Balangandãs de Parintins

Adolfo Lourido, o menestrel de Parintins

Postado por mlsmarcio

Filho de um missionário espanhol, que abandonou a batina depois de se apaixonar por uma nativa da comunidade Maranhão do Uaicurapá, na zona rural de Parintins, o poeta e trovador Adolfo Lourido era um artista tão profundo em sua simplicidade, um boêmio tão largado em suas serenatas improvisadas a qualquer hora do dia ou da noite, um agricultor tão exemplar na sua honradez e competência, e um ser moral de ternura a um tempo tão ardente e esclarecida, que seus conterrâneos o tomaram por louco. Não era.

Por ter herdado em maior proporção os genes paternos do que os maternos, sua delgada estatura óssea, sua pele de algodão-doce quase cor-de-rosa e seus olhos claros, brilhantes, de intensa ternura o diferenciavam do resto dos moradores da comunidade, quase todos caboquinhos entroncados de pele morena.

Além disso, Adolfo Lourido preferia as leituras na imensa biblioteca do pai do que o aprendizado da cultura ribeirinha praticado na comunidade. Ele nunca aprendeu a tecer trançados de palha ou transformar fios de linha em magníficas malhadeiras, mas sabia de cor e salteado vários sonetos dos simbolistas franceses. Não é de se admirar, portanto, que Adolfo Lourido fosse tratado por eles quase como um alienígena.

Provavelmente, o poeta nasceu em 1896, na referida comunidade Maranhão do Uaicurapá, e fez seus estudos primários na vizinha cidade de Santarém (PA). Quando indagado a respeito de sua instrução acadêmica, ele garantia que só estudara até o 3º ano primário. Verdade ou mais uma simples ironia de Lourido, esse fato não pode ser tomado como indicativo de que ele detinha um precário cabedal de cultura e informação. Pelo contrário. Se compararmos o nível do ensino atual com o daquela época, seria como se Lourido tivesse concluído o atual 1º grau (ou antigo “curso ginasial”).

Também é provável que Adolfo Lourido tenha aprendido a tocar violão frequentando o Conservatório de Música de Santarém, considerado a primeira escola de música da região. O que se sabe de concreto é que, a partir da adolescência, Lourido começou a compor uma série de canções ao mesmo tempo em que trabalhava duro na pequena plantação de frutas e hortaliças mantida pela família. Em ocasiões especiais, como festas religiosas na comunidade, ele fazia pequenos recitais de suas obras ainda inéditas.

Foi a partir dos anos 50, que as canções de Adolfo Lourido passaram a ser ouvidas na sede do município. Acompanhando seu único irmão, Zé Lourido, também agricultor como ele, nas vendas de frutas e hortaliças nas feiras e mercados de Parintins, Adolfo ficou encantado com um sistema de alto falantes (“Voz da Francesa”), no bairro da Francesa, e criou coragem para mostrar algumas de suas singelas canções. Uma das músicas apresentadas (“As torcedoras do Uaicurapá”) caiu no gosto da galera e ele passou a ser requisitado para mostrar seu repertório em reuniões mais informais.

Adolfo Lourido sempre se prontificou a participar de bom grado nesses saraus improvisados onde ele era a única atração, mas impunha uma única condição: não queria receber cachê em dinheiro, queria receber em cheque. Cheque, para ele, era qualquer pedaço de papel em branco devidamente preenchido com o valor da apresentação e a assinatura do contratante. Quando, muitos anos depois, tentou descontar aquelas centenas de folhas de “cheque” em uma agência bancária, sem obter resultado, passou a cultivar uma excentricidade calculada, que muitos julgaram ser indícios de loucura. Não era.

Sem jamais ter sabido da existência de Moreira da Silva (aka “Kid Moringueira”), Adolfo Lourido foi um pioneiro no samba de breque: ele interrompia a sua cantoria no meio da apresentação, sem aviso prévio, discorria a respeito de um termo da letra que julgasse pertinente, e depois retomava a cantoria na mesma pegada. Um bom exemplo disso acontecia na já citada “As torcedoras do Uaicurapá”.

Sempre se acompanhando ao violão, Lourido começava a cantoria: “As torcedoras lá do Uaicurapá / Quer ser valente sem ter rivá / Com fé ardente e dur no coração / Conta história do capitão / O Nonatinho e o Aquino / E o Antonio Saboia avança / João Vieira e Dom Belém / José Lourido” (aí ele fazia o breque para dar a explicação, enquanto continuava tocando o violão). “José Lourido é meu irmão mais velho. Nós semo dois. Ele jogava de beque esperado pela ralfe esquerda e eu jogava de beque esperado pela ralfe direita. Ganhemo muito mate jogando assim.” (aí ele retomava a cantoria original). “João Vieira o beque avançado / Chutou na bola que deu na barra / Porém agora o seu Taumaturgo/ E o João Vieira fizero um escangalho/ Quando chegamos no São Domingo / Que o caixeiro nos avisou / Para jogar o mate / às seis horas se acabou”.

Lourido sabia que “match” era sinônimo de “partida” e pronunciava como lia: “mate”. Também sabia que “half” significava “meio” e que, nesse caso, o agá tinha som de erre, daí pronunciar corretamente “ralfe”. Logo, não era tão bobo quanto os outros supunham.

