Foi em 1927, quando cumpria serviço militar no Tiro Naval e era ordenança do comandante Mathias Costa, que Henrique Foreis Domingues virou Almirante. Chegava ao Rio de Janeiro o hidroavião Jahú, que cruzara o Atlântico, na primeira travessia entre a Europa e o Brasil, e a cidade parou para festejar os pilotos. Encarregado de cuidar de um arranjo de flores e de fazer a saudação aos homenageados, o ordenança Henrique Foreis desfilava no carro, ao lado do comandante.
Foi com tal elegância que cumpriu suas funções, empertigado e posudo, que a certa altura alguém apontou para Mathias Costa e perguntou quem era. Ao saber ser o comandante, voltou a indagar:
– E o outro?
– É o Almirante – foi o gracejo.
Um companheiro ouviu a conversa, a resposta virou brincadeira e nunca mais ninguém chamou Henrique pelo nome próprio, mas apenas por Almirante, que viria a ser A Maior Patente do Rádio.
Henrique nasceu em 19 de fevereiro de 1908 no Rio, filho de Eduardo Foreis Domingues e de Maria José Foreis. Em 1914, morava em Juiz de Fora, onde o pai montara uma loja de armarinhos. Nessa cidade aprendeu a ler com professora particular. A família transferiu-se depois para Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, e ele e seus três irmãos foram matriculados no Colégio Alemão.
Veio daí o contato de Almirante com a música. Um professor alemão foi contratado para dar-lhe aulas de violino. A antipatia do aluno pelo instrumento e pelo professor fez com que o curso não fosse muito adiante. Em 1919, Eduardo mandou a família de volta para o Rio de Janeiro e Henrique foi estudar no Liceu Rio Branco, na Tijuca. Em 1920, estava no Colégio Salesiano de Santa Rita, em Niterói.
Com o pai adoecendo, Henrique e seu irmão Eduardo foram obrigados a trabalhar. Henrique se empregou em uma loja de objetos religiosos, cumprindo horário das segundas aos sábados, fazendo faxina aos domingos. À noite, estudava contabilidade. Tinha 16 anos quando seu pai morreu e, dois anos depois, estava no Tiro Naval, transformando-se para sempre em Almirante.
Já tinha alguma experiência como cantor quando foi chamado a integrar o conjunto Flor do Tempo, formado por rapazes da Vila Isabel, entre eles Braguinha. O compositor Braguinha que em 1928 estava ao seu lado no Bando de Tangarás, no qual também aparecia outro rapaz da Vila, um certo Noel Rosa.
A fama que angariou e a experiência adquirida deram a Almirante base para iniciar carreira solo, quando os Tangarás se dispersaram. Em 1932, estava em Salvador e, em seguida, no Recife, ao lado de Carmen Miranda, arrancando aplausos. Em 1934, gravou O Orvalho Vem Caindo, de Noel Rosa e Kid Pepe, e, em 1937, o sucesso foi Faustina, de Gadé. Gravou muito em 1938, mas os “estouros” foram Yes, Nós Temos Bananas e Touradas em Madrid, de Braguinha e Alberto Ribeiro.
Participou dos filmes Alô, Alô Brasil, Estudantes, Alô, Alô Carnaval e Banana da Terra. Como radialista, no Rio e em São Paulo (rádios Nacional, Tupi, Clube, Globo, Record etc.), produziu, escreveu e dirigiu, em mais de 40 anos, quase uma centena de programas. Foi também dublador de desenhos de Walt Disney.
Sofreu derrame cerebral em 1958 e sua força de vontade fez com que reaprendesse a falar, ler e escrever. Organizou o maior arquivo da música brasileira e nunca deixou de trabalhar até morrer. O que aconteceu aos 72 anos, no Rio de Janeiro, em 22 de dezembro de 1980.
