Balangandãs de Parintins

Ronaldo Barbosa, a usina de hits do bumbá Caprichoso

Postado por Simão Pessoa

FEVEREIRO de 1991. O bafafá na ilha ainda era a súbita mudança de Chico da Silva para o Garantido. Responsável pela escolha das toadas do Caprichoso, J. Carlos Portilho aparentemente não estava muito preocupado. Aquilo era só mais um acidente de percurso, calculava. Ele mesmo estava tentando inutilmente levar seu amigo Emerson Maia para o touro negro.

Foi quando, naquele mesmo mês, Portilho recebeu em sua residência a visita de Ronaldo Barbosa. Eles se conheciam desde 1979, quando Ronaldo Barbosa passou a residir em Parintins e se tornou fã de carteirinha do touro negro.

Nascido em São José do Egito (PE), no dia 3 de outubro de 1953, em uma família de versadores e violeiros, Ronaldo Barbosa tinha estudado Antropologia, em Recife (PE), Odontologia, em Campina Grande (PB), e era funcionário concursado da Fundação Nacional dos Índios (Funai) há cinco anos, quando chegou a Parintins.

Ele passava a maior parte do tempo fazendo trabalho de campo para a instituição, por onde se aposentou depois de 35 anos de labuta diária como dentista.

Extremamente culto e bem-informado, conhecedor como poucos do lendário nativo dos ribeirinhos e dos primeiros cacicados da Amazônia indígena, músico informal nas horas vagas, Ronaldo Barbosa vinha tentando colocar algumas toadas de sua autoria no repertório do Caprichoso, sem sucesso, desde 1980.

– A batida dos bois era muito tradicional, muito ortodoxa, muito presa às origens, e as minhas toadas pediam uma batida diferente, um pouco mais tribal, por conta das inúmeras culturas indígenas que eu havia conhecido. Ao mesmo tempo, o acompanhamento tradicional das toadas era basicamente percussivo, com surdos, repinique, caixinha e palminhas, enquanto eu queria introduzir cordas, teclados e metais. Daí que foi muito difícil a gente evoluir para esse formato atual – recorda o compositor.

Naquela chamada “década perdida” do compositor, por conta dos “puristas” e “tradicionalistas” de sempre, Ronaldo Barbosa, trabalhando solitariamente em sua residência, havia feito dezenas de toadas interessantíssimas e foram algumas delas que ele apresentou para J. Carlos Portilho naquele encontro acontecido em fevereiro de 1991.

Com uma capacidade extra-sensorial para descobrir novos talentos, J. Carlos Portilho percebeu logo que estava diante de uma mina de ouro, mas não fez alarde.

Procurou a Comissão de Artes do Caprichoso, na época comandada por Simão Assayag, e cantou a pedra:

– A proposta das toadas do Ronaldo é mostrar a importância dos indígenas na nossa formação cultural. A gente sai dessa camisa de força chamada “boi-morena bela-vaqueiros” e começa a singrar por mares nunca dantes navegados. As histórias, o lendário e as culturas indígenas são exuberantes e a gente pode fazer o diabo na arena, basta ter criatividade! – explicou J. Carlos Portilho.

Aquele papo reto conquistou o coração de Simão Assayag. Como o enredo daquele ano já estava decidido, as toadas de Ronaldo Barbosa ficaram transferidas para o ano seguinte.

Elas foram a Pedra de Roseta que definiram o novo formato do festival a partir de 1992.

Uma das primeiras toadas do compositor a ser utilizada como suporte musical do ritual do Caprichoso se intitulava “Réquiem”:

– Aos que foram donos das terras / Antigos donos das penas / Eterno como sempre / Será eterno o criador / êiê, êiê, êiê… / Meu povo te chama, / Machifaro te espera / Teus símbolos sagrados / Ateiam as guerras / Assim como a canoa / O teu remar / Curiatô, Iurimágua, / Paguana / Aos que foram donos das terras / Antigos donos das penas / Eterno como sempre, / Será eterno o criador / Como voa o tempo / Nas asas das eras / Tururucari, Tururucari, Tururucari / A fogueira espera a chama / O sol beijar o teu rosto, ô,ô,ô / O vento os teus cabelos / Assim como a selva / O filho que partiu / Tururucari, Tururucari, Tururucari, ê ê ê / Curiatô, Iurimágua, Paguana.