Quando percebeu que as jovens de Parintins haviam começado a usar um corte de cabelo curto, no estilo Chanel, ele, cultor das antigas formas femininas, fez uma canção de protesto: “Vestido curto, cabelo aparado / Saia serpentina, cangote raspado / Isso não se faz / Cortar peladinho / Também é demais / A moda de hoje / Não é pra quem quer / É só pra homem / Não é pra mulher”. Virou um hit instantâneo porque os rapazes da ilha modificaram um dos versos para “cortar o peladinho também é demais”, numa clara alusão ao objeto de desejo masculino.

Sempre vestido garbosamente de paletó e gravata, mas usando uma prosaica sandália havaiana, Adolfo Lourido começou a ser requisitado pelos boêmios de Parintins para animadas serenatas, tanto nos “bas-fonds” locais, na parte da noite, como para as moçoilas casadoiras, durante o dia. Dizia-se a boca pequena que ele era apaixonado pela dona Carmelita, mas, como um perfeito cavalheiro, ele se negava a comentar esses boatos. Ainda assim compôs uma canção desesperada e dilacerada para a musa em questão: “Por causa dela / Ô, por causa dela / Meu coração bateu tanto / Que quebrou minha costela / Por causa dela minha vida se entortou / Meti o pé esquerdo / E o direito atrapalhou”.

Algumas vezes, Adolfo Lourido parecia estar possuído pelo espírito de Zé Limeira, o “poeta do absurdo”, como se vê nessa composição sobre a revolução tenentista dos anos 30. Pouco se lixando para cortes epistemológicos ou similares, Lourido coloca no mesmo balaio de gatos o líder revoltoso Ajuricaba e o barco Ajuricaba, que os revoltosos utilizaram para atacar o paquete Bahia, das forças legalistas: “No dia 14 de março / Data que nunca se acaba / Desembarca os revoltosos / A bordo do Ajuricaba / Era um navio desastroso / Que desastrou-se com a guarnição / Era o paquete Bahia / Que no mar é o campeão / Preso sempre foi respeitado / E todos os navios / Que por ele foi aprisionado / Ajuricaba se arrevoltou / Dentro da capitá de Manaus / Viajou para Belém / E Ajuricaba era o tal.”

Quando se mudou definitivamente para Parintins, já no início dos anos 70, para morar na casa do irmão Zé Lourido, Adolfo Lourido começou a entrar em uma fase de recolhimento, mais pungente e melancólica, como pode ser visto na letra de uma de suas últimas canções: “Eu vivo triste como sapo na lagoa / Vivendo pelas baixas escondidas / Eu vou largar da minha maldita serenata / Pra ver se eu conserto a minha vida.”

Foi nessa mesma época que o pesquisador de cultura popular, músico e compositor Pedrinho Ribeiro, outro parintinense da gema, começou a travar um contato mais direto com ele. Diariamente, o músico se dirigia à casa do poeta para conversarem sobre uma possível parceria. Pedrinho estava montando o espetáculo “Ópera Cabocla” e queria incluir na peça uma parte do repertório de Adolfo Lourido. O poeta estava muito feliz por ter sido redescoberto por um músico da novíssima geração.

– Muito anos antes de estarmos juntos, eu já havia lhe visto cantando pelas ruas de Parintins nos anos 60 e sempre achei que sua fama de doido era um exagero – diz Pedrinho Ribeiro. – Na verdade, ele era um puro, uma pessoa sem maldade, que por alguma razão interior optou em não exercer sua vida sexual. Ele morreu virgem e acho que foi essa a única grande loucura dele.

Segundo Pedrinho, a obra que Lourido deixou não teve até hoje a divulgação que fizesse justiça à sua grandeza de poeta e compositor. Certamente continuará guardada em algum lugar deste mundo, dentro da mesma mala que ele conservava debaixo da cama. Os originais de seu livro de poemas repousam para sempre no limbo para onde vão os nossos brinquedos perdidos na infância.

– Ele realmente ficava irritado, apoplético, à beira de entrar em surto, quando o jogador Sulanca se aproximava dele e pedia a bença, se passando por seu filho! – recorda Pedrinho. – Para Adolfo Lourido, cuja espiritualidade se sobrepunha aos desejos da carne desde tempos remotos, ser tomado pelo pai de um filho bastardo era uma suprema humilhação.

Quando ficava nesse estado de desespero, o poeta saía resmungando sozinho pelas ruas, recitando sonoros palavrões, e a molecada aproveitava para lhe atirar pedras e fazer mangoças. Foi por causa disso que lhe atribuíram a pecha de doido manso. Não era.

A “Ópera Cabocla” foi apresentada no Cine Teatro da Paz, de Parintins, em 1981, e depois no Teatro Amazonas, em Manaus, no mesmo ano, mas Adolfo Lourido não estava na plateia. Ele também não ficou sabendo que sua obra seria transformada em matéria extracurricular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) por iniciativa dos estudantes e professores do Projeto Rondon, que assistiram à peça de Pedrinho Ribeiro e ficaram comovidos.

O poeta Adolfo Lourido morreu em 1979, aos 83 anos de idade, de causas naturais, e foi enterrado em Parintins. Para perpetuar a memória do poeta, o prefeito Bi Garcia batizou o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Parintins com o nome de “Adolfo Lourido”. Nada mais justo.

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