Boca do Inferno

A Brasilianização do Mundo

Postado por Simão Pessoa

Por Alex Hochuli (*)

“A periferia é onde o futuro se revela.” (citação erroneamente atribuído a J. G. Ballard por Mark Fisher)

“Isto não poderia ter acontecido aqui.” Pandemias e outras ameaças à segurança da saúde deveriam ser problemas dentro e fora do Sul Global. Mas as deficiências que os Estados ocidentais têm enfrentado no desenvolvimento e execução de planos coerentes, coordenando agências estatais, comunicando-se com o público, ou mesmo apenas produzindo e armazenando equipamentos médicos e farmacêuticos suficientes (para nem falar da escandalosa distribuição de vacinas da UE), destacaram a falha do Estado nos próprios corações do capitalismo global. Capacidades estatais ocas, confusão política, clientelismo, pensamento conspiratório e déficits de confiança expuseram a legitimidade em ruínas que agora faz estados ricos e poderosos parecerem repúblicas de bananas.

Pesquisando os rankings de prontidão pandêmica de antes do Covid-19 chegar – como o Índice de Segurança Global ou o Índice de Preparação contra Epidemias – constata-se que os Estados Unidos e o Reino Unido eram supostamente os dois países mais bem preparados, com os países da UE também altamente bem classificados nos referidos rankings. Eram estados que sentiam que não tinham nada a aprender com a experiência anterior de países como Brasil, China, Libéria, Serra Leoa ou República Democrática do Congo.

E embora os países que administraram bem a pandemia sejam poucos e distantes, o fracasso do Estado no coração do capitalismo ocidental põe fim a quaisquer noções complacentes sobre o Fim da História e a primazia de um modelo sobre outro. Todos nós aparentemente vivemos agora em “países menos desenvolvidos”.

A realidade é que o século XX – com suas máquinas de Estado confiantes, forjadas na guerra, aplicando-se para determinar resultados sociais – acabou. Assim como suas outras características: conflito político organizado entre esquerda e direita, ou entre a social-democracia e a democracia cristã; competição entre forças universalistas e seculares que levam à modernização cultural; a integração das massas de trabalho na nação através de empregos formais, razoavelmente remunerados; e crescimento rápido e compartilhado.

Agora nos encontramos no Fim do Fim da História. Ao contrário dos anos 1990 e 2000, hoje muitos estão profundamente cientes de que as coisas não estão bem. Estamos pesados, como escreveu o falecido teórico cultural Mark Fisher, pelo “lento cancelamento do futuro”, de um futuro prometido, mas não entregue, de involução no lugar da progressão.

A involução do Ocidente encontra sua imagem espelhada no país original do futuro, a nação condenada para sempre a permanecer como país do futuro, aquele que nunca chega ao seu destino: o Brasil. A brasilianização do mundo é o nosso encontro com um futuro negado, e no qual essa frustração se tornou constitutiva da nossa realidade social. Embora o fechamento dos horizontes históricos tenha sido muitas vezes uma preocupação esquerdista, ou de fato marxista, a sensação de que as coisas não funcionam como deveriam agora é amplamente compartilhada em todo o espectro político.

Bem-vindo ao Brasil. Aqui as únicas pessoas satisfeitas com sua situação são as elites financeiras e os políticos venais. Todos reclamam, mas todos dão de ombros. Esta lenta degradação da sociedade não é tanto um trem desgovernado, mas mais uma montanha russa agitada, ocasionalmente assegurando a promessa de ascensão, mas nunca se libertando dos trilhos. Sempre voltamos para onde começamos, abalados e desorientados, assombrados pelo que poderia ter sido.

Na maioria das vezes, “Brasil” tem sido um subtexto para a desigualdade escancarada, com favelas empoleiradas em encostas com vista para arranha-céus milionários. Em seu romance de 1991, “Geração X”, Douglas Coupland se referiu à brasilianização como “o abismo crescente entre os ricos e os pobres e o desaparecimento das classes médias”. Mais tarde naquela década, a brasilianização foi empregada pelo sociólogo alemão Ulrich Beck para significar a entrada e saída do emprego formal e informal, com o trabalho se tornando flexível, casual, precário e desinstruído.

Em outros lugares, o processo de se tornar brasileiro refere-se à sua geografia urbana, com o crescimento de guetos ou favelas, a valorização imobiliária dos centros urbanos com a pobreza sendo empurrada para a periferia. Para outros, o Brasil conota um novo impasse étnico entre uma classe trabalhadora racialmente mista e uma elite branca.

Esse retrato mesclado da brasilianização é superficialmente atraente, na medida em que a crescente desigualdade e precariedade fraturam cidades da Europa e da América do Norte. Mas por que o Brasil? O Brasil é um país de renda média – desenvolvido, moderno, industrializado.

Mas o Brasil também está sobrecarregado pela pobreza em massa, pelo atraso crônico e por uma classe política que parece ter avançado muito pouco desde seus dias como elite proprietária de terras e escravagista. É uma cifra que nos remete ao passado, para um estágio anterior de desenvolvimento pelo qual o Norte Global passou – e pensou ter deixado para trás.

Norte e Sul, aqui e agora

Após o eclipse do conflito Leste-Oeste da Guerra Fria, a nova linha divisória global na era da globalização foi dita como Norte-Sul. Na nova divisão do mundo no final da história, o Sul Global foi entendido como uma zona de pobreza e conflito. Consequentemente, as potências ocidentais assumiriam duas posturas alternativas em relação a ela: uma defensiva (se protegendo contra o terrorismo, degradação ambiental, novas doenças, crime organizado e drogas) e uma paternalista (“ajudando o Sul Global a se desenvolver”).

Enquanto a primeira postura sugeria pouca esperança de que as coisas pudessem melhorar no Sul Global, a última sugeria um objetivo. O Sul gradualmente viria a se assemelhar ao Norte, com uma afluência crescente impulsionada por massas da “nova classe média” desesperadas para emular os padrões de consumo do Norte.

Aqui estava uma versão reaquecida da teoria da modernização da Guerra Fria, adaptada para a era da globalização. Para os países mais pobres, programas internacionais e de “desenvolvimento” liderados por ONGs impulsionaram esquemas de pequena escala, como cavar poços ou microfinanças creditícias, desmentindo a convicção de que esses países poderiam realmente “recuperar o atraso”.

Esses esforços pontuais de melhorias eram frequentemente patrocinados pelas mesmas instituições financeiras internacionais que tinham escorchado essas sociedades com um leonino ajuste estrutural na década de 1980.

Para as sociedades mais bem-desenvolvidas do Sul, agora chamadas de “mercados emergentes”, o desenvolvimento neoliberal aumentou as suposições tácitas da teoria da modernização ao assumir que esses países estavam apenas “atrasados”, mas que chegariam lá eventualmente – ou seja, eles se tornariam “como nós”. Bastava olhar para os shoppings surgindo em São Paulo ou Bangkok ou Cairo! Só precisávamos esperar que essa riqueza se espalhasse e logo esses países se juntariam ao clube dos ricos.