Quer dizer, de repente os cacicados dos povos originários da Amazônia na época da chegada dos portugueses ao Brasil (Aparia, Machifaro, Aisuari, Paguana, Yurimágua, etc) eram reverenciados e referendados no Festival de Parintins pela primeira vez.

Aquilo, no Bumbódromo, funcionou como tratamento de choque.

Embalado pelas toadas de Ronaldo Barbosa, o ritual do boi Caprichoso começou a ganhar contornos épicos, se transformando na grande sensação do festival.

O Garantido sentiu o baque, mesmo tendo sido o pioneiro na celebração do ritual, mas teve que tirar um dobrado para não deixar a peteca cair de vez e voltar a reequilibrar a disputa.

A década de 1990 representou um dos melhores momentos da história do boi Caprichoso. De 1990 a 1999, ganhou seis dos dez festivais disputados, tendo faturado um tricampeonato (1994-1996) na época em que a festa de Parintins ganhava o Brasil e o mundo.

O touro negro teria conquistado o seu tetracampeonato em 1997, levando em consideração apenas a soma dos pontos dados pelos jurados à apresentação na arena.

Naquele ano, o Caprichoso contava a história dos índios Karajás, que eram peixes imortais (aruanãs) e, depois que afastaram a escuridão e contemplaram o céu pela primeira vez, se transformaram em homens mortais, por obra e graça do deus supremo Kananciuê, passando a habitar as margens do rio Araguaia.

O ritual daquele ano, com outra composição de Ronaldo Barbosa, deixou os jurados emocionados: eles nunca tinham ouvido uma toada que tinha sido praticamente escrita em “língua de índio”:

– Wandiê ê ê á á / Wandiê ê ê Karajá! / Ciê… / Kã-werá! / Kananciuê (Kananciuê) / Tatauapã (Tatauapã) / Numiá (Numiá) / Arapiá (Arapiá) / Numiá… / Sob a luz do luar / Ê ê ê ê ê ê ê ê / Nas terras de Berocã / Canaã, Canaã / Às margens do rio Araguaia / Aruanã… / Inansô-werá / Ê ê ê ê ê ê ê ê / E se fez a luz / No sopro da vida à Ciê / Ciá… Karajá! / Feiticeiro do fogo / Entoa um cantar / Hei Hei / Pra afugentar / Hei Hei / Escuridão / Feiticeiro da taba / Eleva o olhar / Hei Hei / Vem clariar ó lua / Todo o meu chão… / Numiá Arapiá / Hei Hei Hei Hei Hei!

Naquele ano, o Caprichoso também apresentou a toada “Ritmo Quente”, de Alex Pontes e Mailson Mendes, do Canto da Mata, que dava uma acelerada na toada e a transformara numa música pop capaz de tocar nas rádios e conquistar novos fãs para a festa xipuara. Foi outro divisor de águas no festival.

A derrota do Caprichoso adveio de uma penalidade de 10 pontos imposta pelos jurados ao apresentador Gil Gonçalves por ter elogiado, na arena, o governador Amazonino Mendes.

O touro negro deu a volta por cima sagrando-se campeão no ano seguinte, em 1998 – uma conquista indiscutível em que um dos fatos mais marcantes foi o cantor Arlindo Júnior ter ocupado o posto de apresentador e levantador de toadas ao mesmo tempo, e ainda ter vencido nos dois itens, repetindo o feito de Paulinho Faria, do Garantido, que também venceu em ambos os itens em 1991 e 1993.

Quer dizer, se não fosse os dois minutos de leseira baré do apresentador Gil Gonçalves, em 1997, o Caprichoso teria se sagrado pentacampeão do Festival de Bumbás de Parintins em 1998.

Algumas composições de Ronaldo Barbosa tornaram-se quase uma unanimidade na ilha, sendo reverenciadas pelas duas galeras.

Aliás, tirando alguns torcedores mais radicais do Garantido, todos os amantes da cultura popular de Parintins já ouviram e ensaiaram alguns passos da canção “Pesadelo dos Navegantes”, lançada em 1996, no disco “Criação Cabocla”:

– Alçar as velas / desaportar as caravelas / esquadras do Velho Mundo / do oceano ao rio-mar / Alçar as velas / desaportar as caravelas / cruzadas do Novo Mundo / fé, império a dilatar / O vento te leva / há ventania / às noites te envolve agonia / do grande abismo que virá / das feras das águas / que seria / pesadelo de um conto navegador / Iê, Iê / Terra à vista / atracar / Ilha das Tupinambaranas / terra dos Tupinambás / aportas nos braços do Orteiro / de joelhos e bravos guerreiros / celebrai a grande missão / com salva de tiros de morteiro.

