No livro “Boi-Bumbá: Festas, Andanças, Luz e Pajelanças”, o engenheiro civil parintinense Simão Assayag, escritor, compositor, ex-diretor de arte do bumbá Caprichoso e pesquisador apaixonado dos costumes de sua gente, mostra que a festa dos bumbás é um dabacuri de nativos locais e visitantes, que nivelam-se, social e espiritualmente, numa harmonia abençoada por Tupãs de todos os credos.
Vale a pena ler de novo o que ele escreveu no capítulo “Aura de guerreiro, alma de artista”:
– Capacete de tuxaua? Por que capacete? Capacete é coisa de soldado, cocar sim, é enfeite de índio – diz o incauto visitante.
– Olha aqui, meu amigo. O boi-bumbá de Parintins tem suas peculiaridades, sua própria história, sua ginga. Não é carnaval, “axé”, nem tampouco maracatu. Não é reunião de tribos autênticas nem de grupos folclóricos estáticos. Não é artificial nem encomendado. Tem raízes profundas na cultura do seu povo, mas tem, também, o verde da copa das lombringueiras que não param de crescer. Copas que de repente já não são mais verdes, nem amarelas, nem ocres, mas trazem o efêmero lilás da flor perfumando o campo. Lilás que se formou dos pigmentos azul, branco e vermelho, na mistura das nações Caprichoso e Garantido.
O nosso folclore tem os pés fincados na tradição, mas tem também as mãos livres para criar e inventar. Respeita os mitos, mas sai em busca de novas aventuras. Pesquisa lendas, mas encontra técnicas e estilos diferentes. É um navegador em busca de outras dimensões. Não é um toco morto, fincado até o meio, como querem alguns puristas.
É algo como a matéria em sua ínfima constituição. É o átomo com seu núcleo segurando a estrutura da linhagem, enquanto partículas soltas vão em busca de formas e combinações diferentes. É como o ser humano que traz em si o próprio código genético, mas sai pelo mundo, moldando sua personalidade na forja da vida.
Quem quiser documentar uma verdadeira dança de índio, não venha a Parintins em fins de junho. Arrume um “motorzinho”, um bom estoque de repelente, “engrene” com a Funai ou com alguma missão religiosa e boa viagem. Vá até o alto Andirá assistir à festa da tucandeira dos Saterê, no mês de maio. Pode, também, chegar ao vale do rio Javari, na aldeia dos Mati (ou Matiçã), e até descobrir o mistério dos dentes de macaco perfurados com broto de bananeira, por onde atravessa o fio de tucum, no fabrico de extravagantes colares. Pode, ainda, conhecer in loco o artesanato colorido e criativo dos Way-Way, na região situada entre as Guianas e os estados do Pará, Amazonas e Roraima. Até mesmo, quem sabe, ir à aldeia dos Wanana (ou Koytiria), conhecer as duas enchentes anuais do rio Uaupés, local onde mais chove na Amazônia. Tudo isso é belo, mas infelizmente nada disso acontece em Parintins, muito menos durante a quadra junina.
Se alguém quiser assistir à congada, tudo bem! Tem em quase todo o Brasil. A festa do reisado, em janeiro, acontece nas Alagoas. Vá ao Paraná, e a Bragança, no Pará, ver o auto da marujada ou os caboclinhos, no Recife, em pleno carnaval. Assista às cheganças e dance ciranda no Nordeste. Se optar pelo bumba-meu-boi, muito original, vá ao Maranhão. E boa sorte! Mas se quiser emoção, paixão, tesão, se quiser sentir-se criança, tornar-se igual aos seus iguais e ser gente novamente, então, venha até nós, nesta ilha paradisíaca de Parintins. Venha assistir à festa do boi-bumbá e sentir a energia que emana do Bumbódromo superlotado. Mas segure-se, você pode levitar…
Tem mais, você que tem conhecimento de pecuarista/extensionista, não procure raça na figura do nosso boi, por favor! Nem o agrupe em espécies e gêneros animais. Veja lá: ele tem chifres de Guzerá, orelhas do Indubrasil, mochila de Nelore, mas nem por isso é algum Frankenstein da engenharia genética. Ele tem a graça do Holandês e, com a valentia do Miúra, faz a arena tremer e a multidão delirar. Não tem olé, olé, olé, mas canta auê, auê, auê. Tudo é fantasia, gente!
Nosso boi-bumbá é colorido, é alegre e “pro alto”, é puro e tem muita luz. Aliás, é como a própria luz que, na essência, ora promana em partículas, ora em ondas eletromagnéticas, que se transformam de maneira contínua e aleatória a cada instante. Nossa festa é viva, porque surgiu da vida de nosso ancestral indígena. É atual, porque é dinâmica. É vibrante, porque é dual. É equilibrada, porque resiste. E existe, porque é equilibrada.
– Mas, e o capacete? Por que capacete, se este é algo frio, sombrio, que lembra guerra e porrada, enquanto os índios do Bumbódromo são bonitos, pacíficos e alegres? Por que capacete, se suas vestes de penas e figuras coloridas são gigantescas e mágicas?
– Bolas, esta foi a forma como o artista viu algo de arredondado em torno da cabeça nua do índio equatorial da planície; foi aquela luz brilhante, aquela superposição de cores que envolvia sua silhueta; foi aquele halo, que as imagens dos santos católicos trazem flutuando sobre si, e que as revistinhas infantis chamam de auréola. Foi na falta de palavra mais apropriada que o artista, rústico, porém iluminado, ao perceber tal miragem iridescente, despretensiosamente chamou de capacete, pô!
Capacete de boi-bumbá é mais que cocar de chefe da tribo. É a aura do índio guerreiro, é competição. É a expressão viva da alma do tuxaua, é transpiração. É o gênio criativo do artista, é inspiração.