Nas páginas da Economist, por exemplo, dizia-se que países como o Brasil só precisavam de algumas reformas liberais antes que o crescimento voltasse a decolar. Afinal, México, Coreia do Sul e um punhado de países da Europa Oriental aderiram à OCDE na década de 1990, com o Chile seguindo em 2010. Era só uma questão de tempo.

O que essa história ignora é que as ferramentas de política manejadas pela teoria da modernização (como a industrialização por substituição de importações) se foram, assim como o cenário internacional e as relações tecnológicas que possibilitaram alcançar o desenvolvimento.

As tecnologias e indústrias associadas à Segunda Revolução Industrial não estavam mais na vanguarda. Uma economia baseada em tecnologias de petróleo, borracha e aço – digamos, a fabricação de automóveis – não era mais o tipo de “alto valor agregado”. As coisas importantes – as ideias realmente valiosas – estavam agora protegidas por direitos de propriedade intelectual, inacessíveis a um país como o Brasil.

O Sul e o Norte globais não são mais avatares do passado e do presente, com o primeiro se aproximando lentamente do segundo, mas agora parecem existir na mesma temporalidade.

Consequentemente, o Brasil se encontra preso – preso na flutuação perene entre a esperança e a frustração. E o destino de ser moderno, mas não moderno o suficiente, agora parece ser compartilhado por grandes partes do mundo: WhatsApp e favelas, comércio eletrônico e esgotos a céu aberto.

Na verdade, deixando de lado a exceção da notável ascensão da China, a história global dos últimos quarenta anos é de retrocesso, qualquer que seja a fanfarronice que possa haver sobre a “nova classe média” – ou, realmente, uma classe trabalhadora que entrou na sociedade de consumo precariamente, que agora consegue comprar uma geladeira e uma TV, e quem sabe até ir para a universidade pela primeira vez na história da família, mas que não alcançou uma segurança real.

Na verdade, esta história de regressão é agora talvez mais conspícua no Norte Global, que hoje está demonstrando muitas das características que têm atormentado o Sul Global: não apenas desigualdade e informalização do trabalho, mas elites cada vez mais venais, volatilidade política e descolamento social. O mundo rico também não está se tornando “moderno, mas não moderno o suficiente”, mas ao contrário?

Modernidade sem Desenvolvimento

A única maneira de entender o que realmente significa a brasilianização, e o que ela pode nos reservar, é entender a trajetória de desenvolvimento do Brasil e, por extensão, captar o que ela diz sobre nosso presente e futuro. Na verdade, a consciência do Brasil de sua própria promessa, e consequente frustração, levou ao desenvolvimento de uma perspectiva crítica sobre a modernização que o mundo faria bem em estudar.

A perspectiva deslocada do Brasil – a de uma sociedade moderna, mas subdesenvolvida – foi talvez melhor capturada pelo crítico literário Roberto Schwarz, um dos notáveis pensadores que compuseram o Seminário Marx no final dos anos 1950 na Universidade de São Paulo. Participaram do seminário o economista Paul Singer, o filósofo José Arthur Giannotti, os sociólogos Michael Löwy e (futuro presidente do Brasil) Fernando Henrique Cardoso, entre outros. Eles se basearam na obra de estudiosos como o economista Celso Furtado, o sociólogo Florestan Fernandes e o crítico literário Antonio Candido, que, por sua vez, pisaram nos ombros de uma geração ativa na década de 1930 – os historiadores Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior.

Todas essas figuras (muitas das quais voltaremos a encontrar) estavam unidas pela preocupação em descrever e analisar a formação social do Brasil, a dialética do novo e a persistência do antigo, e na mediação entre a peculiaridade local e a realidade cosmopolita da integração do país no capitalismo global.

Em 1973, Schwarz escreveu o influente ensaio “Ideias Fora de Lugar”. Embora a tradução em inglês da editora tenha o título “Misplaced Ideas”, o título em português não implica ideias esquecidas, mas sim ideias inadequadas, inadequadas e incorretamente colocadas. É essa inadequação para a qual Schwarz chamou a atenção dos leitores: Na Europa do século XIX, as ideias liberais dos direitos do homem e de liberdade-igualdade-fraternidade estavam se tornando hegemônicas – uma superestrutura ideológica e legal baseada em um regime de produção centrado no trabalho livre. O Brasil era diferente, porém. Nos trópicos, o liberalismo só poderia ser um acessório barroco para uma sociedade onde ainda existia trabalho escravo.

As elites falavam em termos liberais, mas a realidade era que a escravidão só foi oficialmente abolida em 1888, enquanto outras formas de trabalho não-livre e de não-liberdade no trabalho permaneceram na prática por ainda mais tempo. Embora na Europa o liberalismo pudesse servir para ocultar a mais completa realidade dos sombrios moinhos satânicos, ele pelo menos refletia fielmente uma realidade material – aquela na qual os indivíduos eram formalmente livres. No Brasil, o liberalismo só poderia ser absurdo e, portanto, o teste de realidade ou coerência nunca foi realmente aplicado.

Precisamente a mesma incompatibilidade de idéias e realidade está sendo encontrada nos tempos modernos. Os “conservadores” encorajam as forças que destroem coisas que valem a pena conservar (digamos, a família); liberalismo significa defender o iliberalismo dos aparelhos de vigilância; o hiperindividualismo acaba reificando concepções essencialistas de raça (de modo que pertencer a um grupo é tratado como logicamente anterior à pessoa individual); a esquerda é cada vez mais o partido dos mais instruídos e abastados.

Por toda parte somos confrontados com o desânimo, uma ideia que o filósofo Adrian Johnston tirou da teoria memética para descrever a maneira como uma estratégia memética inicialmente adaptativa mais tarde se torna inútil ou mesmo contraproducente. Se o liberalismo tinha sido um conjunto de ideias apropriado para a ascensão da burguesia e depois sua consolidação – tudo em nome da liberdade –, ele está hoje em estado de desaprovação, exercida em defesa da hierarquia e da dominação.

Há décadas que os intelectuais brasileiros se enredam com o desânimo e, assim, oferecem uma perspectiva importante para compreender o nosso momento e o desalinhamento entre as ideias e a realidade contemporânea. Além disso, como observam os estudiosos Luiz Philipe de Caux e Felipe Catalani, “em situações históricas em que as ideias transplantadas são obrigadas a se reajustar a condições materiais que não as sustentam da mesma forma que suas condições de origem, esse desajustamento não precisa ser descoberto por meio da reflexão, pois é sempre já um sentimento cotidiano do homem comum ”.