Em 2018, no 53º Festival Folclórico de Parintins, Ronaldo comemorou 100 toadas emplacadas em discos do boi azul. “Traidor” foi a centésima canção composta por Ronaldo e está presente no disco “Sabedoria Popular: Uma Revolução Ancestral”.

Ao lado dela, outras composições do artista também foram inseridas no disco, como “Terror das Noites”, “Azulou”, “Boto romanceiro” e “Sissa: Uma história de Amor”, sendo as três últimas em parceria com o compositor Simão Assayag.

Em entrevista ao jornalista Alexandre Pequeno, Ronaldo Barbosa assegurou que suas canções não são elaboradas a toque de caixa e que não segue a temática estipulada pelo bumbá.

– Cada compositor tem uma metodologia de trabalho. No meu caso é um lance de inspiração. Não vou pelo tema e sim pela inspiração. Não faço música por encomenda, minha música é fruto exclusivamente de inspiração poética – garantiu.

Na mitologia indígena, a lenda por trás da centésima toada, como o próprio nome sugere, fala sobre um episódio de traição.

– Ualri era o discípulo amado de Jurupari, que o ensinou todos os segredos das flautas. Só que Ualri ensinou esse segredo aos não-iniciados e às mulheres. Por isso, ele recebeu a condenação que a própria canção revela: Do teu pó serás, serás, répteis a rastejar – explicou o compositor

Em junho de 2017, o Boi Caprichoso iniciou suas apresentações no Bumbódromo ao som de “Saga de um Canoeiro”, canção composta por Ronaldo e presente no disco de 1994.

– Essa foi uma música que fiz para o meu pai e diz: Já vai canoeiro, o porto distante, o teu descansar… Imaginei essa canoa que nós da Amazônia vamos navegar em nossas remadas eternas. Me emocionei muito – lembra o compositor.

No ano da centésima toada, o artista também completou 32 anos de história no Caprichoso e, para ele, a maior gratificação era ainda estar em atividade na associação.

– A recompensa disso é o respeito dos colegas, do boi executar algo que você imaginou. É de uma alegria muito grande – exulta.

De acordo com Ronaldo Barbosa, sua história no Caprichoso começou no final dos anos 80.

– Nesse período, comecei a apresentar meus trabalhos ao boi, pois eu era da Fundação Nacional do Índio (Funai) e viajava por diversas aldeias da Amazônia. Paralelo a esse trabalho de dentista na Funai, naquela época, tenho um trabalho de antropologia muito forte. Aprendi, convivi e vivi por 20 anos nas mais diversas tribos. Não existe nenhuma região da Amazônia que eu não tenha conhecido.

De uma época onde as composições e produções musicais eram simples, Ronaldo se orgulha de ter ajudado a inserir efeitos mais elaborados, novas sonoridades e instrumentos diferenciados nas canções.

– No começo dos anos 90, trouxe uma batida de ritual que não existia em Parintins, fui o pioneiro. Vi como os índios faziam e trouxe para o Caprichoso – lembra.

Além disso, de acordo com Ronaldo, o bumbá azul inseriu pela primeira vez um teclado numa canção de sua autoria, “Fibras de Arumã”, de 1994.

Sobrevivente dos tempos heroicos de formatação do festival, ele ainda relembra com carinho de seus mestres compositores:

– Minha geração tinha bons compositores como Horácio e Heliomar Conceição, que já partiram para o além. Aprendi muito com esses poetas mais antigos do boi.

Com a centésima toada, Ronaldo se consagrou definitivamente como um dos compositores que mais emplacou canções na história do Caprichoso, mas garante que não está pensando em suspender as chuteiras.

– Pretendo continuar participando ativamente da cultura regional por muitos e muitos anos, e não canso de repetir que a própria Amazônia é minha grande fonte de inspiração poética – resume.

O compositor também assina outras grandes canções clássicas do touro negro, como “Vale do Javari”, “Gene”, “Amazônia Quaternária” e e “Catedral”, esta também em parceria com Simão Assayag. O caboco é danado.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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