Balangandãs de Parintins

Emerson Maia, o eterno Xamã do Festival de Parintins

Postado por Simão Pessoa

Por Simão Pessoa

Filho de dona Ladir e do pecuarista Antônio Maia, um dos primeiros padrinhos do bumbá Garantido, o cantor e compositor Emerson Maia, um ano mais novo que J. Carlos Portilho, teve uma carreira musical muito parecida com a do seu amigo de adolescência.

Ainda bem pequeno, ele já se exibia em festas de colégio e reuniões. Aprendeu a tocar violão com 14 anos, mas logo trocou o instrumento pela guitarra elétrica.

Diferente de J. Carlos Portilho, que curtia MPB, Emerson Maia preferia o rock inglês (Led Zeppelin, Deep Purple e Black Sabbath) e o rockabilly norte-americano (Chuck Berry, Little Richards e Elvis Presley). Foi vocalista, tecladista e guitarrista do grupo The Glads Boys, que incendiava as noites dançantes dos clubes de Parintins nos anos 70.

Além da fazenda Remanso, Antônio Maia era comerciante (possuía uma usina de pau rosa) e político (foi presidente da Câmara Municipal de Parintins), mas seu xodó era mesmo o boi Garantido.

O Natal era muito festejado por ele, que todo ano organizava um grande almoço para a comunidade com distribuição de presentes para as crianças e a presença do touro branco sendo comandado por mestre Lindolfo Monteverde em pessoa. A mesma coisa acontecia no dia de São João.

No final dos anos 70, Emerson começou a compor músicas densas de tristeza e poesia para disputar os festivais de canção que aconteciam na região do baixo Amazonas, tendo vencido a maioria das disputas em que participou.

Foi por insistência da irmã, a médica Ednéia Ribeiro, esposa do médico Euler Ribeiro, que ele começou a fazer músicas para o Garantido. Sua primeira toada evocava a figura paterna: “Sentei junto ao pé da roseira / Lembrei minha infância, fogueira e balões / Lembrei de meu pai, meu amigo / Esperando ansioso o meu boi Garantido / Tempos que ficaram pra trás / Gente que partiu pra ficar / Mas deixaram isso bem definido / Que o boi campeão da Terra / Sempre será o boi Garantido”.

Segundo o jornalista Neuton Corrêa, no dia 6 de julho de 1979, quando Lindolfo Monteverde atravessou para a terceira margem, Emerson apareceu cedo na Baixa da Xanda. Parou na Mercearia Martins Filho, puxou uma cadeira de embalo e pediu uma cerveja.

De frente para as águas do rio Amazonas, ele afinou o violão e ensaiou os primeiros acordes para a música de despedida do amigo e mestre que estava sendo velado no curral do Garantido: “Silêncio, tudo está consumado / O nosso Amo amado / partiu e deixou o São José / A voz que sempre lhe foi fiel / Agora estronda nos bosques, nas pradarias do céu / Muito obrigado por criar boi Garantido / Hoje teu filho teu canto vai entoar / Nosso folclore sempre vai reconhecer / Foste um exemplo de caboclo / inesquecível Lindolfo”.

Essa música é considerada hoje o hino da família Monteverde, por isso sempre é tocada nos eventos nos quais a memória de Lindolfo é reverenciada.

Com a morte de Lindolfo, Emerson se transformou no levantador de toadas do Garantido até a chegada de David Assayag, em 1995. Ele também substituiu o Amo do Boi João Batista Monteverde em alguns festivais, cabendo a Paulinho Faria ser apresentador e levantador de toadas nessas ocasiões.

Alto, forte, musculoso, imponente e com o cabelo nos ombros desde os tempos da Jovem Guarda, Emerson Maia lembrava um cacique sioux e era grosso que só papel de embrulhar prego. Seu mau humor era fonte permanente de mexericos na ilha. Avesso a badalações e aos assédios dos fãs, o cantor utilizava esse artifício de sujeito turrão para se manter longe dos holofotes da mídia.

Quando se reunia com uns poucos amigos para participar de cantorias, Emerson Maia se soltava, mostrando sua verdadeira personalidade de moleque brincalhão e bem-humorado. “Quando estava com seus parceiros, ele era um poço de ternura”, recorda, divertido, o compositor Carlos Paulain. “Mas diante de estranhos se transformava no ministro da Ignorância, ficava irascível. Era um coice a cada três minutos.”

Sua trajetória como compositor do Garantido foi fabulosa e seu humor ácido era despejado em toadas de desafio que espezinhavam o Caprichoso. Uma delas: “Ano passado eu fiquei com pena do contrário / no dia da morte não tinha comida e eles brigaram / eu mandei avisar que viessem buscar / que o boi Garantido tinha comida, tinha pra dar / eles não aceitaram porque tinham vergonha na cara / pelo amor de Deus!, eles comeram capivara!”.

