Ao descrever, no início do século 20, a exploração dos seringueiros nordestinos nos limites de um país sem fé e sem lei, Euclides da Cunha a classificou como “terra sem história” ou “à margem da história”. O autor de “Os sertões”, uma das mais brilhantes obras da literatura brasileira, que denuncia ao Brasil urbano a barbárie e extermínio dos sertanejos famélicos como ato de fundação da República, se referia à Amazônia.
Euclides não foi o primeiro nem o último a desconhecer a história desse subcontinente, onde há 120 milhões de anos, durante o período Cretáceo, as primeiras flores se abriram, por onde caminhar em certas áreas hoje equivale a percorrer o planeta tal qual era naquela época.
Tal injustiça cometida por Euclides talvez se explique pela desinformação e ignorância que encobrem a história dessa região, berço do mais rico meio ambiente do planeta, compreendida por toda a bacia amazônica formada pelo Brasil – 55% de seu território abriga esse rico ecossistema – Bolívia, Colômbia, Peru, Guiana, Venezuela, Suriname, Equador e Guiana Francesa.
Não apenas Euclides, mas, mais de um século depois, o Brasil desconhece a Amazônia. Para suprir esta lacuna, o romancista e historiador Márcio Souza escreveu “História da Amazônia: do período pré-colombiano aos desafios do século XXI”. Lançado pela Editora Record depois de duas décadas de pesquisa, a obra de fôlego – do mesmo autor de “Galvez, imperador do Acre” e “Mad Maria” –, tem 391 páginas e vai da chegada do Homo sapiens, há 40 mil anos, aos dias de hoje, em que a maior floresta tropical do mundo e os seus povos originais enfrentam toda sorte de desafios.
A região está no topo das discussões mundiais, seja pelas queimadas frequentes, seja pelo embate entre o governo brasileiro e líderes europeus sobre sua importância socioeconômica e ambiental.
Márcio Souza conta que o embrião da obra começou quando, há 20 anos, chegou à Universidade de Berkeley (EUA) para ministrar os cursos “O moderno romance brasileiro”, em português, e “Images of the Amazon”, em inglês, e descobriu que não havia nem um livro sequer que consolidasse a história da Amazônia.
Ainda que algumas excelentes obras do Amazonas, do Pará, do Acre e das regiões de floresta dos países hispânicos estivessem disponíveis, a dispersão dificultava a disposição daqueles que desejavam conhecer os grandes traços do processo histórico amazônico sem que, para isso, tivessem de se tornar especialistas.
À época, organizou “Uma breve história da Amazônia” como bibliografia do curso, que nunca pretendeu preencher a lacuna provocada pela ausência de uma verdadeira história que abrangesse não apenas a Amazônia brasileira, mas também a que fala espanhol, inglês e holandês. Este desafio ele cumpre agora com a nova obra, como ele chama, uma “ampliação” da primeira abordagem, “que de tanto crescer” nada mais tem de breve.
Ainda que reconhecendo serem tempos em que a história esteja sofrendo “um assalto letal”, Márcio Souza estabelece os parâmetros dos quais parte: valores democráticos e a prática dos direitos humanos, alcançados com a Revolução Francesa, no século 18. “Uma vez que tenhamos tais valores em mente, e tenhamos entendido que o método histórico está disponível para todo mundo, é preciso insistir na nossa própria história, olhar de frente as nossas verdades, as nossas opções ou a falta delas”, escreve ele.
O autor registra que, a partir do século 16, esse subcontinente inicia um movimento, assim como ocorrera na Europa, ininterrupto em direção à consolidação de Estados-nação. “O drama da Amazônia é que ela se pulverizou nesses estados emergentes, cada um deles organizado em muitas formas constitucionais, onde a região se inseriu como periferia ou fronteira econômica”, afirma.
Apesar de esse subcontinente ser o “resultado de um inverossímil amálgama de diferenças microrregionais”, cada uma com a sua cultura e com a sua própria história. Não se trata, portanto, de acordo com o autor, de escrever a história da Amazônia, mas das diversas Amazônias. “É como escrever a história do Oceano Atlântico”, sintetiza Márcio Souza.
