Por Simão Pessoa
O cantor e compositor Francisco Ferreira da Silva, mais conhecido como Chico da Silva, nasceu no dia 8 de maio de 1945, na zona rural de Parintins, na região do rio Uaicurapá, filho de Antônio Soares da Silva e Edvirgem Ferreira da Silva.
Seu pai era cearense, descendente de portugueses e espanhóis. Sua mãe era acreana, descendente de africanos. Antônio e Edvirgem se conheceram em um seringal em Xapuri (AC), namoraram, noivaram, casaram e se mudaram para Parintins, em busca de uma vida melhor.
A mãe de Chico da Silva faleceu quando ele estava com três anos e o pai, quando ele estava com dez anos. Órfão de pai e mãe, Chico da Silva foi adotado pela professora Guajarina Nazaré Prestes, que cuidou do moleque como se fosse seu filho biológico.
Por intermédio do bispo de Parintins, Dom Arcângelo Cérqua, Dona Guajarina soube da existência da Escola Técnica Federal de Manaus e encaminhou o filho para ser internado naquele educandário, depois que o mesmo foi aprovado no exame seletivo para ingressar na instituição.
Chico da Silva cursou o Ginásio Industrial Básico, tornando-se torneiro mecânico, chegando a trabalhar em algumas oficinas de refrigeração da cidade por alguns anos.
Em 1966, em busca de uma vida melhor, Chico da Silva, aos 21 anos, viajou para São Paulo. Depois de muito peregrinar, foi admitido como torneiro mecânico na Indústria Villares, em São Bernardo dos Campos, no ABC paulista, onde se concentravam várias indústrias.
Ele teve como companheiro de seção um torneiro mecânico da mesma idade, chamado Luís Inácio da Silva, que não tinha o dedo mínimo da mão esquerda cortado por uma prensa dois anos antes. Nessa época, o torneiro mecânico Luís Inácio passou a se envolver nos movimentos sindicais, levado por seu irmão José Ferreira da Silva, conhecido por Frei Chico.
O torneiro mecânico Chico da Silva preferiu se aproximar do meio musical, cantando nas noites paulistas como intérprete de vários sambistas brasileiros, como Noite Ilustrada e Zé Kéti.
Quem primeiro descobriu a bonita sonoridade vocal daquele sambista amazônico foi o cantor Jair Rodrigues. Ele ficou tão empolgado que levou Elis Regina para ouvir Chico da Silva cantando no Bar do Vito, na Vila Zelina, na zona leste de São Paulo.
Os três ficaram amigos íntimos (Chico da Silva chegou a escrever um samba para a “Pimentinha”, intitulado “A Batuta”, em 1970, que só foi gravado em 1991, pela cantora amazonense Lucilene Castro).
Quando soube que Chico da Silva também era compositor, Jair Rodrigues apresentou o parintinense ao compositor Marcos Cavalcanti de Albuquerque, o “Venâncio”. Os dois se tornaram amigos e parceiros musicais.
Uma década antes, Venâncio e José do Espírito Santo, o “Curumba”, criaram o inesquecível baião “Último Pau de Arara”, que se transformou em uma das músicas mais conhecidas do cancioneiro nordestino.
O baião fez tanto sucesso que foi gravado por Luiz Gonzaga, Ari Lobo, Catulo de Paula, Quinteto Violado, Clara Nunes, Fagner, Maria Bethânia, Sérgio Reis, Caetano Veloso, Zé Ramalho, Teca Calazans, Gilberto Gil, Caju & Castanha, Carmélia Alves e Jair Rodrigues.
Chico da Silva continuou sua carreira musical de cantor de bares e boates da noite paulistana, enquanto aprimorava seus gorjeios musicais e esperava uma oportunidade para estrear em vinil.
Ao mesmo tempo, anotava em um velho caderno o esboço de dezenas de letras feitas em parceria com dezenas de músicos que conhecia durante suas andanças noturnas pela capital paulista, mesmo ainda morando em Diadema.
Em 1974, segundo o próprio Chico da Silva, ele foi contratado pela TV Gazeta para cantar sucessos da época durante um programa semanal de desfile de modas. Seu repertório incluía os principais sucessos de Luiz Ayrão, Agepê, Noite Ilustrada, Paulinho da Viola e Martinho da Vila.
Um dia, logo após terminar a gravação do programa, Chico da Silva entrou no elevador da emissora quando se deparou com um rosto aparentemente conhecido.
– Você não é o Fred, lá de Parintins? – perguntou à queima-roupa.
