Por Daniel Brazil
Há muito tempo que Jards Macalé estava devendo um disco como “Besta Fera”. Com uma carreira marcada por intervalos e descontinuidades, começou na praia generosa do samba, na década de 60, e fez de tudo um pouco. Estudou música com grandes mestres, flertou com a Tropicália, fez direção musical para Maria Bethânia, participou do “Fa-tal” de Gal Costa, foi pra Londres com Caetano, virou ator do Cinema Novo, compôs trilhas sonoras de filmes e peças teatrais, musicou poemas de Brecht, espantou a platéia de festivais com performances desconcertantes.
Algumas composições alcançaram merecido sucesso. Vapor Barato, imortalizada por Gal nos anos 70, recebeu novo fôlego com a versão do Rappa de 1996. Mal Secreto, Movimento dos Barcos (parceria com Capinam), Hotel das Estrelas ou Anjo Exterminado também fazem parte do repertório de uma geração.
Sempre arisco em relação à indústria cultural, rompeu com os tropicalistas e reaproximou-se dos mestres do samba, gravando clássicos de Nelson Cavaquinho, Lupicínio Rodrigues, Geraldo Pereira e Paulinho da Viola (“4 Batutas & 1 Coringa”, de 1992) ou Ismael Silva (“Peçam Bis”, com Dalva Torres, em 1988). A admiração pelo velho malandro Moreira da Silva também rendeu shows e parceria.
Carregando o epíteto de maldito, Macalé parecia ser uma figura congelada no final do século XX. Poucas aparições na mídia, raros shows, nenhum disco relevante nos anos 2000. Uma homenagem aqui, outra ali, sempre despertando certa curiosidade entre os jovens pela postura meio anarquista. Zeca Baleiro fez música em sua homenagem, e chegou a convidá-lo para dividir o palco. Assim como a Tropicália e o Cinema Novo, parecia fazer parte de uma era perdida neste país sem memória.
É aí que entra na história o cada vez mais influente grupo paulista formado por Kiko Dinucci, Rômulo Fróes, Rodrigo Campos, Juçara Marçal, Thiago França, Nuno Ramos, Gui Amabis e mais alguns. Gente que propõe novas sonoridades sobre poéticas dissonantes, e que constrói com inteligência improváveis pinguelas entre o tradicional e o novo.
E, como já haviam feito com Elza Soares, colocam o excêntrico bardo carioca na turbulência do nosso século. “Besta Fera” é um conjunto de 12 canções autorais, algumas em parceria com gente como Ava Rocha, Rômulo Fróes, Clima, Capinam, Ezra Pound (!) e Gregório de Matos. O trabalho foi produzido por Kiko Dinucci e Thomas Harres, que também tocam em várias faixas. A guitarra de Guilherme Held e o baixo de Pedro Dantas são irretocáveis, e ajudam a criar texturas originais e estranhamente belas.
E dá-lhe samba elétrico, balada sombria, canção desvairada, rock desconstruído. As participações especiais de Tim Bernardes (vocal e parceria no samba-canção Buraco da Consolação) e Juçara Marçal (na linda Peixe, com citação de Dorival Caymmi) valorizam o intrigante e empolgante conjunto de canções. Pra completar, a foto de capa, do agora imortal Cafi, é antológica. O autor de mais de 300 capas da MPB morreu na virada do ano, e teve a sorte de não viver no país dos bolsonaros.
“O tempo não existe/ e essa é a graça”, canta o artista em Tempo e Contratempo. Bem-vindo ao nosso contratempo, Macalé, e permaneça por um bom tempo!