A história da Região Amazônica é violenta, trágica, com o extermínio de povos originais. “Na origem, a Amazônia não pertencia ao Brasil. Os portugueses tinham duas colônias na América do Sul: uma descoberta por Cabral, em 1500, governada pelo vice-rei do Brasil; a outra, Grão-Pará e Rio Negro, foi descoberta por Vicente Iañes Pinzon, em 1498, após a terceira viagem de Colombo à América, quando batizou o Rio Amazonas de mar Dulce”, lembra o autor.
A colônia do Grão-Pará e Rio Negro foi efetivamente ocupada pelos portugueses a partir de 1630. Os dois estados se desenvolveram distintamente até 1823, data em que o Império do Brasil iniciou um violento processo de anexação de tão diferentes culturas e economias das duas colônias.
“A Amazônia então não era uma fronteira: este é um conceito que foi inventado pelo Império e retomado pela República. Entre o Império e as oligarquias locais, nenhum diálogo era então possível. O Grão-Pará foi destruído quando o vice-reino do Brasil invadiu a região, em 1835, e transformado em Amazonas”, assinala. “O Exército português havia ido embora, então houve muita resistência do povo. Foi tão violenta essa anexação que a Amazônia perdeu 40% dos seus habitantes. E essa anexação destruiu todos os focos de modernidade daquela colônia.”
Na obra, Márcio Souza detalha como a Amazônia se constituiu a fronteira entre uma zona de cultura brasileira predominante e um subcontinente onde se fala francês, holandês, espanhol e português. Além disso, 32 idiomas são praticados no Rio Negro, verdadeiras línguas e não dialetos. “Temos de um lado dessa fronteira uma cultura brasileira em plena expansão e, do outro, culturas originais, pré-colombianas, vivas até hoje, culturas essas que, vale lembrar, estiveram muito tempo na frente das outras, em particular do ponto de vista da técnica, antes de serem submersas pelo processo de integração”, afirma.
O escritor recorre ao episódio do incêndio da mais famosa catedral francesa para destacar a resiliência de sua região. “A Amazônia se parece com a Notre-Dame: queima, mas não cai. Contra as tentativas de desmatar e a visão de Brasília de continuar tratando a floresta como um espaço colonial, temos experiência de resistir e vamos continuar resistindo”, afirma Márcio Souza, sociólogo, historiador e escritor, que sempre se baseou na história e na cultura da região para escrever peças e romances, como Mad Maria, de 1980. Ele encerra com um alerta: “A cada metro quadrado de floresta destruído, perdem-se riquezas que nem conhecemos por ignorância.”
A Amazônia está nas manchetes do Brasil e do mundo. Como acha que, no futuro, este momento será encarado por quem continuar contando a história da floresta?
Você conhece a origem da expressão “atirar aos cães”? Vem dos espanhóis. Quando os índios eram rebeldes, eram literalmente atirados aos cães. E a expressão ficou. Do Rio Negro, cerca de dois milhões de índios foram baixados para a escravidão. Duravam pouco, pois não aceitavam, morriam de inanição e de doenças. É uma história dantesca. Eu escrevendo e pesquisando em vários lugares do mundo, às vezes passava a noite tendo pesadelos. Mas sou muito otimista a longo prazo e pessimista no curto prazo. A Amazônia é muito maior do que a mediocridade das políticas sociais e econômicas do Brasil. E por aqui, não há perigo de a população querer se separar do Brasil. Isso é coisa de alguns gaúchos. Nunca quisemos ser Brasil. Mas já que fomos anexados à força, e perdemos, queremos ser bons brasileiros. Mas que tenham respeito.
O governo Bolsonaro contesta os dados do Inpe e apresenta outra versão para as queimadas. Que avaliação o senhor tem do desmatamento na região?
