Por Antônio Risério
Começo com três afirmações claras e diretas que não deixem a menor dúvida sobre o que penso a respeito do identitarismo, essa onda de absolutização de identidades grupais e de sacralização desses mesmos grupos, todos supostamente “oprimidos” pela civilização ocidental e a sociedade capitalista.
A primeira: raras vezes, na história política e social recente do planeta, um movimento ocidental, partindo de causas fundamentalmente justas, terá se perdido e se pervertido tanto, pelos descaminhos da mentira, da fraude, da trapaça, da ignorância, da violência e do autoritarismo.
A segunda, que nos toca ainda mais de perto: não teremos como construir um futuro coletivo comum com base no fragmentarismo, na guetificação, no neorracismo e no neossegregacionismo que caracterizam ostensivamente a práxis multicultural-identitarista, hoje ideologia dominante tanto no “establishment” político-acadêmico, quanto no “establishment” midiático-empresarial.
Em tela, a negação da nação. Partindo de Hegel, o filósofo esloveno Slavoj Zizek vai ao ponto central. A identificação primária do sujeito é com a comunidade “orgânica” primordial em que nasceu. O sujeito supera este vínculo primário quando se identifica com uma comunidade maior, secundária, “artificial”, “universal”, que é a nação. A nação nasce, portanto, de uma nacionalização do étnico.
E o que o multicultural-identitarismo propõe é o percurso inverso: a etnização do nacional. E o modelo aqui são os Estados Unidos, país que nasceu multicultural, onde o Estado-Nação é cada vez mais vivido como mero marco formal para a coexistência de uma multiplicidade de comunidades étnicas, sexuais, de estilo de vida etc. Para não falar do Canadá, que, antes de ser uma nação, é uma espécie de condomínio, onde, se Québec obtiver a independência, aquilo provavelmente se desintegra. É neste sentido norte-americano que se pretende reordenar o Brasil.
Do sociólogo marxista-uspiano Oracy Nogueira, que dizia que os negros deviam se conduzir aqui como uma nação-dentro-da-nação, ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que hoje diz que o Brasil não passa de uma ficção, um aglomerado de etnias e culturas forçadas a viver juntas, “sob o tacão do Estado”.
Neste caso, o conceito de “etnia” teria efeito retroativo, obrigando o Brasil a se rearrumar como consórcio multiétnico – ou, na gíria identitarista já em voga hoje, como um “pluripaís”, do qual o “homem branco” pode muito bem ser eliminado (ou, concedamos, reduzido à insignificância).
A terceira afirmação: há uns vinte anos, quando lancei meu primeiro livro de crítica e de alerta a propósito do identitarismo, também o historiador carioca José Roberto Pinto de Góes, num pequeno artigo de jornal, avisava: “o Brasil pode vir a se tornar um país dividido entre negros e brancos, sim, trocando a valorização da mestiçagem pelo orgulho racial. Mas isso só poderá acontecer à custa de muita desinformação sobre o nosso passado”. E sobre o nosso presente, acrescento. A menos que os mestiços brasileiros, que formam a imensa maioria da população do país, se assumam como tais. O que é cada vez mais difícil.
No começo deste século, o sociólogo identitarista Antônio Sérgio Guimarães dizia que, pelo simples fato de pretos serem socialmente estigmatizados, mestiços brasileiros jamais se diriam negros. Respondi na época que diriam, sim: desde que houvesse vantagens objetivas – emprego e renda, principalmente –, a “lei de Gerson” iria se impor.
E é o que vemos hoje: com patrocínios do poder econômico privado e benesses do poder público, tudo quanto é mestiço corre para se declarar “negro”, passando a viver assim com uma identidade de empréstimo.
Discurso induzido e reforçado pela mídia, quando vemos, em novelas da Globo, mestiços quase brancos fazerem discursos inflamados como “negros”. É a cooptação generalizada. Ser mestiço, hoje, não dá camisa a ninguém. O negócio é ser negão, mesmo que a pessoa não tenha uma só gota de sangue negro em suas veias.
Por vários motivos, penso que as coisas vão continuar seguindo esse rumo pelo menos por um bom tempo. Não só porque o identitarismo acha que tem a verdade absoluta, que todos devem se ajoelhar diante de seus dogmas, que é portador do destino histórico da humanidade, como faz uma combinação terrível de ignorância e sectarismo.
É um movimento semiletrado, ou produto da “ignorância credenciada”, que é a ignorância que ostenta crachás de pós-graduação, e se mostra absolutamente impermeável ao diálogo, ao debate público. Sim: a postura identitarista, diante de qualquer crítica, é forçar o crítico ao silêncio. É procurar desqualificá-lo, atacá-lo como machista ou supremacista branco, acusá-lo de lutar apenas por seus próprios interesses e privilégios.
Afinal, o identitarismo tem a maquete da sociedade perfeita nas mãos e não vai perder tempo discutindo o assunto com quem pensa diferente. Quem pensa diferente, na verdade, sofre de algum insuperável déficit moral e é inimigo da felicidade humana. E o argumento é então substituído pelo insulto, o debate cede lugar a um neomacartismo, com seus cancelamentos e linchamentos virtuais, quando milícias militantes silenciam todo e qualquer dissenso, perseguindo, destruindo reputações e carreiras etc.
Ao lado disso, eles dispõem de um leque de expedientes igualmente ditatoriais, ferramentas de combate disfarçadas de conceitos, todos devidamente copiados da matriz estadunidense e aqui apresentados como coisas originais, a exemplo de “lugar de fala”, “racismo estrutural”, “outras epistemologias”, “apropriação cultural”.