O brasileiro médio sempre sentiu a hipocrisia das ideias fora do lugar. A globalização – ou americanização, via internet – significa que as ideias se desprendem de suas condições de origem e das determinadas realidades materiais de que dão testemunho. As ideias estão fora de lugar em todos os lugares, como visto na Europa quando os jovens, em meio a uma pandemia com devastação econômica iminente, foram às ruas para atacar o “privilégio branco” em países de maioria branca, imaginando-se americanos.

Quanto ao Brasil, as pessoas pensavam que o futuro prometido se materializaria quando apagasse a divisão centro-periferia dentro de seu território – curando o problema das ilhas de riqueza cercadas por oceanos de pobreza. Em vez disso, parece que o Norte Global está alcançando o Sul Global ao replicar esse padrão. O Brasil está mais uma vez na vanguarda global.

O filósofo brasileiro Paulo Arantes apresentou a tese da brasilianização em um notável ensaio de 2004, “A Fratura Brasileira do Mundo” . Arantes começou pesquisando vários pensadores do Norte Global que haviam registrado inquietação sobre o curso do desenvolvimento do capitalismo global. Já em 1995, o estrategista conservador Edward Luttwak escreveu sobre a “Terceira Mundialização da América”.

No mesmo ano, Michael Lind se referia diretamente ao Brasil em seu prognóstico de uma sociedade americana dividida por um rígido sistema de castas, embora informal. As elites brancas governavam uma sociedade racialmente mista, mas as massas, internamente divididas, permitiriam o fortalecimento da oligarquia.

Um ano depois, Christopher Lasch iria atestar o isolamento e separação da classe dominante do resto da sociedade em “A Revolta das Elites”. Enquanto isso, o ex-thatcherista John Gray escreveria sobre um emergente “regime rentista de estilo latino-americano” no qual as elites fizeram uma matança no novo mundo globalizado, enquanto a classe média perdia seu status e os trabalhadores eram novamente proletarizados, pondo fim às grandes expectativas provocadas pelo crescimento do pós-guerra.

O sociólogo catalão Manuel Castells viu que muitos seriam excluídos inteiramente, mesmo dentro desta sociedade já dividida. Estava surgindo uma nova realidade em que apenas a burguesia permaneceria como classe social, ainda que transnacional, cosmopolita.

O nascimento da Belíndia

O Brasil nasceu moderno. Ele passou a existir como uma colônia, um local para extração de recursos, já conectado a um mercado mundial emergente. O Brasil pode ter sido o último país a abolir a escravidão no Hemisfério Ocidental, mas sua escravidão foi um produto do início da modernidade. O Brasil nunca foi pré-moderno ou feudal. Na mesma medida, a brasilidade não significa um simples retorno às relações semifeudais.

O que então explica a persistência do trabalho não-livre, o sistema de latifúndio e seus efeitos culturais e políticos, até o século XX – em suma, todos os elementos “atrasados” do Brasil? Precisamente porque, no Brasil, o moderno se alimentou do antigo e por sua vez o reforçou e recriou. Nas áreas rurais, uma oferta elástica de trabalho e terra reproduziu a “acumulação primitiva” na agricultura, impedindo o aperfeiçoamento das técnicas agrícolas. Com a industrialização a partir da década de 1930, esse grupo de pobres rurais passou a servir como um exército de reserva de mão de obra urbana barata.

O que tornou o processo do Brasil distinto é que a industrialização e modernização do país durante o período populista, de meados dos anos 1930 a meados dos anos 60, não exigiram uma ruptura do sistema, como as revoluções burguesas na Europa o fizeram um século antes. Em vez disso, as classes proprietárias rurais permaneceram no poder e continuaram a ganhar com a expansão capitalista.

Como afirmou o sociólogo Francisco de Oliveira em sua “Crítica da razão dualista”, de 1972, a “expansão do capitalismo no Brasil se dá pela introdução de novas relações nas arcaicas e pela reprodução das relações arcaicas nas novas”. Isso foi reforçado politicamente pela legislação trabalhista corporativa do presidente Getúlio Vargas, modelada na de Mussolini como forma de formalizar e disciplinar o proletariado urbano. Crucialmente, isentou as relações de trabalho no campo, preservando a pobreza rural e a falta de liberdade.

Para Oliveira, o novo mundo preservava assim as relações de classe anteriores. Considere, por exemplo, que os novos pobres urbanos construiriam suas próprias casas, reduzindo assim o custo de reprodução dessa classe: os empregadores não teriam que pagar salários altos o suficiente para pagar o aluguel. As favelas, então, não são um índice de atraso, mas algo produzido pelo novo.

Ou considere como os serviços pessoais prestados na esfera doméstica reforçam esse modelo de acumulação. As famílias de classe média alta no Brasil têm empregadas domésticas ou motoristas que os atendem – uma relação econômica que só poderia ser substituída por investimentos caros em serviços públicos e infraestrutura (por exemplo, serviços de limpeza industrial ou transporte público). Como consequência, a classe média brasileira tem um padrão de vida mais alto nesse aspecto do que seus equivalentes nos Estados Unidos ou na Europa. A exploração de mão de obra barata na esfera doméstica também impede qualquer impulso político para a melhoria dos serviços públicos.

Não estamos enfrentando precisamente essa brasilianização do mundo hoje – com uma gama crescente de “serviços de concierge”, por meio dos quais a classe profissional e a elite contratam professores particulares de ioga, chefs particulares e segurança particular? Uma família de classe média alta em San Francisco vem para replicar uma mansão aristocrática com toda uma economia de serviços prestados na esfera doméstica, mas agora tudo é terceirizado: plataformas digitais intermediárias entre “contratados” privados (ex-funcionários) e a nova elite. A estrutura social do Brasil nos mostrou nosso futuro.

Refletindo sobre a formação social do Brasil mais uma vez em 2003, Oliveira classificou o Brasil como um ornitorrinco: um monstro deformado, nem mais subdesenvolvido (“acumulação primitiva” no campo tendo sido substituída por um poderoso setor do agronegócio), nem ainda tendo as condições para completar sua modernização – isto é, incorporar verdadeiramente as massas à nação.

Crucialmente, essa não foi uma conclusão precipitada. O aumento do poder dos trabalhadores antes do golpe de 1964 poderia ter levado a um novo assentamento e ao fim da alta taxa de exploração, enquanto a reforma agrária poderia ter liquidado a fonte do “exército de reserva de trabalho”, que inundou as cidades na década de 1970, além de, finalmente, destruir o poder patrimonial no campo.

Tal projeto de modernização, entretanto, teria requerido a participação da burguesia nacional em aliança com os trabalhadores. Em vez disso, a burguesia apoiou o golpe de direita. Numa grande ironia histórica, apontada por Roberto Schwarz na introdução ao ensaio do ornitorrinco de Oliveira, foi Fernando Henrique Cardoso – o presidente neoliberal dos anos 1990 – que observou, como um sociólogo de esquerda na década de 1960, que a burguesia nacional não queria desenvolvimento.

