Musicoterapia

Recordando um amigo beatlemaníaco da minha adolescência

Postado por Simão Pessoa

Por Rafael Galvão

Andei lembrando de Augusto esses dias. Ainda posso vê-lo, muito magro, batendo as sete freguesias a pé, invariavelmente carregando alguns discos debaixo do braço. Ou sentado comigo num ponto de ônibus lembrando músicas um tanto obscuras dos Beatles, Stones ou Dylan. Ou ouvindo o Sgt. Pepper’s em CD pela primeira vez e dizendo “olha esse baixo!”

Nos conhecemos no Cine-Foto Walmir, numa época que eu voltava da escola a pé e nunca lanchava para poder comprar um disco no fim do mês. O Cine-Foto Walmir era a melhor loja de discos de Aracaju, a única, na metade dos anos 80, a ter um catálogo consistente de rock. Um amigo que morreu cedo demais, Jorge Eduardo, então namorado de uma tia, me levou lá pela primeira vez e me mostrou o Led Zeppelin II; a partir daí virei frequentador assíduo, embora comprasse poucos discos e ouvisse trechos de muitos. Fazia isso em livrarias e bancas de revistas, também.

A vendedora era Irani, morena deliciosa, de seios insolentes e bunda ofensiva — e tem coisa mais bela para um adolescente que rock and roll e uma bunda grande e peitos que fazem bullying com você? Foi ela quem, algum tempo depois, me apresentou o rapaz magrinho que estava na loja ao mesmo tempo que eu. Sabia que os dois eram fãs dos Beatles e achou que já era tempo de nos conhecermos.

Eu não conhecia outros beatlemaníacos em Aracaju e aquilo foi quase uma revelação.

Não lembro como, mas o assunto resvalou para livros sobre a banda, então raríssimos pelo menos em nosso canto do mundo; e eu falei que tinha o livro do Geoffrey Stokes. Augusto achou que era o do Peter Brown, The Love You Make, provavelmente o livro que todo mundo queria ler na época, porque contava os podres da banda e que nunca foi publicado em português. O mal-entendido foi desfeito logo, mas eu tinha uma coisa que qualquer pessoa quereria: o Decca Tapes.

Saímos de lá e fomos conversando até sua casa. Augusto me emprestou um disco que eu não tinha, “Álbum Branco”. De lá fomos na minha, onde emprestei a ele o Decca Tapes e, imagino, o livro de que tinha falado.

Minha mãe achou estranho eu chegar com um desconhecido, passar um tempo ouvindo discos no meu quarto e ele sair de lá com um disco meu, que eu não costumava emprestar. Eu tinha 15 anos. Olhando para trás, soa como maluquice duas pessoas que não se conhecem irem às casas uma da outra e saírem de lá com um disco. Isso nunca se repetiria depois, pelo menos não comigo.

Ainda lembro do que foi ouvir o “Álbum Branco” naquela noite. O tempo passaria e discos dos Beatles se tornariam atemporais para mim, porque os ouvi tanto que não podem me lembrar nenhum tempo ou lugar específicos; mas de vez em quando, quando ouço de novo esse disco, consigo lembrar exatamente o que senti enquanto ouvia embasbacado algo que, para mim, era totalmente inesperado.

Nos meses e anos seguintes, Augusto seria companhia constante. Discos iam e vinham o tempo todo — mais vinham do que iam: eu, que tinha muito menos, oferecia o que podia, e era pouco. O meu Decca Tapes eu sei que circulou a cidade inteira, passando de mão em mão e de gravador em gravador.

Devo a Augusto toda a base que tenho de rock and roll. De Elvis a Velvet Underground, de Muddy Waters ao Clash, dos Doors aos Sex Pistols — essencialmente, quase tudo o que importa no rock eu aprendi graças a ele. Meus gostos e desgostos — como a antipatia inamovível pelo Pink Floyd, o desprezo pelo heavy metal — foram formados aí, a partir dos discos que Augusto me emprestava.

