escrita, que para ele se fazia assim, sempre na fronteira da notícia, a um passo do mundo real, pois João tinha uma imaginação que não descartava a luz do dia, tivemos conversas que atravessaram a noite.
João Antônio foi a primeira pessoa que me falou, um dia, a respeito do “romance-reportagem”, gênero híbrido que outros exercitaram depois dele sem a mesma competência, e que ele próprio, apesar do entusiasmo, pouco chegou a praticar. Para os outros, tornava-se um gênero fácil, quase só uma reportagem ampliada; já nas mãos de João Antônio, o “romance-reportagem” se transformava em um gênero difícil, no qual a realidade se contorcia, entrava em atrito com a escrita, e não se permitia reduzir a uma simples fotografia.
Para João Antônio, a realidade não era uma paisagem plácida que devia ser reproduzida ponto a ponto, com elegância e cautela; era, ao contrário, uma atmosfera na qual todos estamos metidos, da qual só podemos enxergar alguns pedaços e que, para servir a um escritor, não deve ser tratada como musa, mas sim como inimiga. A realidade o interessava como terreno de luta, na qual ele estava sempre incluído, não como um espetáculo a contemplar. E durante as batalhas, todos ficamos um pouco cegos.
Uma vez, quando eu me preparava para passar uns dias na Baixada Fluminense para escrever meu primeiro artigo para o “Livro de cabeceira”, João me aconselhou: eu devia me entregar à experiência, que era absolutamente nova, e não exigir muito de mim. “Quanto mais você exigir, mais cego você ficará”, ele me disse. Ele tinha razão: só quando desistimos de compreender é que, afinal, temos a chance de compreender. Parecia um clichê oriental, mas era pura sabedoria suburbana.
Tarde da noite, durante um plantão de rotina, o telefone da redação tocou. “Estou sendo perseguida”, disse a voz vacilante, azeda, de uma velha, pois só uma velha mastigaria as palavras com tanto nojo. “A companhia de luz está me sabotando”, prosseguiu ela, furiosa. A denúncia, precária, seria esquecida por qualquer repórter lúcido, mas João e eu estávamos fartos da monotonia das notícias e ansiávamos por um susto. Aprendi com ele que os grandes acontecimentos se passam nas gretas do cotidiano, ali onde quase ninguém percebe. E lá fomos nós, rumo àquela voz, numa velha caminhonete de reportagem guiada por um motorista zonzo, narigudo e guloso que chamávamos de Marcha Lenta.
O endereço indicava uma casa de subúrbio. O portão de ferro, com apliques em forma de borboletas, estava trancado a cadeado. Alguns gatos, com os ossos de fora, miavam em torno de um chafariz em que um anjo, com as asas quebradas, gargarejava um líquido ferruginoso, flutuando sobre um monte de lixo. A casa guardava restos, quase invisíveis, de dignidade. O presente a insultava. Era uma paisagem de destroços e ruínas, que indicava um mundo à beira da falência; logo pude perceber que João começou a gostar.
D. Odete, esse era o seu nome, nos recebeu metida em um quimono florido, com cabelos esticados em goma arábica, a pele derramada em cascatas sobre os ossos moles. “Vou ser assassinada”, ela anunciou, mas João foi rápido: “Se quiser, pode nos revistar. Não usamos armas.” As palavras de João Antônio transportaram D. Odete para um policial de segunda categoria e ela se agachou para nos apalpar as pernas de alto a baixo, com discrição mas com firmeza, e depois, usando palavras que roubara de algum filme antigo e que guardava como um tesouro, declarou: “Agora podem entrar.”
O salão estava decorado com um velho carrilhão de madeira que trazia a hora errada, um busto em gesso de Augusto Comte, os poemas de Bilac em capas manchadas de vermelho, fotografias desmaiadas de homens fardados. “Eles lutaram na Guerra do Paraguai”, disse D. Odete, com pose de guia de viagens. Era iluminado por dois imensos lampiões a querosene dispostos sobre um piano roído por cupins. O chão, em tábuas corridas e rangentes, ameaçava ceder. A vida estava por um fio, e D. Odete, com pose de velha bailarina, se equilibrava sobre ela.
“Minha senhora”, disse João, tomando o pulso da situação. A velha, ainda de pé, franziu os olhos para escutar melhor. “Não podemos escrever uma reportagem se não houver provas.” Mas D. Odete, rápido, interrompeu-o: “E há.” Tirou de uma gaveta, então, um calhamaço de antigas contas de luz, algumas datadas de duas décadas antes, e colocou-o diante de nós. “O senhor veja, até alguns anos atrás me enviavam as contas. Depois pararam.” E, roendo as sílabas, concluiu: “Fazem isso só para me cortar a luz, pois como posso pagar, se não tenho os recibos?” Olhei para João e ele, distraído, examinava o retrato desbotado de um militar que decorava uma mesinha de canto. Tudo parecia razoável, e mesmo comum, mas pairava sobre cada palavra de D. Odete uma ponta de loucura. Tive vontade de ir embora.
