Balangandãs de Parintins

A cobra grande do Mestre Jair Mendes

Postado por Simão Pessoa

Fevereiro de 2002. Apresentando o tema “Amazonas, este desconhecido – delírios e verdades do Eldorado verde”, o GRES Portela fez a arquibancada da Marquês de Sapucaí delirar ao levar para a avenida aquela que é considerada a águia mais bonita de sua história.

Criada pelo artista Jair Mendes, a águia, caracterizada com as cores do gavião-real e exibindo movimentos extremamente realistas, surgiu encarapitada no topo de um imenso guindaste do carro abre-alas, sobrevoando os rios e matas da Amazônia e soltando seu potente grito de guerra, misturado ao som ambiente da floresta.

Por alguns minutos, o povo presente nas arquibancadas acompanhou extasiado o voo da escultura, que parecia estar viva. A imensa ave batia suas asas e mexia o bico, movimentando-se para todos os lados da avenida.

A entrada da Portela, além de triunfal, fez o público aplaudir de pé. À frente da águia, havia a inscrição “Portela”, em néon, também em letras gigantescas. A letra “t” da inscrição estava presa nas garras da águia por um fio de aço praticamente invisível.

A cunhã-poranga do boi Caprichoso, Jeane Benoliel, na flor dos seus 17 anos, que vinha como destaque na referida letra, acompanhou a águia em seus longos voos pela avenida. Com a índia nas alturas, a inscrição tornava-se “Por ela”, um pedido pela preservação da floresta. Coisa de gênio.

Duas décadas antes, em 1982, o gênio Jair Mendes já estava começando a mostrar que, em se tratando dos bumbás de Parintins, a imaginação não tem limites. Responsável pelas alegorias do Garantido, ele resolveu levar para o tablado do Estádio Tupy Cantanhede (onde, na época, era realizado o festival) a encenação da lenda da cobra-grande.

O artista cantou a pedra: a tal cobra-grande ia engolir uma tribo inteira de índios, na frente de todo mundo, e depois sair da arena como se nada tivesse acontecido. Os artesãos do bumbá Caprichoso ficaram com uma pulga atrás da orelha.

Como aquela façanha nunca tinha sido realizada antes, a história da cobra-grande virou o assunto favorito das conversas na cidade. Se Jair Mendes cumprisse o prometido, o bumbá Garantido já podia comemorar o título por antecipação.

O truque era simples, mas extremamente criativo. Percebendo que o tablado de madeira ficava a um metro e meio do solo, Jair Mendes providenciou um alçapão no assoalho. À medida que os índios fossem sendo engolidos, eles deslizariam pela barriga da cobra, cujo rabo estaria sobre o alçapão. Aí, era só abrir um fecho éclair no rabo do ofídio, levantar a tampa do alçapão e se escafeder por baixo do tablado.

Com o resto do estádio no escuro, a plateia ia ficar boquiaberta com o “sumiço” dos índios no tablado iluminado. Seria uma façanha digna do ilusionista David Blaines.

Apesar de o truque ser tratado como segredo de estado na seara do Garantido, algum coiote da pata branca contou a história para o pessoal do Caprichoso, que, nessa noite, iria se apresentar antes do rival.

Durante a apresentação do touro negro, o “miolo” da boneca-gigante Aurora parou em cima do alçapão e, enquanto o bumbá Caprichoso evoluía na arena, ele lacrou a “porteira” com mais de 50 pregos de três polegadas. A cantoria da Marujada de Guerra impediu a plateia de escutar as marteladas.

Sem saber do golpe baixo, a turma do Garantido entrou na arena para fazer sua apresentação. O ponto alto seria a encenação da lenda da cobra-grande. Quando aquela enorme anaconda de quase dez metros de comprimento por um metro de largura surgiu no tablado, ficou todo mundo com a respiração suspensa. A cobra era simplesmente magnífica. O próprio Jair Mendes estava dentro do ofídio, fazendo os movimentos que tornavam a alegoria extremamente realista.

Deslizando em ziguezague pelo tablado, a cobra-grande atacou uma aldeia indígena. Um a um, os índios Baniwa que tentaram enfrentar a fera foram sendo engolidos. Entretanto, como o alçapão de escape estava lacrado, eles foram se amontoando no bucho da cobra-grande, numa versão tropical de Jonas e a Baleia. Ao ver o corpo da cobra se alargando cada vez mais, Jair Mendes começou a ficar nervoso.

A cobra já estava para explodir, mas a fila de índios não parava de crescer porque os índios Kaxinawá vieram ajudar seus amigos Baniwa e também começaram a ser devorados. Dentro da cobra, o sufoco era total. Submersos pela maré humana, os três moleques que auxiliavam Jair Mendes na movimentação do ofídio abandonaram a função. A cobra ficou estática como se estivesse “jiboiando”, enquanto no seu ventre a confusão aumentava.

Desesperado, Jair Mendes abriu a bocarra do ofídio e fez um sinal para o apresentador Paulinho Faria avisando que alguma coisa tinha dado errado.

Rápido no gatilho, Paulinho tirou um coelho da cartola:

– Observem o que está acontecendo na arena, senhoras e senhores jurados! Depois de engolir 20 guerreiros Baniwa e 15 guerreiros Kaxinawá, a cobra-grande começou a passar mal! Ela está sofrendo de congestão! Ela está quase morrendo! Essa fera dos rios só não vai morrer se conseguir vomitar! Vamos ver se ela consegue…

Jair Mendes foi o primeiro a se jogar de dentro da cobra para o tablado, sendo seguido pelo restante dos índios. O apresentador não contou conversa:

– É incrível, senhoras e senhores, mas a cobra-grande começou a vomitar! Os Baniwa ou os Kaxinawá utilizaram alguma poção mágica no estômago da fera, para provocar sua indigestão! Observem bem, senhores! Os índios estão saindo são e salvos de dentro do monstro aquático! Que espetáculo maravilhoso o boi Garantido está apresentando na arena! Sensacional! Fantástico! Que coisa linda!

E um a um, os índios saíram de dentro do ofídio e foram embora.

Jair Mendes ficou tão injuriado com o desfecho inesperado do espetáculo que havia concebido com tanta dedicação e trabalho, que passou uma semana andando com um serrote pelos quatro cantos da ilha para na primeira oportunidade cortar os chifres do bumbá Caprichoso.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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