O desmatamento, que tem crescido, afeta o futuro do mundo e da região, não simplesmente porque vai se criar um deserto aqui. Hoje convivemos com o deserto do Saara, que já foi coberto de savana. Se a Amazônia virar deserto, a distribuição da umidade e da água no mundo muda. Vai prejudicar os agroindustriais do Mato Grosso e outras commodities. Não tendo chuva não tem safra. Agora, a coisa mais lamentável é destruirmos uma riqueza para fazer e exportar commodities sem saber sobre os tesouros e recursos naturais que têm aqui. A cada metro quadrado de floresta destruído, perdem-se riquezas que nem conhecemos. Hoje há etnobotânicos que trabalham aqui com pajés em busca de medicamentos. Por exemplo, o betabloqueador que salva contra-ataques cardíacos foi descoberto em uma planta da floresta tropical. Além disso, as etnias têm uma cultura social a nos ensinar, de organização social, de liberdade individual e em sua relação com a natureza.
Em sua avaliação, quais são as principais ameaças que pairam hoje sobre a Amazônia?
Há invasores que chegam aqui do Sul para desmatar, criar gado, fazer plantações, cortar madeira, que vão ao cartório, registram a propriedade e passam a ameaçar e massacrar os homens da floresta, que estão lá há séculos, mas não têm título da terra. Não há lei nem ordem para protegê-los. Do Rio Grande do Sul, principalmente, esses invasores já destruíram extensas coberturas vegetais de Roraima e agora estão aqui, no Amazonas, invasores originários do Paraná. Então, temos dois tipos de horror, que podem se transformar numa espécie de espelho para o Brasil do futuro: o primeiro, esses desmatadores de terra, que pregam o capitalismo selvagem. E em segundo, alguns evangélicos. Em Rondônia, a capital é da Igreja Universal do Reino de Deus. E o interior da Assembleia de Deus. Na capital, já espancaram e mataram donos de terreiros e mães de santo. Também agridem os católicos. Hoje estão invadindo o Alto Rio Negro. Já apareceu aqui até pajé evangélico enganando. Encontraram terreno para a doutrinação e a cooptação. Atacam para converter.
Como foi a experiência da modernidade do Grão-Pará e Rio Negro que se perdeu com o processo de integração?
O Grão-Pará e Rio Negro era uma colônia baseada na exploração de café, cacau, látex, algodão, sempre com uma experiência de modernidade. A economia era fundada na produção manufaturada, a partir das transformações do látex. Era uma indústria florescente, produzindo objetos de fama mundial, como sapatos e galochas, capas impermeáveis, molas e instrumentos cirúrgicos, destinados à exportação ou ao consumo interno. Baseava-se também na indústria naval e numa agricultura de pequenos proprietários. O marquês de Pombal nomeara seu próprio irmão para dirigir o país, com o intento de reter o processo de decadência do Império português, que dava mostras de ser incapaz de acompanhar o desenvolvimento capitalista. Nesse contexto, os escravos tinham uma importância menor do que em outros lugares. O país desfrutava, além disso, de uma cultura urbana bastante desenvolvida, com Belém, construída para ser a capital administrativa, ou a sede da capitania do Rio Negro. Em compensação, a colônia chamada Brasil dependia amplamente da agricultura e da agroindústria, tendo, portanto, uma forte proporção de mão de obra escrava. Em meados do século 18, tanto o Grão-Pará quanto o Brasil conseguem criar uma forte classe de comerciantes, bastante ligados à importação e exportação, senhores de grandes fortunas e bastante autônomos em relação à metrópole. Mas, enquanto os comerciantes do Rio de Janeiro deliberadamente optaram pela agricultura de trabalho intensivo, como o café, baseando-se no regime da escravidão, os empresários do Grão-Pará intensificaram seus investimentos na indústria naval e nas primeiras fábricas de beneficiamento de produtos extrativos, especialmente o tabaco e a castanha-do-pará. Os tecnocratas e o governo central foram incapazes de favorecer a aceitação dessas experiências locais no processo de integração econômica. Isso aparece claramente com o exemplo da criação de gado: a chegada do boi foi uma tal catástrofe para a Amazônia, porque o modelo agropecuário foi imposto a um estado, o Acre, onde não havia tradição de criação de gado, e que por causa disso perdeu sua cobertura florestal tradicional. Por que não usaram em vez disso as zonas tradicionais de pasto, como as existentes no Baixo Amazonas, na região de Óbidos, Alemquer e Oriximiná, ou em Roraima, cuja superfície é superior à de todos os pastos europeus reunidos? É exatamente um caso em que a integração econômica foi feita em detrimento da história e da tradição locais.