E já me preparava para me despedir, quando João ergueu a voz. “E por que a senhora conclui que desejam mata-la?” Avelha nos olhou com ar debochado, jogou-se numa poltrona e respondeu: “Ora, assassinos preferem sempre o escuro.” Uma sineta tocou e uma menina apareceu no portão carregando um embrulho. Era a filha da vizinha, que vinha no portão carregando um embrulho. Era a filha da vizinha, que vinha trazer uma tigela de sopa para a velha. “Não saio de casa há quinze anos”, disse ela. E devia ser verdade. Arrastando os pés, foi abrir a porta. A menina, com o peito de fora, deixou a sopa sobre uma mesa, coberta apenas por uma folha de jornal. D. Odete fez um movimento para beijá-la, mas ela lhe deu as costas. Nem a olhou. Ouvimos a porta bater. Baratas circulavam em torno da tigela.
“E por que desejariam matá-la?”, insistiu João, enquanto eu, aprendiz do feiticeiro que escreveu “Malagueta”, apenas embotava suas palavras com meu olhar tolo. O rosto de D. Odete ficou rubro, e ela precisou tomar alguns goles da água nojenta que havia em uma moringa de barro. Depois, sentou-se em uma poltrona em que as molas expostas pareciam as antenas de um monstro de veludo e ordenou: “Olhem já para a parede.” Como soldados de chumbo, demos meia-volta. “Para quê?”, não me controlei. “Conservem os olhos na parede, só isso”, disse ela. Nós a obedecemos. Então, ouvimos a voz áspera da velha recitar as palavras fatais: “Querem me matar porque eu faço sexo com a luz.”
Eu ia rir, mas olhei para João Antônio e o vi concentrado, os olhos espremidos, como se buscasse contato com alguma instância invisível. Contive-me. O silêncio que se seguiu me pareceu penoso e indecente, como se a velha, bem à nossa frente, estivesse iniciando uma sessão erótica com a luz que escorria dos lampiões. Para meu alívio, ela interrompeu esses devaneios: “Agora, podem se virar”, disse, estava de novo acomodada em sua poltrona, com a blusa bem abotoada até o pescoço. Ainda pigarreou e depois apontou para um sofá. Só agora eu podia entender que aquele amontoado de molas e retalhos era um sofá.
E já me afastava para chamar a ambulância de algum manicômio, quando João, sempre capaz de lidar com as situações mais extremas, pediu que eu me sentasse. Então, como se Carlos Gardel cantasse ao fundo, olhou a velha com doçura e disse: “Sabia que a senhora ainda é muito bonita.” D. Odete se ergueu, foi até um espelho nublado que havia na parede, ajeitou os espinhos de cabelo, a camisola roída e, voltando-se para João, declarou: “O senhor também é muito simpático.” Um sorriso triste, mas vibrante, estava agora fixado sobre seu rosto de velha. Com a ponta da língua, alisou os lábios, que há muitos anos não ganhavam uma só camada de batom. Deu mais um gole na água suja, e eles ficaram borrados de lama.
Depois, ergueu-se, foi até a cozinha e voltou com as duas xícaras de um chá marrom que me pareceu uma mistura de lodo com sangue e que só tomei porque João me fuzilava com o olhar. A velha também não tirava os olhos de meu amigo e, por fim, suspirou: “Sabe, nunca ninguém me fez uma declaração de amor.” Enquanto João conservava a pose de trovador, D. Odete foi até uma gaveta e tirou um instrumento antigo que, só depois, pude identificar como um astrolábio. “Tome, ele é seu”, disse, entregando-o a João Antônio. Enquanto ele o acariciava, ela disse ainda: “É a nossa aliança com os céus. Assim, ninguém mais pode nos separar.”
João agradeceu e, com a voz constrangida, anunciou que devíamos ir. A velha, serena, nos levou até o portão. Aproximou-se, então, de meu amigo e lhe disse: “Não se preocupe, eu não vou traí-lo.” João a beijou no rosto, enquanto ela fechava os olhos e apertava um retalho de pano nas mãos. Depois, agradeceu: “Já não preciso mais da luz dentro de mim. Já tenho o teu beijo, que vai me esquentar.” Perguntei-lhe se ainda estava preocupada em ser morta, mas ela respondeu rispidamente: “O perigo acabou”, e me deu as costas. Arrancou uma flor seca do jardim e a fincou na camisa de João. “Posso fazer um pedido de despedida?”