Cardoso argumentou, em oposição à opinião de esquerda prevalecente da época, que a burguesia preferia ser uma parceira júnior do capitalismo ocidental a arriscar ver sua hegemonia doméstica sobre as classes subalternas desafiadas no futuro. A elite do Brasil optou por não se desenvolver.

Segundo Oliveira, o futuro prometido, mas eternamente frustrado do Brasil é visível no fato de ser “uma das sociedades mais desiguais do mundo, apesar de ter tido uma das taxas de crescimento mais fortes em um longo período. As determinações mais evidentes dessa condição residem na combinação da baixa posição da força de trabalho e da dependência externa. ”

O Brasil, portanto, poderia ser uma espécie de utopia, dadas as suas bênçãos naturais, com crescimento rápido e cultura invejável. A realidade, nas palavras de Caux e Catalani, é que se trata de um país “cuja essência consiste em não poder realizar a sua essência”. Não é o atraso que impede o Brasil de reivindicar o seu destino; seu destino é a frustração sem fim.

Além disso, a exclusão social que parece tão essencial para a formação social do Brasil não é um acidente, mas uma dualidade produzida. No Brasil, isso ficou conhecido como Belíndia, termo cunhado em 1974 pelo economista Edmar Lisboa Bacha: O Brasil é uma Bélgica rica e urbana situada no topo de uma Índia rural pobre, tudo em um mesmo país. Os que estão na “Bélgica” brasileira habitam um país que é ostensivamente moderno e funciona bem, mas é retido por aqueles que estão “de fora”, na Índia atrasada e semifeudal.

No entanto, como Oliveira mostrou, o “interior” depende da exploração intensiva do “exterior” para o seu próprio progresso. Não só isso, mas o dualismo molda o interior da própria “Bélgica”: cria uma elite corrupta, patrimonial e egoísta, muito feliz em lavar as mãos das condições encontradas lá fora, em sua própria “Índia”.

Infelizmente, em vez de a metáfora da Belíndia se tornar menos relevante nas últimas décadas, ela só se tornou mais relevante. Considere o que cada país componente representa em nossos tempos: a Bélgica ainda pode ser rica, mas é burocratizada, fragmentada e imóvel; A Índia ainda pode ser pobre, mas agora também tem alta tecnologia e é governada por um populismo reacionário. Isso poderia ser facilmente uma imagem da Itália, dos Estados Unidos ou do Reino Unido, com suas profundas desigualdades regionais, política esclerosada e populismo espetacular.

Lidando com a Modernidade

Se voltarmos à tese da brasilianização de Arantes, descobriremos que as características culturais do desenvolvimento brasileiro também estão ecoando em nosso novo mundo pós-crescimento. Certos padrões de comportamento que surgiram quando os brasileiros lidaram com sua modernidade instantânea – relações sociais estruturadas em torno da flexibilidade, em vez de um contrato vinculativo; uma necessidade de encontrar soluções alternativas semi-lícitas, por meio de apressamento; uma burguesia não verdadeiramente burguesa – agora marque o mundo ao nosso redor.

O Brasil, a ex-colônia “nascida moderna”, não é uma sociedade que surgiu das relações feudais, nem que anunciou seu próprio nascimento através de uma ruptura revolucionária com o passado. Em vez disso, era um local de produção e distribuição, antes de mais nada.

Escrevendo no início dos anos 1940, o grande historiador brasileiro Caio Prado Jr. analisou a forma colonial do Brasil contemporâneo, observando a eficiência da ordem colonial como uma organização da produção combinada com uma esterilidade em relação às relações sociais de nível superior – toda economia, sem cultura.

O que definia uma periferia moderna moldada pelo colonialismo era, portanto, uma “falta de nexo moral”, aquele complexo de instituições humanas que mantém os indivíduos vinculados e unidos em uma sociedade e que os une em um todo coeso e compacto. Se aqui já ouvimos ecos da desagregação neoliberal contemporânea da sociedade, não é por acaso.

Historicamente, a “quase sociedade de vanguarda mercantil” brasileira foi condicionada pelo lugar dos homens livres em uma sociedade de elites latifundiárias e escravos. Assim, no Brasil dos séculos XVIII e XIX, encontramos a prática generalizada do favor, ou “mediação quase universal”, identificada por Schwarz nos romances de Machado de Assis.

Em um mundo de proprietários de escravos, os homens livres pobres dependiam dos favores da classe proprietária para sobreviver. Em vez de cidadãos dotados de direitos, os homens livres tiveram que se esforçar para obter o patrocínio da classe proprietária. Já podemos ver as sementes do clientelismo e do clientelismo brasileiro.

Embora o mundo das ideias e instituições se apegasse a concepções liberais modernas, o que se obteve na realidade não foi uma sociedade racionalmente ordenada, mas governada pelas decisões arbitrárias dos ricos – uma situação em que a elite naturalmente se beneficiou, mas também os homens livres, conformados em sua condição de beneficiários de favores, como não escravos.

Esse nexo de favor, revestido de ideologia liberal, tem todas as condições para a hipocrisia sistemática: ideias liberais pomposas que justificam o capricho e a venalidade. Ou para aplicar essa relação aos Estados Unidos brasilianizados de hoje, e colocá-lo no jargão de nossa época: “a informação quer ser gratuita”, mas não pode circular se violar os “padrões da comunidade” ou não atender aos interesses da oligarquia.

Na mesma linha, Schwarz discute outro elemento central da subjetividade brasileira, a “dialética do malandro”, conceito avançado por Antonio Candido em sua leitura de romances do século XVIII. Na leitura de Schwarz, a dialética da malandragem envolve a suspensão de conflitos históricos concretos por meio da inteligência ou know-how prático – na verdade, uma espécie de evasão. Isso estava ligado a uma “atitude bem brasileira, de ‘tolerância à corrosão’, que se origina na Colônia e perdura até o século XX, e que se torna um fio condutor da nossa cultura”.

Aqui encontramos a tão elogiada disposição brasileira em relação à acomodação, ao invés do conflito do tudo ou nada. Essa atitude pode parecer inferior aos valores mais puritanos da sociedade capitalista do Atlântico Norte, de contundentes “sim” e “não”, de condenação decisiva (Schwarz faz referência aos julgamentos das bruxas de Salem e ao mundo de The Scarlet Letter). Mas, para Schwarz, pode ser justamente essa atitude que poderia facilitar a inserção do Brasil em um mundo mais “aberto”. O que emerge é a imagem de um “mundo sem culpa”.