– Sou sim. E você não é o Tamboretinho, filho do seu Tamborete? – devolveu o sujeito.
E os dois caíram na gargalhada. Tamboretinho e Tamborete eram os apelidos de Chico da Silva e de seu pai, em Parintins, por causa da baixa estatura de ambos.
Fred Góes, que tem a mesma estatura de Chico da Silva, estava em São Paulo há nove anos. Se formara em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, trabalhava no Jornal da Tarde e estava tocando na noite. Os dois trocaram endereços e começaram a se visitar.
Numa dessas visitas, Fred Góes deu um poema a Chico da Silva, que resolveu musicá-lo. Nascia a primeira composição da dupla, “Cantiga de Parintins”, uma toada em ritmo de samba: “Na ilha tupinambarana / nasceu Parintins que eu vou decantar / Parintins dos parintintins / nome da tribo desse lugar / No seio da mata virgem / a pureza das araras / o som do silêncio morno / a maloca dos caiçaras / o canto da ariramba / o barranco do rio mar / o som rouco de remanso / o mormaço branco no ar / o catar do miri-miri / mari-mari e taperebá / o cheiro de murici / o vinho de patuá / o lombo de peixe-boi / pirarucu bem assado / piracuí de bodó / tucunaré moqueado / manja de turma se esconde / a outra vai procurar / a tribo dos Andirás / a dança do tangará / terra de dona Siloca / pastoras de meu boi bumbá / a pesca da piraíba / viração de tracajá.”
Em 1975, Alcione, a “Marrom”, havia lançado seu primeiro disco, “A Voz do Samba”, cujo carro-chefe era a música “O Surdo”, de Paulinho Resende e Totonho: “Amigo, que ironia desta vida / Você chora na avenida / Pro meu povo se alegrar / Eu bato forte / E aqui dentro do peito uma dor / Me destrói / Mas você me entende / E diz que pancada de amor não dói / Meu surdo, parece absurdo / Mas você me escuta / Bem mais que os amigos lá do bar / Não deixa que a dor / mais lhe machuque / Pois pelo seu batuque / Eu dou fim ao meu pranto e começo a cantar / Meu surdo, bato forte no seu couro / Só escuto este teu choro / Que os aplausos vem pra consolar / Meu surdo velho amigo e companheiro / Da avenida e de terreiro /De rodas de samba e solidão / Não deixe que eu vencido de cansaço / Me descuide desse abraço / E desfaça o compasso do passo do meu coração”.
Um dia, durante uma conversa com Venâncio, Chico da Silva tocou na ferida:
– Eu gosto muito desse samba da Marrom, compadre, mas esse papo de que o surdo chora numa roda de samba é uma tremenda cascata… O surdo é de marcação, só apanha de vez em quando! Quem se fode mesmo numa roda de samba é o pandeiro! Esse sim, apanha pra caralho! Você não acha, compadre?…
– Eu acho sim, parceiro, eu acho sim! Que tal se a gente fizesse uma música corrigindo essa injustiça e colocando na letra o ponto de vista do próprio pandeiro?…
– É por aí mesmo, compadre, é por aí mesmo!
Um mês depois, os dois compositores haviam feito “Pandeiro É Meu Nome”: “Falaram que meu companheiro / Meu amigo surdo parece absurdo / Apanha por tudo / Ninguém canta samba / Sem ele apanhar / Não ouviram que seu companheiro / Amigo pandeiro / Também tira coco do mesmo coqueiro / Apanha sorrindo pro povo cantar / Pandeiro / Não é absurdo mas é o meu nome / Não me chamo surdo mas aguento fome / Pandeiro não come mas pode apanhar / Ao povo que vibra na força do som brasileiro / Não é só surdo nem só o pandeiro / Tem uma família tocando legal / Você cantando, tocando e batendo na gente / Passando por tudo tão indiferente / Não conhece a dor do instrumental / Batuqueiro ê, batuqueiro / Cantando samba pode bater no pandeiro”.
A música foi mostrada a Alcione, que adorou a composição e incluiu no seu terceiro disco “Pra Que Chorar”, de 1977. Puxado pelo hit instantâneo de Chico da Silva e Venâncio, o novo LP da Marrom vendeu 400 mil cópias, praticamente o dobro dos LPs anteriores.
Empolgados com o sucesso de “Pandeiro É Meu Nome”, Chico da Silva e Venâncio começaram a compor febrilmente para um futuro disco do cantor parintinense. Dessa parceria saem pérolas como “Barba Azul”, “A Volta ao Mundo em 30 Segundos”, “A Chave”, “Esquadrão do Samba”, “Amor sem Juízo”, “Aquarela Amazonense” e “Tudo Mudou”.