Foi ele também quem me emprestou o “On the Road”, de Kerouac, e “Morangos Mofados”, e “Porcos com Asas”. Mas livros eu tinha mais, e imagino que muitos saíram de lá de casa. A isso se seguiam o tipo de discussões que só adolescentes podem ter. Ele, por exemplo, concordava com a ideia de Lennon de que primeiro você muda para poder mudar o mundo. O velho leninista aqui, ao contrário, achava é que o negócio é descer o sarrafo, que todo mundo muda rapidinho. Continuo achando.

E então Augusto começou a me dar discos. Não precisava ser aniversário, nada disso: de vez em quando ele aparecia com um disco de presente. Fui ver agora quantos discos Augusto me deu. Contei 32. Help!, Yellow Submarine, Wild Life. Sua generosidade era impressionante. Cheguei a ter três White Albums em casa, todos dados por ele. E percebi agora que, com uma exceção, todos os álbuns de Lennon que tenho me foram dados por ele, provavelmente em uma tentativa vã de me convencer de que John era melhor que Paul. A preferência por Lennon ou McCartney era uma de nossas diferenças; outra é que ele tinha adoração por louras, enquanto eu sempre entendi que menino pobre não pode se dar a esses luxos: para mim valia até cor-de-burro-quando-foge.

Certa época ele se apaixonou por uma potiguar e sua conta de telefone ficou tão alta que começou a criar problemas em casa. Então ele passou a ligar da minha, o que fez com que em seu devido tempo o nosso telefone fosse cortado, por falta de pagamento. Se lembro bem, ele acabou conseguindo encontrar a moça em Natal, mas voltou de coração partido. No fim das contas, não adiantou nada. Só o prejuízo que ele deu em duas casas.

Mais ou menos nessa época comecei a trabalhar, e o primeiro CD que comprei, o Let it Be, foi para dar de presente a ele. Que obviamente repassou a alguém.

Deve ter sido mais ou menos nessa época que descobri que Augusto era, na verdade, uma espécie de Robin Hood dos roqueiros, tirando de quem tem tinha muito para dar a quem não tinha nada. Pegou de volta vários dos discos que tinha me dado, alguns outros sumiram, meu livro do Stokes desapareceu e não sei quem pegou. No fundo acho que foi ele: pegava, emprestava a alguém e esse alguém não devolvia. Mas gosto mais de acreditar em outra hipótese bem plausível, que ele encontrava alguém mais despossuído, alguém tão ansioso para conhecer música quanto eu quando o conheci, e então agia como um redistribuidor de renda e de cultura.

É um papel nobre, esse, e eu nunca reclamei. Fazia parte do seu jeito de ser, e mais que isso, era justo. Eu jamais poderia pagar o que Augusto tinha feito por mim — e considerando que ainda tenho aqueles 32 discos, ele pegou de volta muito poucos. Era justo que, agora, eu desse a minha pequena contribuição à evangelização roqueira que Augusto empreendia cidade afora.

Acabamos nos afastando em alguns momentos — a vida afasta as pessoas o tempo todo, adolescentes crescem e descobrem novos interesses. Uma dessas foi a última. Eu sequer consigo lembrar a razão, se é que houve alguma, nem quando foi. Só sei que foi assim, diria João Grilo, e desde então não ouvi falar dele.

Mas anteontem estava relendo uma “Heróis da TV” antiga, dessas que andei baixando na internet, e na seção de cartas apareceu o seu nome. Foi uma surpresa absoluta. Eu jamais teria imaginado que, em algum momento, Augusto tinha gostado dos super-heróis da Marvel, ainda mais no mesmo ano em que comecei a comprá-las. Muito menos que ele escrevia cartas para revistas; em todo aquele tempo, super-heróis nunca tinha sido um assunto comum. E então fiquei pensando que, no fim das contas, tínhamos mais coisas em comum do que eu imaginava.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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