Esse abrandamento de conflitos é um padrão em toda a história brasileira, em que é raro que as questões sejam resolvidas definitivamente. Nenhuma grande revolução burguesa, nenhuma ruptura com o passado; o novo eventualmente vence o antigo ao custo de incorporar o antigo ao novo.

A redemocratização do Brasil na década de 1980, por exemplo, deu origem a uma nova constituição repleta de direitos sociais que prometia às classes excluídas um maior grau de integração do que documentos comparáveis em outros lugares. Ao mesmo tempo, porém, garantiu às velhas elites patrimoniais seu lugar na nova ordem e não neutralizou o latão militar. As consequências são muito evidentes hoje pela regra de indeterminação e irresolução. Ou, no idioma brasileiro, tudo acaba em pizza.

Este “mundo sem culpa” – um mundo sem dramas morais, sem convicções ou remorso – é o nosso mundo pós-moderno em grande escala. A nova elite global é inteiramente “desemburguesada”; não existem regras fixas e rígidas, tudo está em negociação. A moralidade é, no máximo, uma questão individual e subjetiva, senão um motivo de constrangimento; hoje em dia a elite prefere as declarações vazias da ética corporativa, não os pronunciamentos morais. A moralidade não é mais a pedra angular da autoridade paterna e social. A elite pós-moderna não sente responsabilidade. Não internalizou a lei e, portanto, não sente culpa.

No mundo do trabalho, adaptação e acomodação são fundamentais na nova economia. Como contratado (não funcionário), você deve buscar constantemente agradar seu cliente. Para Arantes, o “profissionalismo” exigido hoje nada mais é do que uma estilização cínica das qualidades necessárias à sobrevivência em um mundo precário.

Quanto ao malandro brasileiro, não há mandamento maior hoje do que “respeitar a correria”. O que de outra forma poderia ser visto como oportunismo generalizado – ou, no Brasil do século XIX, pobres homens livres em busca de um “favor” – é reformulado como o novo jeito de ser do mundo.

Notavelmente, o antropólogo Loïc Wacquant encontra uma atitude semelhante nos guetos da América do Norte. Lá, o traficante é um tipo genérico, “inserindo-se discretamente em situações sociais ou tecendo ao seu redor uma teia de relações enganosas, apenas para que ele possa obter algum lucro mais ou menos extorquido delas”. (O oposto do traficante é o trabalho assalariado formal, considerado “legal, reconhecido, regular e regulado”.) Essa atitude não se restringe mais ao gueto, mas passa a ser a subjetividade ideal do neoliberal “empresário de si mesmo. ”

Sempre já pós-moderno

É aqui que o passado brasileiro encontra uma contemporaneidade global. Para Ulrich Beck, a brasilidade representa um futuro condenado, não apenas de exclusão social e capitalismo selvagem, mas também o fim do monopólio do estado sobre a violência, o surgimento de poderosos atores não-estatais, gangues criminosas, milicianos, etc.

Mas Beck também encontra algo positivo nas atitudes brasileiras: flexibilidade, tolerância, adaptabilidade a novas situações, aceitação dos paradoxos da vida com tranquilidade. “Por que aceitamos a pluralização da família, mas não a pluralização do trabalho?”, Beck escreveu.

Talvez os brasileiros, muitos dos quais ainda não encontraram plenamente a “primeira modernidade” do pleno emprego, carreiras vitalícias e assim por diante (ou seja, fordismo), já tenham nascido compatíveis com a “segunda modernidade” da flexibilidade (pós-fordismo, pós-modernidade)

Se a modernidade clássica e a alta modernidade tratavam de segurança, certeza e demarcações claras entre o sim e o não, a pós-modernidade é regida pelo regime de risco, no qual o know-how e a adaptação são reis. O malandro brasileiro já era um especialista neste mundo, muito antes de sua chegada. Talvez isso explique a surpreendente popularidade no Brasil dos livros do teórico polonês Zygmunt Bauman sobre “modernidade líquida”, “amor líquido” e assim por diante – vendidos até mesmo por jornaleiros de esquina de São Paulo.

É assim que um país sem uma verdadeira base revolucionária burguesa e, portanto, historicamente sem respeito pela lei, sem cidadania e mesmo sem culpa, se depara com o nosso capitalismo pós-burguês do século XXI. Sob essa luz, mesmo os Estados Unidos ou a França, países que passaram por dramáticas revoluções burguesas, parecem afligidos por uma indecisão e uma confusão ao estilo brasileiro. Precisamos apenas pensar na resposta fútil à crise financeira global nos Estados Unidos, salvando bancos, mas deixando intocadas as condições estruturais que levaram à crise; a fortiori, podemos pensar no contínuo chute da zona do euro pela estrada, o que Wolfgang Streeck chamou de “ganhar tempo”.

O estilo brasileiro também passa a servir de legitimação útil para o novo capitalismo, no qual a hipocrisia e a corrupção fazem parte do mobiliário. Não é a alternância promíscua entre lícito e ilícito – encontrado igualmente entre os pobres brasileiros (ver “Cidade de Deus” de Paulo Lins) e entre os ricos (que têm um pé no capitalismo global “limpo” e outro no patrimonialismo local “sujo”) – não uma cifra para a legalidade cinzenta da financeirização?

Considere, por exemplo, as vastas somas provenientes do comércio de drogas que são recicladas pelos principais bancos do mundo. Os Panama Papers foram, naturalmente, recebidos com um encolher de ombros coletivo; nada mudou. Mas o que você vai fazer? Não é exatamente uma “tolerância corrosiva” bem brasileira?

Cinismo e a morte da sátira

Como é de se esperar, a tolerância à corrupção e à indeterminação gera cinismo. Na Europa clássica-moderna, a ironia serviria para demonstrar como os interesses econômicos se escondiam por trás dos ideais liberais.

No Brasil, ao contrário, onde as infrações eram a regra, a ironia não poderia recorrer às normas liberais, por causa da adoção do liberalismo de seu suposto oposto: a escravidão. Como argumentam Caux e Catalani, o que se desenvolveu no Brasil foi uma espécie de ironia negativa, mais mórbida do que satírica.

Não é esta a nossa situação hoje? A morte da sátira foi amplamente comentada. Não podemos mostrar como a realidade falha em corresponder aos ideais, porque desconfiamos dos ideais, considerando-os sempre ideológicos; isto é, ocultando interesses egoístas. Uma figura como Trump foi uma encapsulação dessa nova atitude pós-satírica: um homem no cargo mais poderoso do mundo incorporou uma representação satírica de si mesmo em sua bufonaria (nisso ele estava apenas seguindo o caminho traçado por Silvio Berlusconi ao longo de duas décadas mais cedo). Trump basicamente disse que era corrupto, mas que todos os outros também eram, e assim seria ele, sem nenhuma preocupação com as sutilezas do sistema, que drenaria o pântano.