Compositor, cantor, ritmista, produtor, pesquisador e historiador, Almirante foi mais além ao reunir tudo no papel de homem de rádio. Por mais de 20 anos, produziu e apresentou uma série de programas que contribuíram para que o samba e outros gêneros passassem a ser levados mais a sério pela intelectualidade brasileira.
É esse homem de rádio que Giuliana Souza de Lima, mestre em História Social, estuda no recém-lançado livro “Almirante, a mais alta patente do rádio”. A substituição de “a maior” pela “mais alta” no epíteto com que Domingues se consagrou pode estar mais correta, mas era mesmo como “a maior patente do rádio” que ele se apresentava ao microfone da Nacional ou da Tupi.
Sensível a isso, Giuliana concentra seu trabalho numa “audição atenta” dos programas cujas gravações sobreviveram em arquivos vários, um deles da Collector’s, outro da Nacional, outro mais do MIS-RJ, e faz acurada análise sociocultural de um período definido por ela como da “construção da história da música popular brasileira”, de 1938 a 1958, as duas décadas dos programas produzidos e apresentados por Almirante.
Esses programas — “Curiosidades musicais”, “História das orquestras e dos músicos do Brasil”, “Instantâneos sonoros”, “Recolhendo o folclore”, “História do nosso carnaval”, “No tempo de Noel Rosa”, “Incrível! Fantástico! Extraordinário!”, “Onde está o poeta?”, “Aquarelas do Brasil”, “História do Rio pela música” e o musicalmente mais importante, “O pessoal da velha guarda” – resultaram de um talento inato.
Almirante não estudou formalmente o rádio. Não se baseou no perfil mais cultural dos europeus, nem no broadcasting popular produzido nos Estados Unidos a partir da década de 1920. Formatou seus programas de modo a unir as duas pontas. Como observa a autora, criou um modo de ensinar divertindo. Principalmente nos programas musicais, criou as bases para que, um dia, as comunidades acadêmicas passassem a se interessar por uma área cultural preconceituosamente considerada menor.
Estudos como os abordados no livro seriam impensáveis antes de Almirante. Foi ele quem viu na música de carnaval representações do humor e do pensamento do carioca (Mário de Andrade, por exemplo, já escrevera sobre o “mau gosto” de cantigas carnavalescas que agrediam o idioma).
Foi Almirante, também, que ressuscitou o choro e outros gêneros considerados antigos, com Pixinguinha e Benedito Lacerda brilhando sob seu comando. Foi ele, também, quem redescobriu e ajudou a perpetuar a música e a memória de Noel Rosa e outros contemporâneos.
Tudo isso em programas que redigia e apresentava, sempre ao vivo, com admirável e rara noção de timing, além de perfeito equilíbrio entre a informação e a anedota, a música e seu criador.
Quem teve a oportunidade de ouvir compreende o entusiasmo da autora pelo assunto. E pode imaginar o prazer com que ela concentrou atenções na audição que lhe consumiu incontáveis horas de trabalho.
“Almirante, a mais alta patente do rádio”, é uma tese de mestrado, repleta de citações que asseguram o caráter científico e erudito exigido nesse tipo de trabalho. Adorno e Benjamin, Arnheim e Brecht (Bertolt e não “Bertold”) dividem espaço com Tinhorão, Wisnik, Sandroni, Alencar e Lúcio Rangel na bibliografia.
Sendo uma tese, o livro não é “mais uma biografia que inunda a historiografia da música”, como se apressa em esclarecer quem o prefacia: José Geraldo Vinci de Morais, professor da USP que orientou a autora na dissertação. Isso não impede Giuliana de recorrer às águas, por exemplo, de “No tempo de Almirante”, excelente biografia escrita por Sérgio Cabral, para compreender melhor o homem, sua vida, sua formação, o meio em que viveu, em especial o da música popular da qual Almirante é destacado personagem e do rádio que teve nele um mestre. Mais que “mais alta”, sua patente continua sendo a maior.