Sua verve lírica e sua defesa intransigente dos povos da floresta, entretanto, sempre foram o ponto alto de suas composições, como podem ser conferidas nas toadas “Já Rufou Meu Tambor”, “Campeão Lunar”, “O Índio”, “Andirá”, “Caboclo Soberano”, “Fantasia de Criança”, “Mistérios da Ilha”, “Flor de Tucumã” e “Lamento da Raça”, entre as mais de 80 pérolas que fez para seu boi de coração.

Emerson Maia ficou conhecido mundialmente quando a canção “Lamento da Raça” (“O índio chorou, o branco chorou, / todo mundo está chorando / A Amazônia está queimando / Ai, ai, que dor / Ai, ai, que horror”) foi cantada por uma brigada de incêndio de Roraima, enquanto os brigadistas combatiam um dos maiores incêndios da região. A filmagem da cena inusitada foi compartilhada na internet e viralizou rapidamente, obtendo mais de 20 milhões de acessos.

Funcionário de carreira do Banco do Brasil, Emerson Maia abandonou a carreira de bancário, na virada do terceiro milênio para cuidar dos negócios do sogro, o empresário Osmar Faria, e começou gradualmente a se afastar do Garantido. Primeiro, ele montou uma fábrica de gelo. Depois, fechou a fábrica e, no local, criou o Aldeia Iate Clube, um imenso chapéu de palha que funcionava como bar e restaurante, e que ficou conhecido como “Maloca do Jurupari” por conta do “bom-humor” do proprietário.

Mais tarde, ele fechou o bar e restaurante e no local criou a Marina Morena, a maior da ilha, com capacidade de ancoradouro para 300 barcos. Era nesse lugar bucólico que ele recebia os poucos amigos para sessões de cantorias que entravam pela madrugada.

Em 2018, ele fez a toada intitulada “A Coisa Mais Linda do Mundo”, que obteve um sucesso avassalador nos ensaios do bumbá Garantido, mas não foi tocada em nenhuma das três noite na arena durante o festival: “A coisa mais linda do mundo / é quando no mês de junho / no meu São José / em cada rosto, um sorriso / é a festa do boi Garantido / que já vai começar / a tampa da chaleira vai voar / vai ter pé-de-moleque, vai / bolinho de crueira, vai / vai ter muita cachaça / vai ter muita mulher / vou me pegar com Santo Antônio / com certeza este ano / eu sei que vou me arrumar / no meu boi-bumbá / vai ter muita toada, vai / muito verso bonito, vai / ao som da Batucada / que me faz delirar / esse é meu boi Garantido / ele é o touro mais lindo / é o rei desse lugar”.

Revoltado com o que considerou um desrespeito dos diretores do Garantido pela sua história dentro do bumbá, Emerson Maia abandonou o touro branco no mesmo ano e foi ser compositor do Caprichoso.

Emplacou duas toadas no repertório do touro negro: “Caprichoso, um canto novo de esperança” e “Fumaça de Ervas”, esta última em parceria com o filho Emersonzinho: “Vajucá, junçá, catucá / manacá, angico, aroeira, juremá / eu sou o profeta da mata / que guarda os caminhos / que levam às plantas sagradas / dos ritos antigos do povo encantado Tupi / eu sou a tribo dizimada / que vive no reino de Tanaruê / que passou pros seus filhos / seres encantados que guardam este povo sangrado / sou catimbozeiro pajé curandeiro índio brasileiro / eu sopro a fumaça de ervas / a força da planta altera / o plano do espírito / e traz os antigos de volta ao presente / pra nos ajudar / eu sou Daniel toadeiro / sou Mestre Horácio boiadeiro / sou Boi Caprichoso e trouxe pra arena / jurema sagrada pra nos ensinar / que o amor, somente o amor / pode curar (a alma, o corpo, a mente, o espírito, o mundo) / que o amor, somente o amor pode salvar / eu sopro a fumaça de ervas / os entes da mata em assembleia / ensinam pro povo que a mãe-natureza / é sagrada, devemos preservar / eu sou Caboclo Sete Flechas / sou índio guia Pena Verde / sou boi Caprichoso e trouxe pra arena / jurema sagrada pra nos ensinar”.

O querido Emerson Maia, que estava em Manaus para tratamento de uma cirrose hepática, agravada por um princípio de tuberculose, morreu na manhã de uma sexta-feira, 14 de agosto de 2020, por complicações causadas pela Covid-19. Tenho (temos) saudade.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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