O cinismo é generalizado, apenas interrompido – agora talvez com mais frequência – por denúncia moralista. Este último é sustentado com base em que a oposição ao cinismo pode ser inscrita na lógica das guerras culturais: as condenações cada vez mais histéricas de cada lado servem para obscurecer seu próprio cinismo.

Aqui o Brasil nos dá outro exemplo. A onda de protesto em massa de junho de 2013 foi uma revolta do jovem precariado, exigindo direitos sociais, melhores escolas e hospitais, e o fim da corrupção. Isso pode ser lido como um protesto contra a indeterminação, contra a tolerância à corrosão: “não vamos aguentar mais.”

O Brasil havia experimentado uma década de crescimento, mas a esfera pública não acompanhou as melhorias no poder de compra privado. A estratégia de Lula de “inclusão por meio do consumo”, ela própria uma resposta a um período anterior de indeterminação após o ataque neoliberal sob Fernando Henrique Cardoso, encontrou um muro, levando a uma explosão pública em massa.

Em 2015, no entanto, os protestos mudaram, tornando-se explicitamente anti-políticos e denunciando todos e quaisquer políticos, partidos e instituições. “Anticorrupção” tornou-se o foco deles, estimulado pelas espetaculares investigações da “Lava Jato”, que viram políticos e empresários serem algemados pela primeira vez na história do Brasil. Foi nessa onda que Bolsonaro acabou sendo eleito em 2018.

Mas a anti-política, ao se recusar a tomar o poder em nome de uma ideia e, em vez disso, apenas denunciar todos os candidatos, é, em essência, cinismo politizado. Acredita que o sistema não está apto para governar, mas admite que ninguém mais está. Com o tempo, descobriu-se que a própria Lava Jato era corrupta, com o conluio entre juiz e promotor permitindo que o ex-presidente Lula fosse considerado culpado com base em evidências de baixa qualidade. Agora, o velho sistema corrupto, do qual Bolsonaro faz parte, conspirou para encerrar essas investigações.

Assim, a “revolta contra o cinismo” de junho de 2013 acabou contribuindo para o desfecho mais cínico de todos. Tudo acabou em pizza. Esses são os “elementos de truncamento que alimentaram a auto-ironia brasileira, às vezes cáustica, mas sempre baseada em fatos”, como Oliveira havia colocado anteriormente.

Os próprios avanços da América na justiça (não apenas no apoio à cruzada dos juízes no Brasil, mas em usar esses métodos em casa), de “prendê-la” ao duplo impeachment de Trump, são outra faceta da brasilianização. No lugar da competição ideológica, a política é reduzida ao jogo cínico de buscar a vitória nos tribunais. O escrúpulo jurídico esconde a falta de escrúpulos. O resultado é a judicialização da política – e a politização do judiciário. A política fica cada vez mais distante do povo.

Uma elite não nacional

A brasilianização do mundo leva a uma generalização da indeterminação e da irresolução. O capitalismo neoliberal, em sua decadência, não consegue encontrar uma maneira de superar sua crise, e seus oponentes estão muito divididos, muito cínicos, muito descrentes de que as coisas podem realmente mudar. Este é o realismo capitalista de Mark Fisher: não apenas a afirmação de que “não há alternativa”, mas a incapacidade de sequer conceber uma.

Não é apenas que a realidade não corresponde e não pode corresponder aos nossos ideais; é que desacreditamos totalmente em ideais. E isso ocorre precisamente porque as ideias políticas parecem cúmplices de nossa realidade corrupta. As ideias estão fora de lugar em todos os lugares, ao mesmo tempo, agora. Assim como o Brasil, o mundo ocidental como um todo não vive apenas com a frustração de não termos o futuro que nos foi prometido; a frustração tornou-se constitutiva de nossa própria formação social.

No Brasil, a mesma classe dominante que lucrou com o colonialismo, a escravidão e o sistema latifundiário foi também a que apoiou o golpe de 1964 para evitar que os trabalhadores ganhassem mais espaço na sociedade, ato que, com isso, também paralisou no país a chance de autonomia nacional. As elites preferiam a dependência e a submissão ao capital internacional e aos Estados Unidos. Como resultado, eles também perderam o que pode ter sido a última rampa de acesso para recuperar o atraso.

Mais tarde, diante de uma tentativa tardia (embora limitada) de incorporação das massas nas décadas de 2000 e 2010 sob os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) – que poderia ter criado um mercado interno maior e mais próspero e, crucialmente para as elites, comprado a paz social – decidiram, em vez disso, expulsar o PT do cargo por meio de um golpe institucional.

Essa ruptura constitucional fez parte de uma cadeia de eventos que viu Lula, liderando as pesquisas antes das eleições de 2018, ser preso, acusado e condenado em um julgamento precipitado e preconceituoso. A mesma elite que torceu pela lei então descobriu que enfrentava uma “escolha difícil” no segundo turno de 2018 entre um candidato tecnocrático de centro-esquerda (Haddad do PT) e um ex-capitão do exército sociopata.

Dada a generosidade natural do país, sua cultura admirada e amplamente compartilhada (apesar de tudo), e algumas das taxas de crescimento mais rápidas do mundo ao longo de décadas, quando olhamos para a sociedade dualizada do Brasil hoje – este ornitorrinco monstruoso – somos levados a concluir que o Brasil tem a pior elite do mundo.

A elite brasileira, no entanto – famosa por morar em condomínios fechados com seguranças particulares – é apenas uma versão mais grotesca das elites nas “democracias ocidentais avançadas”. A recusa da responsabilidade pela sociedade encontra seu exemplo mais escandaloso no mar de Peter Thiel. Mas esse processo é muito mais amplamente distribuído e despersonalizado em todo o Ocidente.

Quando a classe dominante do Brasil opta pela diminuição da soberania para manter sua posição dominante em meio à profunda desigualdade, devemos ver sua imagem refletida na União Europeia. O bloco regional é mais bem entendido como uma “constituição econômica” concebida para evitar que a política interfira na regulação do mercado, bloqueando assim as escolhas políticas. Quando as elites nacionais optam por ingressar no bloco – apesar da espiral de morte neoliberal da UE – elas trocam a autonomia nacional e, com ela, a responsabilidade política pelos resultados sociais.

Basta olhar para o desespero das elites italianas em continuar a fazer parte do euro, apesar da penúria a que se sujeita o país e da destruição de qualquer futuro para ele. Assim como as elites brasileiras desejam poder fugir permanentemente para Miami, por muito tempo a capital da reação latino-americana, as elites globalizadas da Europa e da América do Norte desejam também escapar das massas que as “detêm”. As elites italianas desejam ser alemãs, os “remanescentes” britânicos fazem o mesmo e as elites liberais americanas desejam ser “europeias” – ou pelo menos que o país sobrevoador da América possa desaparecer.

