(Por se tratarem de textos longos que só cabem num livro físico, optamos por destrinchar o Capítulo 5 em várias partes, para poder caber nessa plataforma digital. So sorry.)
Matheus Gondim e os diversos drinks de origem negra
Filho mais velho de dois dos mais renomados intelectuais amazonenses (seu pai, o sociólogo e PhD em Ciências Sociais Renan Freitas Pinto é membro da Academia Amazonense de Letras e autor do imprescindível livro “Vozes da Amazônia: Investigação sobre o pensamento social brasileiro”, enquanto sua mãe, a saudosa professora e PhD em Comunicação e Semiótica Neide Gondim é autora do não menos imprescindível “A invenção da Amazônia”), o professor universitário, compositor, guitarrista e vocalista Matheus Gondim ainda teve a sorte grande de ser sobrinho de Ana Domingues e Álvaro Bandeira, o casal responsável pelo Galvez Botequim, o boteco que teve a melhor trilha sonora de sua época. Não é pouca porcaria.
Talvez seja fruto dessa formação intelectual e musical o apreço quase perfeccionista que Matheus Gondim confere aos projetos que abraça. E eles são muitos. O primeiro e mais conhecido pelo público manauara é a banda Soda Billy, formada em Manaus, no começo dos anos 2000. Na sua trajetória ao logo desses anos, a banda se notabilizou como uma vintage band onde o objetivo é trazer para o grande público uma fusão de vários estilos musicais (daí o nome Soda Billy como referência a um drink), tais como jump blues, swing, latin beat, soul e o rock’n roll. São quase 25 anos divulgando e formando uma base musical que possibilitou a participação de dezenas de músicos locais e de outros estados além da participação e produção em vários eventos.
A banda Soda Billy tem na sua formação Viviane Bandeira (vocalista), Luiz Góes (contrabaixo elétrico), Matheus Gondim (guitarra e vocais), Mixico (bateria), Daniel Jander (saxofone alto e barítono), Everton Rodrigues (saxofone tenor), Van Ney Valois (trompete), Alison Gama (trombone) e Alexandre Pedraça (teclado). Durante o projeto “Big Bad Nights”, realizado, a Soda Billy contou também com a participação especial de Rayssa Deschain, da banda Dry Martinis, no contra baixo acústico. O repertório do projeto, que tinha o foco no estilo neo swing, buscava homenagear os grandes mestres do gênero como Duke Ellington, Ella Fitzgerald, Big Bad Voodoo Daddy e Royal Crown.
– Nossa intenção é trazer para a cena atual as características vibrantes deste estilo. O termo “swing” é usado como um elogio para se referir àqueles que têm um forte groove ou ritmo, e seu estilo dançante e contagiante também serviu como música de resistência de parte da juventude alemã contra a ascensão do nazismo. Vamos tocar algumas músicas autorais da Soda Billy, mas a noite será de celebração aos grandes nomes do neo swing – explicou Matheus Gondim, ao apresentar o projeto.
Um outro projeto da Soda Billy que obteve grande aceitação popular foi o tributo “Soul Ladies”, em homenagem às “Divas da Soul Music”, apresentado pela primeira vez no Teatro Manauara, e que contou com participação especial das vozes femininas de Kamila Andrade, Flávia Procópio e Kívia Silva. O projeto “Soul Ladies”, inédito na cena musical local, tinha como objetivo retratar através da execução de canções clássicas, a trajetória da música “soul”. A Soda Billy interpretou as principais músicas de Etta James, Aretha Franklin, Joss Stone, Amy Winehouse, Adele e Beyoncé, entre outras, que foram apresentadas ao público de forma cronológica mostrando como as raízes musicais desde a década de 50, ainda estão presentes nas composições mais atuais do cenário pop.
– Este projeto foi uma oportunidade tanto para a banda mostrar seu potencial musical, como para o público poder usufruir de uma bela homenagem feita com ‘alma’, como o próprio nome do estilo diz: ‘soul music’. Ficamos muito felizes com a realização deste show e quisemos compartilhar toda essa musicalidade com as demais pessoas – destacou o guitarrista.
Os músicos da Soda Billy que participaram do especial “Soul Ladies” foram Matheus Gondim (vocais e guitarra), Luiz Góes (baixo), Ygor Saunier (bateria), Didio Vanderlon (teclado), Nelverton (trombone), Daniel Silva (saxofone) e Manassés Guimarães (trompete). As vozes femininas ficaram por conta de Kamila Andrade, Flávia Procópio e Kívia Silva. A música chamada “soulˮ, palavra de origem inglesa com significado de “almaˮ, tem suas raízes no Rhythm and Blues e Gospel. Foi um termo utilizado entre o fim da década de 50 e início da década de 60 para identificar a música dos negros nesta época, independente do gênero. As músicas caracterizam-se por melodias emotivas e bem ornamentadas, onde a cantora normalmente interpreta as canções acompanhada de um coro de resposta (backings vocals). A composição da banda normalmente apresenta uma seção de metais para compor as harmonias.