Os artistas de primeira linha da gravadora Philips, como Chico Buarque de Holanda e Alcione, gravavam pelo selo “Philips”. Os artistas em início de carreira gravavam pelo selo “Polydor”. Os produtores dos dois selos, entretanto, eram os mesmos.
Chico da Silva levou 20 sambas para que os executivos da gravadora escolhessem os 12 que entrariam no repertório do disco. Aí avisou que queria que a música de trabalho do LP fosse o samba “Sufoco”, dele e de Antônio José. Os executivos pediram para ele mostrar a música.
Só com voz e violão, Chico da Silva mandou ver: “Não sei se vou aturar / Esses seus abusos / Não sei se vou suportar / Os seus absurdos / Você vai embora / Por aí afora / Distribuindo sonhos / Os carinhos / Que você me prometeu… / Você me desama / E depois reclama / Quando os seus desejos / Já bem cansados / Desagradam os meus… / Não posso mais alimentar / A esse amor tão louco / Que sufoco! / Eu sei que tenho / Mil razões / Até para deixar / De lhe amar / Não, mas eu não quero / Agir assim, meu louco amor / Eu tenho mil razões / Para lhe perdoar / Por amar…”
Assim que escutaram o samba, os executivos perceberam que estavam diante de outra obra-prima e jogaram duro:
– Meu amigo, esse samba está bom demais, mas para ser gravado pela Alcione! Vai ser o carro-chefe do terceiro LP dela, que nós vamos lançar em 1978! Ou você cede esse samba pra Marrom gravar ou nós não produzimos o seu LP…
Mesmo contrariado e puto da vida, Chico da Silva cedeu à pressão dos executivos.
Como prêmio de consolação, o parintinense foi autorizado a incluir a sua própria versão de “Pandeiro É Meu Nome”, no LP “Samba: quem sabe diz…”, lançado em 1977, que marcou sua estreia na indústria fonográfica.
A versão ficou tão boa que foi incluída na trilha sonora da novela “Sem Lenço, Sem Documento”, da Rede Globo, que marcou a estreia de Bruna Lombardi na emissora.
Em compensação, Chico da Silva excluiu definitivamente “Sufoco” do seu repertório. Não tem cristão no mundo que o faça cantar essa música.
Apesar desse acidente de percurso, a carreira de sambista de Chico da Silva decolou de vez. Ele gravou 12 discos, à média de um por ano, fez dezenas de aparições no programa “Fantástico”, da Rede Globo, participou de inúmeras apresentações na “Discoteca do Chacrinha”, no “Programa do Bolinha”, no “Programa Raul Gil” e em outros programas televisivos, fez centenas de shows do norte ao sul do país, emplacou sucessos inesquecíveis como “É Preciso Muito Amor”, “Deus Menino”, “Convite A Roberto Carlos”, “Dinorá”, “Falso Amor Sincero”, “Cantiga de Parintins”, “Açucena”, “A Lenda Dos Sete Mares do Amor” e Chalaça”, mas teve sua carreira interrompida em 1989, quando foi diagnosticado com câncer na laringe.
Botafoguense fanático, Chico da Silva fez um único pedido ao oncologista: que marcasse a cirurgia para depois da final do campeonato carioca, entre Botafogo e Flamengo, que seria disputada no dia 21 de junho daquele ano. O médico concordou.
O sambista foi ver o jogo no Maracanã. O Botafogo ganhou de 1 a zero, gol de Maurício, colocando fim a um jejum de 21 anos sem títulos. Chico da Silva saiu do estádio diretamente para ser internado na clínica. Foi operado dois dias depois. Antes de lhe dar alta, o médico avisou:
– Você vai ficar sem cantar por pelo menos uns 15 anos, se não quiser que ocorra uma recidiva da doença e perder de vez as cordas vocais. Minha recomendação é que você volte à sua terra natal. Longe da boemia carioca, seu pós-operatório será mais tranquilo!
Chico da Silva atendeu às recomendações do médico e voltou a morar em Parintins.
Por insistência do jornalista Marcos Santos, ele começou a compor toadas para o boi Caprichoso, seu bumbá de coração. “Minha mãe foi uma das fundadoras do boi Caprichoso, em 1925”, explicava. “Sou azul e branco de nascença”.
Voltaremos ao assunto, porque o Chico da Silva merece.