Em nenhum lugar (exceto talvez na China) encontramos elites governantes perseguindo qualquer tipo de “projeto nacional” – algo que, portanto, implica, e visa integrar, as massas. Na medida em que as elites neoliberais têm algum projeto, além da gestão de crises de curto prazo e do governo pela mídia, ele é sempre antinacional. O presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, que vendeu as joias da família estatais a investidores a preços reduzidos na década de 1990, estava certo o tempo todo: não se pode confiar na burguesia nacional.

Da desindustrialização à morte do Estado

O crescente desaparecimento de um “nexo moral” na sociedade contemporânea está intimamente ligado ao que deveríamos chamar de fim da modernização. Estamos vivendo, segundo o falecido marxista alemão Robert Kurz (amplamente citado por Schwarz e Arantes), em sociedades pós-catastróficas.

Em “O colapso da modernização”, escrito no final da Guerra Fria, Kurz critica severamente os regimes do bloco oriental. Para ele, a perpetuação da produção de mercadorias e dos salários significava que não eram sociedades comunistas, mas sim semelhantes aos regimes capitalistas de estado que eram essenciais para dar início à acumulação capitalista na transição do feudalismo para o capitalismo, bem como para impulsionar a industrialização tardia – como os projetos realizados por Bismarck no século XIX, ou sob a Restauração Meiji no Japão, ou mesmo pela Coréia no século XX.

Em meados do século XX, entretanto, o aparato estatal do socialismo realmente existente havia cumprido seu propósito de coletivizar a agricultura, criar um proletariado urbano, impulsionar a industrialização e coisas do gênero. E assim ficou atrás das sociedades capitalistas ocidentais organizadas na base mais produtiva da competição, ao invés do diktat burocrático.

A crise que atingiu o auge no final dos anos 1980 no Leste, portanto, foi apenas o segundo episódio de uma crise mais geral – aquela que atingiu primeiro o Sul, o velho Terceiro Mundo. A crise da dívida marcou o fim do processo de modernização, por meio do qual os países pobres esperavam alcançar os desenvolvidos.

No final da década de 1960, a experiência do Brasil com o fordismo já estava minguando, e com ela a possibilidade de integração das massas por meio do trabalho. A desindustrialização “prematura” marcou o Brasil nas décadas subsequentes, com a participação da indústria no PIB caindo pela metade desde seu pico de 1985, e a participação do emprego caindo de mais de 15% para cerca de 10% hoje.

O Brasil é agora principalmente uma economia de serviços, com os pobres nas periferias urbanas oferecendo pouca esperança de ascensão pelos meios anteriormente disponíveis para as classes trabalhadoras da Europa Ocidental e da América do Norte: emprego estável e com ele a vantagem que pode oferecer contra os empregadores.

Este não é, entretanto, um processo automático; requer ação política. As regulamentações trabalhistas corporativas do Brasil sobreviveram ao neoliberalismo, até que o PT foi derrubado por um golpe institucional em 2016. O governo provisório resultante, cujos índices de aprovação atingiram o fundo do poço de 1 por cento, rapidamente os desfez, permitindo terceirização infinita, mesmo do núcleo de uma empresa atividades, estendendo assim significativamente a precarização do trabalho já em andamento.

Não precisamos ir muito longe para ver movimentos semelhantes acontecendo em outros lugares. A recente aprovação da Proposta 22 da Califórnia (a iniciativa eleitoral mais cara da história) permite que empresas como a nunca-lucrativa Uber continuem classificando seus funcionários como contratados privados, desobrigando-os de fornecer quaisquer benefícios trabalhistas. A empresa, como muitas outras de seu tipo, é um “bezzle” – o nome de John Kenneth Galbraith para furto legalizado. Novamente, o ilícito e o lícito são as duas faces da mesma moeda; é nesses espaços cinzentos que o traficante floresce.

O ataque aos direitos trabalhistas caminha lado a lado com uma crise de valorização. Enquanto o capitalismo contemporâneo luta para lucrar com a atividade produtiva, ele se volta para a financeirização. Cada vez menos trabalhadores no Ocidente estão envolvidos em atividades econômicas produtivas de novo valor. Essa crise da sociedade do trabalho, ou modernização pelo trabalho formalizado, começou no Terceiro Mundo, depois atingiu o Segundo Mundo e agora está conosco no Primeiro Mundo. E com ele murcha o sonho de riqueza em massa, autonomia nacional e uma sociedade integrada.

Se o Brasil colonial, sociedade baseada na extração econômica nua e crua, estava na vanguarda do capitalismo, o Brasil contemporâneo está agora na vanguarda da crise da modernidade. A brasilianização não é o retrocesso. Nem é a importação de algo estrangeiro. Em vez disso, o Brasil apenas expressou anteriormente as formas e tendências de desenvolvimento social imanentes ao mundo social dos países ricos.

O futuro verdadeiramente sombrio que o Brasil tem reservado para nós é o colapso da autoridade do Estado. Embora as gangues do narcotráfico que controlam o território nas favelas e periferias sejam bem conhecidas, menos é o crescimento das milícias, paramilitares formados por policiais fora de serviço que dirigem extorsões e esquadrões da morte.

A ascensão de atores não estatais tem sido uma preocupação desde a era da alta globalização e da Guerra ao Terror. Mas a diminuição da soberania não é apenas um problema “lá”, nos estados falidos do Sul Global. Menos violentas e mais legalizadas, as negociações entre as prefeituras dos Estados Unidos e as grandes empresas de tecnologia, como se estas fossem entidades soberanas, contam uma história semelhante.

A brasilianização do mundo

A modernização em toda parte significou a destruição de velhos vestígios feudais no campo, a urbanização e a incorporação das massas por meio do trabalho formalizado em uma sociedade em industrialização. Esse processo generalizaria riqueza e cidadania – ou, pelo menos, formaria um proletariado urbano que lutaria por esses direitos, ganhando concessões e, assim, disciplinando as elites. Exterminaria relações patrimoniais e clientelistas. A política se tornaria mais regularizada, ordenada segundo linhas ideológicas, com efeitos salutares sobre o Estado e sua burocracia – pelo menos nos países mais avançados.

A destruição da modernização por meio de seu processo principal – o desmembramento do emprego formal e o aumento da precaritização – é a raiz de todo o fenômeno da “brasilianização”: crescente desigualdade, oligarquia, privatização da riqueza e do espaço social e declínio classe média. A sua dimensão espacial urbana é a sua manifestação mais visível, com o desenvolvimento dos centros urbanos gentrificados e os excluídos empurrados para a periferia.

Em termos políticos, brasilianização significa patrimonialismo, clientelismo e corrupção. Em vez de ver isso como aberrações, devemos entendê-los como o estado normal da política, quando o progresso econômico amplamente compartilhado não está disponível e a esquerda socialista não pode agir como uma força compensadora. Foi o proletariado industrial e a política socialista que mantiveram o liberalismo honesto e impediram as elites de instrumentalizar o Estado para seus próprios interesses.