Apesar da grande rotatividade de músicos na Soda Billy – ou, talvez, por isso mesmo –, eles gravaram apenas um CD, em 2014, que foi intitulado apenas com o nome da banda. O álbum tem músicas autorais e versões das músicas gringas que eles costumam apresentar nos shows. O jornalista e crítico musical Mário Orestre Silva fez uma resenha deste CD para o site Whiplash.net. Curtam:
Escutar um disco da Soda Billy é uma dádiva. Lembro, logo que conheci a banda, que eu ficava imaginando no quão bom seria se esse grupo que só tocava covers e uma música instrumental própria, gravasse um álbum. Eis que o pedido foi realizado e, sem dúvida, satisfazendo todas as expectativas.
A bolachinha abre com “Go To The Boogie”, um puta rockabilly cantado em inglês e que tem um alto astral convidativo à dança. Os arranjos com os metais fazem grande marcação e a voz do guitarrista vocalista Matheus Gondim tem um tom um tanto sarcástico, como um blues man ressaqueado, que dá um clima notívago ao som. A instrumental “Festa Swing” é a segunda e tem o mesmo pique da abertura. Boa pra fundo musical de festa mesmo, fazendo jus ao seu título.
A próxima “Vou Pegar Aline” mantém o clima de sexta-feira à noite. A letra nos remete a um filme de Marlon Brando com gangues de motos e jaquetas de couro. Em seguida vem a ótima instrumental “Long, Long Road”. Um surf music indicado pra fundo musical de lual com garotas de biquíni, bebidas, fogueira em beira de praia e consequências prazerosas.
A sequência mostra uma maravilha inimaginável para o rock manauara. “Bye Bye Baby” é cantado em inglês pela belíssima Kamila Guedes, que não é bela só em sua aparência. Sua voz deliciosa é embriagante e prende a atenção de qualquer homem que tem sua libido despertado pela voz feminina. Um impressionante rythm & blues. Outra grande surpresa vem em seguida. “A Ponte” é uma música acústica, mas tem um pique cativante que remete ao blues roots bucólico e nômade. O destaque vai para a gaita de Mario Valle que sola incansavelmente durante toda a canção. No mínimo se bate o pé no ritmo.
Outra instrumental vem em sequência. “Kid Mostarda” retorna ao rockabilly dançante com uma pegada forte na guitarra mais parecendo trilha de Quentin Tarantino. “Escaravelho Do Amor” é um blusão digno de barzinhos com mesas de bilhar, fumaça de cigarro no ar e mulheres com vestidos decotados. Lembram da única música própria e instrumental que citei no começo do texto? Ela é a próxima. “Surfando No Igarapé Do 40” talvez seja a instrumental do rock manauara mais conhecida. Uma grande música que não podia ficar de fora do disco.
A próxima “Have A Good Time” é outro rythm blues que vale um pouco de atenção. Em seguida vem outra instrumental. “Dizzy’s Surf” é uma mistura de surf music com jazz. Mostra as influências jazzísticas da banda e como o grupo é bom pra marcar dança de casal. Outra com a mesma fórmula engata na sequência. “Latina” é uma instrumental que tem uma pitada caribenha. Feita pra terraço ao luar de transatlântico. “Amor Insano” volta com vocais, mas os acompanhamentos dos sopros e os arranjos são típicos de musicistas. Pra fechar o CD, mais uma instrumental. “Bistrô Blues” talvez seja a mais jazz do trabalho. O gostinho de “quero mais” fica no término da audição, junto com a dúvida de se tratar de uma banda de Manaus ou algum grupo retrô de Las Vegas.
A ausência das letras e dos créditos individuais das músicas passa batido na arte gráfica de Deco Salgado que preencheu o curto encarte com fotos e um visual bem Coca-Cola. Ou seria visual Soda Billy? De qualquer forma o álbum é um grande trabalho indispensável pra quem curte rockabilly, blues, jazz, surf music, boogie woogie, be bop e qualquer outro rótulo vinculado à boa música. Vintage é um termo que se faz pouco para o álbum. Não há dúvidas que se trata de um registro eterno que garante na história da música manauara o reconhecimento do bom rock que existe por aqui. Adquira sem vacilo.
Em 2010, teve início o segundo projeto musical desenvolvido por Matheus Gondim, que resultou na banda “Os Dry Martinis”. Reza a lenda que a banda teve uma estreia nada convencional em um tradicional cinema da cidade, o Cine Oscarito, na Avenida Getúlio Vargas, no Centro, onde funcionava anteriormente o antigo Cine Renato Aragão (1990-2001). O cinema não existe mais. A origem do nome da banda foi inspirada em um drink antigo, muito popular nos anos 40 e 50.
– Queríamos algo que soasse bem, fosse de fácil pronúncia e fizesse referência aos anos 50. Desta forma foi natural a escolha do nome, além de ser uma referência a pin-ups como a artista burlesca Dita Von Teese e ilustrações do Sailor Jerry – afirmou Rayssa Deschain, contrabaixista e parceira de Matheus Gondim na vida real.