Afastei-me, pois julguei que naquele momento João e a velha precisavam de alguma intimidade. Fui direto para o carro, onde nosso Marcha Lenta dormia com a boca aberta e os pés esticados sobre a janela. Até que João Antônio apareceu e tomamos nosso caminho de volta. Íamos pela Avenida Brasil em silêncio, embaladas pelas buzinas dos caminhões, até que eu não resisti: “Posso perguntar que pedido ela te fez?” João parecia sério e tive medo da resposta, que até hoje não pude decifrar: “D. Odete pediu que eu jamais durma com as luzes acesas.” Foi com as luzes acesas, no entanto, que João Antônio dormiu para sempre.
Terça-feira, 29 de outubro de 1997: o editor José Mário Pereira me telefona, confuso, para dizer que João Antônio “desapareceu”. Uma breve nota, estampada na coluna de Zózimo Barroso do Amaral daquele mesmo dia, dá o alarme. No romântico apartamento do escritor, em Copacabana, o telefone chama e ninguém atende. Amigos vasculham hospitais, prontos-socorros, delegacias, necrotérios. Nenhuma pista.
O desaparecimento de João Antônio me choca, mas preciso confessar que há algo nele que já me parece, desde muito, anunciado. Algo que combina com o temperamento antigo, os modos renitentes, a verve obstinada do escritor. Talvez porque João Antônio fosse, com seu caráter doce de suburbano e sua têmpera desprovida de reservas, um personagem de um Brasil ingênuo e caloroso que desapareceu – e, desaparecendo, ele estaria apenas retornando a um tempo que é apenas seu.
Eu posso vê-lo, sem esforço, metido em suas bermudas amarrotadas, sandálias de borracha, vestindo uma moda que pertence a homens para quem a virilidade é sobretudo um modo de evitar a beleza. Posso ver João Antônio, feio e doce, diante de seu chope espumante, pura anestesia líquida, a me provocar com suas frases fortes. Eu sempre admirei nele, em especial, dois atributos normalmente tidos como imprestáveis e até corruptores: a impaciência para com a modernidade e um apego fanático, mas inocente, a uma filosofia de vida vagabunda, errante, que os bandidos de hoje, com suas escopetas e metralhadoras, simplesmente aniquilaram.
Fico me perguntando onde João Antônio se escondeu e só consigo pensar no passado, e não na morte. Lembro-me de que houve um momento em que a vida nos afastou. Nas raras vezes em que nos vimos depois, senti nele uma certa melancolia paterna, pois eu, o rapaz tímido, crescera provavelmente em direções que ele não pudera prever, ou que até reprovava, mas João sempre foi incapaz de me aborrecer com qualquer reparo. E por quê? Simplesmente por delicadeza. João, com seu corpo gorducho, cabelos fixados com vaselina, camisas de tergal, jamais permitiu que o tempo o domasse. Sempre foi um homem arredio, para quem as horas eram uma simples formalidade, como regras de protocolo, ou cartões de fim de ano.
Agora, quando me dizem que ele “sumiu”, eu penso: “Mas é claro.” Faz todo sentido que João Antônio, um escritor que sempre viveu desprezando o tempo, decida simplesmente desaparecer. Entendo esse sumiço estratégico como um retorno a um Brasil mais simples, mais direto e mais honrado, que resistia em suas bermudas e sandálias tortas. É razoável, eu penso, que João deseje o status de desaparecido. Que, como numa partida de baralho, nos iluda e brinque de morto. Que drible as vaidades de época e imponha, em seu lugar, a placidez do absoluto.
Dias depois, João Antônio é encontrado morto em seu apartamento. Morrera no início de outubro, deitado em seu quarto de solitário, enfiado em uma camiseta velha, um jogging surrado, pés descalços sorvendo, como antenas, a força do mundo. Até na hora final, João evitara as rotinas da morte, e assim é provável que tenha levado consigo a sensação de que morreu sem morrer. Enquanto o procuravam em bares, enfermarias, esquinas, ele estava bem ali, estirado em sua cama, abraçado à morte como alguém que desejasse segurar a eternidade. Até para morrer, João Antônio desprezou a escolta do mundo moderno. Morreu fora do tempo e passou a agitar-se, como uma sombra, em nossa memória.
Pode-se dizer de João Antônio o que ele mesmo escreveu a respeito de Nelson Cavaquinho, o compositor morto: que caminhou eternamente na linha divisória entre o sublime e o ridículo. João não teve medo da realidade, nem de seus defeitos, e se tornou ele mesmo uma espécie de anjo decaído. Dirão, talvez, que ajudo a construir o mito, em detrimento do homem. Mas foi ele mesmo quem me ensinou que, em matéria de coisas humanas, não devemos temer nem os exageros, nem as imperfeições, pois eles são por fim o que sobra do homem.
(Publicado no livro “Inventário de Sombras”, de 1999)