Em sua avaliação, qual tem sido, até hoje, a proposta do Brasil para a Amazônia?
A Amazônia foi reinventada pelo Brasil, que propôs para ela a sua própria imagem. Os moradores da Amazônia sempre se espantam ao ver que, talvez para melhor vendê-la e explorá-la, ainda apresentam sua região como habitada essencialmente por tribos indígenas, enquanto existem há muito tempo cidades, uma verdadeira vida urbana e uma população erudita que teceu laços estreitos com a Europa desde o século 19. Aliás, nisso residem as maiores possibilidades de resistência e de sobrevivência dessa região. Com efeito, os povos indígenas da Amazônia nada conseguirão se não se apoiarem nessa população urbana, que é a única que se expressa nas eleições e exerce pressão sobre a cena política. É pelo jogo das forças democráticas que o problema da exploração econômica da Amazônia poderá encontrar uma solução.
Como o conceito de sustentabilidade se aplica à Amazônia?
A sustentabilidade é uma grande conquista da ciência, e deve valer para todos os projetos econômicos, sejam na selva, na Amazônia ou no Japão. A Amazônia deve deixar o gueto das comunidades primitivas e ganhar outros segmentos avançados, que desenvolvam tecnologias e pactuem os requisitos de proteção ao planeta.
Como a Amazônia foi tratada durante a ditadura militar?
Os megaprojetos da ditadura provocaram tragédias para as populações tradicionais e entre os índios. A motosserra cortava as árvores em projetos que não deram certo, como a Transamazônica e a Perimetral Norte, estradas que saíam do nada e iam até lugar nenhum. A Zona Franca de Manaus foi inspirada no modelo do general Augusto Pinochet em Valparaíso (Chile), que só funcionava onde tinha ditadura. Criaram uma zona franca onde um operário ganha até 14 vezes menos do que um funcionário da matriz. Mas a arrogância não ficou apenas com os tecnocratas do governo militar: um contingente imenso de salvadores da Amazônia estabeleceu suas agendas baseadas em conclusões apressadas. Por exemplo, as soluções de neoextrativismo propostas por Chico Mendes destinavam-se apenas para dois ou três municípios. Eram específicas para aqueles municípios. Alguns quilômetros além, não serviam mais. Era, portanto, absurdo focalizar-se nelas e apresentá-las como soluções de uso geral na região, como fizeram certos movimentos de defesa da região. Nos parâmetros políticos de 1985, quando a ideia foi gerada, a luta por tais reservas extrativistas estava perfeitamente explicada. No entanto, esse foi um conceito muito alargado desde então, a ponto de se tornar uma das mais usadas medidas “de preservação” do governo Sarney e, em termos políticos amplos, uma espécie de proposta geral para a região, pois o “futuro” da Amazônia estaria em sua total regressão à economia extrativista.
O presidente Bolsonaro tem afirmado, inclusive na ONU, que outros países desejam internacionalizar a Amazônia. Em sua avaliação, a soberania na região está ameaçada?
A internacionalização da Amazônia não é um tema realmente colocado. Mas olha, o Brasil aqui é tão malvisto pelo povo, aquelas populações vivem tão abandonadas no interior, que se a ONU fizesse plebiscito aqui para se criar uma área internacional, o Brasil perderia feio. Ninguém acredita mais em político brasileiro. Agora mesmo houve em Manaus reunião dos governadores da Amazônia com os representantes europeus. E todos sabem o que interessa para eles. O único problema é que qualquer verba tem de passar pelo governo federal, que ele ou veta ou desvia. As pessoas têm muita mágoa do Brasil. Se você vai à tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia, eles falam quando se referem a Manaus: “Eu vou para o Brasil”. São quatro horas e meia de voo e eles não se sentem como parte do Brasil. Mas, ao mesmo tempo, lá tem grupos e etnias que vivem dentro da mata com rádios ligados ao Exército e à Polícia Federal, que dão o alarme quando percebem qualquer anormalidade. São guardiões da fronteira.