A banda é composta por quatro integrantes: Rayssa Deschain, Matheus Gondim, Mixiko (bateria) e Faresin (violão). Apaixonados por música, apenas um dos integrantes vive 100% dessa paixão, o restante divide sua paixão com suas formações profissionais, professores mestres e doutores. Desde então a banda de rock tem levado o rockabilly e rock & roll dos anos 50 para diversos lugares de Manaus. Há dois anos, a banda lançou seu primeiro registro de trabalho autoral em todas as plataformas digitais, o álbum intitulado “Homônimo”.
Numa pegada que resgata a irreverência e energia do neorockabilly, o grupo traz em seu repertório referências sonoras de clássicos que marcaram a década de 1980 e até hoje são ícones do estilo, como Stray Cats e Polecats, que, por sua vez, misturam o rockabilly dos anos 1950 com new wave e punk. No álbum, o quarteto lançou sete músicas, sendo as autorais “Sweet Little Mama”, “Go Wild” e “Shake It Up” em inglês, o blues “Vertigem” em português, “Perdeu Playboy”, um instrumental com toques de surf music e psychobolly, e uma curiosa versão de “OMG”, do americano Usher.
As composições levam a assinatura do guitarrista Matheus Gondim e da contrabaixista Rayssa Deschain, que, inclusive, já foi destaque no Universo Retrô como Pin-Up do Mês e é bastante conhecida no universo das pin-ups brasileiras. Rayssa ainda integra a banda de surf music Las Mucuras, que também lançou um álbum recentemente. Com ícones que remetem ao universo do rockabilly, a arte de capa do álbum foi feita pelo artista da cena Old78’s, com fotos do fotógrafo amazonense Álvaro Mello.
– Nós já tínhamos algumas músicas autorais, mas que ainda não tínhamos gravado – recorda Matheus Gondim. – E com a covid-19 e a perda de amigos próximos sentimos a necessidade de fazer um registro do trabalho da banda que já tinha alguns anos de estrada. Mas não tínhamos registro nas plataformas de streaming. Para a sonoridade priorizamos referências dentro do rockabilly e rock and roll 50’s que gostamos de ouvir, demos preferência a composições dançantes como “Shake It Up”.
Sobre a escolha desse estilo musical, que, na prática, também é uma espécie de “parente” do estilo musical da Soda Billy, Matheus é simples e direto.
– O rockabilly aparece ali bem no início dos anos 50 assim como o rock & roll. Eles não são iguais, são diferentes enquanto o rock & roll tem o pé mais no blues, o rockabilly tem o pé mais no country – disserta. – Estamos bem anos 50 porque pra gente não é somente um som, existe toda uma subcultura e cena em volta, cena esta que participamos e ouvimos por muitos anos. Então para nós é uma escolha natural, gostamos da estética e sonoridade dos anos 50. Somos retrô, porém não somos retrógrados.
Em 2020, um terceiro projeto musical com as digitais (não confirmadas) de Matheus Gondim foi apresentado ao público manauara: a banda de surf music instrumental intitulada Las Mucuras. A banda fez a sua estreia no meio da pandemia em uma live para o site Universo Retrô.
Fantasiados com máscaras de praticantes das famosas lutas livres mexicanas, Las Mucuras tem como principal influência as bandas The Shadows, Ventures e Los Straitjackets. A ilustração do EP e todo o resto da parte gráfica foi feita pelo artista Old78s.
A formação traz Silver Head (guitarra), X-Ray (baixo), Okixim (bateria) e Wolverine (guitarra base). Pelo menos três músicas já podem ser conferidas no streaming: “Icamiabas”, “Egyptian Love Dream” e “Danny & Magnani”. Se não bastasse isso, Las Mucuras fez parte do line-up do Psycho Carnival 2025, em Curitiba, que rolou do dia 27 de fevereiro a 4 de março.
As outras vozes da tribo
É claro que numa obra com este perfil não daria para elencar todos os novos grupos musicais amazonenses, mas quem se dispuser a pesquisar na web vai se deparar com um leque diversificado de boas músicas feitas por uma galera da melhor qualidade. Algumas dessas bandas e cantores seguem aqui apenas como referência:
Raízes Caboclas – Formado na década de 1980, o Raízes Caboclas tem como principal objetivo a abordagem das raízes culturais da Amazônia, buscando referência nas diversas tendências musicais da região. Foram pioneiros na mistura de cantos indígenas ao som do beiradão, como pode ser conferido no clássico “Cantos da Floresta”.
Canhamukaya – Um roots reggae honesto e bem tocado, inspirado nas coisas manauaras, como pode ser conferido em “Chão de Floresta”.
Cidade Flutuante – A defesa da Amazônia numa sonoridade que flerta displicentemente com o dancehall, como pode ser conferido em “Alma”.
Nattus Triballia – Um roots reggae turbinado por guitarra noise, conforme pode ser visto em “Saudações Terráqueos”.
Santa Kaya – Crítica social num reggae alucinado e hipnótico, conforme pode ser visto em “Oh Jah Jah”.
The Stones Ramos – Cafajestes assumidos, quase clones do cearense Falcão, que transformam rock clássicos em música brega.
Chora Cachorro – Um quarteto de rock que transforma as músicas bregas de Reginaldo Rossi em rock setentista da melhor qualidade.