A “revolta das elites” – sua fuga da sociedade, fisicamente para espaços privados fortemente protegidos, economicamente para o reino das finanças globais, politicamente para arranjos antidemocráticos que terceirizam a responsabilidade e inibem a responsabilização – criou Estados neoliberais vazios. São políticas fechadas às pressões populares, mas abertas àqueles com recursos e redes para influenciar diretamente a política.

A consequência prática não é apenas a corrupção, mas também os estados sem capacidade para empreender quaisquer políticas de desenvolvimento de longo alcance – mesmo as básicas que possam promover o crescimento econômico, como a redução das desigualdades regionais. A falha do Estado na pandemia é apenas o exemplo recente mais flagrante.

A história ignóbil de irresolução e indeterminação do Brasil, juntamente com uma sociedade dualizada em que o tráfico é essencial para a sobrevivência, deu origem ao cinismo brasileiro. Cada vez mais, o Ocidente está adotando esse mesmo padrão. Não apenas parece não haver como superar a estagnação capitalista, mas a política é caracterizada por um vazio entre as pessoas e a política, os cidadãos e o estado.

A relação da classe dominante com as massas é de condescendência. As elites chamam qualquer pessoa que se revolta contra a ordem contemporânea de racista, sexista ou algum outro termo deslegitimador. Eles também apresentam teorias de conspiração bizarras sobre por que os eleitorados não votaram em seu candidato favorito – mais visivelmente com “Russiagate” nos Estados Unidos e além.

Este fenômeno, apelidado de Síndrome de Quebra da Ordem Neoliberal, só gera mais cinismo no público ocidental, que é cada vez mais tomado por suas próprias teorias de conspiração. Esta é outra especialidade brasileira: em um país com níveis muito baixos de confiança institucional e abundantes exemplos de conspirações reais, as teorias da conspiração florescem.

Revoltas contra o sistema, quando não são impulsionadas por uma perturbação do estilo QA, empunham a arma da anti-política, pela qual não apenas a política formal, mas a representação e a própria autoridade política são rejeitadas. A anti-política tende a resultar em uma deslegitimação da própria democracia, levando a um governo autoritário, ou leva os tecnocratas a aprender com os populistas, retornando à cena prometendo o fim da corrupção e uma mudança real. O resultado é o mesmo tipo de política distante e fora de alcance que gerou revoltas anti-políticas.

A história do Brasil de 2013 a 2019 é essa dinâmica apresentada de forma pura e cristalizada. Mas o mesmo padrão é visível no Movimento Cinco Estrelas da Itália, os protestos anticorrupção que levaram à ascensão de Viktor Orbán na Hungria, Trump e a tentativa tecnopulista de Boris Johnson de neutralizar o Brexit.

Sociedade do vazio

Qual pode ser a resposta à brasilianização? Talvez estejamos vendo um movimento em direção a um Estado mais protetor, mais ciumento na guarda da soberania e ávido por oferecer aos cidadãos uma relação mais paternal. Claramente, a pandemia parece estar empurrando as coisas nesta direção, com apoio do estado e transferências diretas de dinheiro aos cidadãos marcando os primeiros meses do presidente Biden no cargo.

Mas o estado está se transformando de outras maneiras também. As condições restritas para a lucratividade parecem estar levando a uma interligação cada vez maior do poder político e econômico, promovendo um processo que tem sido chamado de “acumulação por expropriação”. Até Robert Brenner, decano do estudo da transição do feudalismo para o capitalismo, deu a entender que podemos estar passando por uma transição do capitalismo para algo totalmente diferente.

O auge da globalização, tanto nas relações econômicas quanto na ideologia, já passou. Mas a dualização da sociedade e a “flexibilização” do trabalho continuam em ritmo acelerado. Sem dúvida, “elites revoltadas” podem concluir que as coisas só vão piorar a partir daqui e procurar se proteger ainda mais das consequências sociais.

Não apenas isso, mas a crescente dualização das sociedades em todo o Ocidente cria uma sociedade do vazio: o vazio entre os vencedores da nova economia e o resto, e o vazio entre o estado e os cidadãos. Medos de populismo, reclamações sobre incompetência burocrática, falta de liderança e volatilidade política geral e incoerência – coisas que preocupam as elites econômicas – são sintomas desse vazio. Eles fariam bem em se lembrar disso.

É aqui que surge o debate sobre o neofeudalismo, com suas quatro características entrelaçadas, que se assemelham à brasilianização: soberania parcelada, novos senhores e camponeses, interiorização e catastrofismo. Mas o argumento apresentado aqui é que o que estamos vendo não é precisamente um retorno do antigo. É a expressão de tendências imanentes à modernidade capitalista.

Ver a globalização de condições sociais degradadas e a dependência capitalista do Estado – características que há muito são uma realidade na periferia global – como um retorno ao “feudalismo” não é apenas equivocado, mas também eurocêntrico.

No entanto, se de fato estamos vivendo o fim da sociedade do trabalho e sua modernização, com as consequências inevitáveis para a integração social e política, então o capitalismo dependerá mais do que nunca do Estado – não apenas para regulamentação e provisão de infraestrutura física e jurídica, mas para participar diretamente na extração de valor ou na garantia de lucros, seja através da transferência de riqueza para cima ou da criação de escassez artificial.

Este é um arranjo estável? A turbulência incessante do Brasil desde 2013 começou com os brasileiros ficando cansados da mera “inclusão por meio do consumo”. É claro que nossa tendência contemporânea não pode continuar indefinidamente. As transferências de dinheiro podem comprar o tempo das elites, assim como o consumo alimentado pela dívida privada fez nas últimas décadas, enquanto os salários estagnavam.

Mas o mundo pós-pandêmico não vai se acalmar. As falhas do Estado brasilianizado nos países mais ricos e poderosos do mundo são expostas para que todos possam ver. No final do fim da história, protestos, revoltas e levantes se tornaram um fenômeno global, talvez pressagiando uma insurreição mais geral. A denúncia das elites não será suficiente; será necessário assumir o controle coletivo de nosso destino, assumir a responsabilidade por nosso futuro, para que outra onda de agitação popular não acabe em pizza.

(*) Alex Hochuli é cientista social, escritor e consultor de pesquisa, residindo atualmente em São Paulo. Ele é co-apresentador do Aufhebunga Bunga, um podcast de política global, e co-autor de “Política no Fim do Fim da História”. Este artigo foi publicado originalmente em American Affairs Volume V, Número 2 (verão de 2021): 93-115. Traduzido com a ajuda do Google. Para ler o original clique https://americanaffairsjournal.org/2021/05/the-brazilianization-of-the-world/

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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