Recuso tudo isso, assentando sempre minha posição em solo histórico e socioantropológico e, politicamente, no campo da esquerda democrática, hoje superminoritária, praticamente asfixiada pelo identitarismo hegemônico e acusada de “fazer o jogo da direita”, como nos velhos tempos do stalinismo.
Mas o combate é difícil porque hoje, de fato, vivemos, nesse campo, sob a ditadura do pensamento único, principalmente depois que o discurso inicialmente contestador das minorias foi abraçado pelas classes dominantes e dirigentes, entre cujas frações devemos incluir a elite midiática.
De modo que há tempos, nos Estados Unidos, e mais recentemente no Brasil, o identitarismo é o discurso do poder (como se vê hoje no novo governo lulopetista), o discurso da burguesia (do Itaú-Unibanco, do Magazine Luíza, da Natura), o discurso da grande mídia, capitaneada pela Rede Globo e pela “Folha de S. Paulo”.
Enfim, o identitarismo é o novo cânone. O filósofo Sérgio Paulo Rouanet já na década de 1990 denunciava a projeção do fascismo no identitarismo, e dizia que o discurso contestador era, já naquele final do século passado, o discurso do poder. Era, em suas palavras, “um movimento perfeitamente oficial, com credenciais de segurança em ordem, com carteira de identidade regularmente emitida pelos canais competentes”, embora ainda se considerasse “marginal”, alimentando “a ilusão esplêndida de ser um rebelde contra a ordem constituída”.
E Rouanet fazia então a comparação desmoralizante: “Criticar a estética parnasiana era uma posição polêmica em 1922, mas se escutássemos alguém vociferando hoje contra o alexandrino, não teríamos a impressão de estar diante de um rebelde, e sim diante de um retardado mental”.
No Brasil, esse discurso começou a tomar assento no aparelho estatal já no governo Sarney. Ampliou seus espaços, consideravelmente, nas gestões de Fernando Henrique Cardoso. Hoje, está na linha de frente do lulopetismo, do Itaú e da Globo. E conseguiu essa proeza porque jogou na lata de lixo o marxismo clássico e qualquer atenção sociológica para a existência de classes sociais. Com a abolição ideológica das classes sociais e, logo, do antagonismo entre burguesia e proletariado, e mesmo com a colocação em plano secundário das desigualdades sociais, tudo ficou mais fácil.
Como vimos numa novela da Globo, uma personagem nascida numa família multimilionária pode ser vista, antes de tudo, como uma pessoa oprimida, pelo fato de ser “trans”. E esta ditadura do pensamento único se desdobra ainda em ditadura linguística. O identitarismo quer forçar (por lei, inclusive) que toda a sociedade fale como ele acha que ela tem de falar. E é também ele que determina o sentido, a semântica das palavras, como o Humpty Dumpty de Lewis Carroll em Through the Looking-Glass.
Certo está o filósofo francês Adrien Louis: temos de contestar esta tentativa absurda de querer impor à sociedade uma determinada instrumentalização ideológica da língua. Ignorante e puritana, ainda por cima. Ou seja: o que está em questão, em primeira e última análise, é a liberdade do espírito. Porque o que o identitarismo pretende é sacrificar a palavra livre, “em proveito de um pensamento constantemente monitorado, vigiado”.
Como o ambiente brasileiro é predominantemente semiletrado e tardo-colonizado, copia-se aqui o que se elabora na matriz norte-americana. Assim é que, também entre nós, enquanto o identitarismo “sexual” se abre numa cornucópia de vertentes e nuances, o identitarismo racial se fecha a todas as gradações, como se fôssemos um povo marcado, desde sempre, pela pureza racial.
Enquanto o identitarismo “sexual” amplia o leque naquele seu somatório de letrinhas, lbtg-etc.-etc., o identitarismo racial, trazendo para cá a fantasia racista norte-americana, reduz o Brasil a um estatuto de nação bicolor, como se fôssemos um povo nitidamente dividido entre pretos, de um lado, e brancos, de outro. Como se não existissem amarelos entre nós. E pior: como se não existissem mestiços no país.
Sim. De uns tempos para cá, salvo as meritórias exceções de praxe, a palavra “mestiço” sumiu do mapa. Desapareceu das salas de aula e de seminários acadêmicos, dos discursos das elites midiática e empresarial, das páginas de jornais, revistas e livros de história, antropologia, sociologia, estética e política que falam do Brasil e das coisas brasileiras. O que significa, muito simplesmente, que os pretensos cronistas, repórteres, estudiosos e “intérpretes” do nosso país há tempo não olham para ele, para as pessoas que circulam em nossos espaços públicos e domésticos, nem para si mesmos.
Falam do Brasil como se estivessem falando de outro lugar, desde que, por uma imposição ideológico-empresarial norte-americana, decidiram fechar os olhos à história biológica, social e cultural de nossa gente. Porque é impossível, sob pena de falsificação grosseira, tratar da configuração histórico-social do Brasil sem tratar da mestiçagem. Da grande mestiçagem popular brasileira, ocorrendo inicialmente em nossos primeiros pousos e ranchos, trilhas, feitorias, acampamentos, comunidades pesqueiras, fazendas de gado, plantações de cana ou de fumo, aldeias, póvoas, paróquias nascidas na esteira dos engenhos, quilombos e vilas coloniais.
O Brasil é produto de um processo intenso e contínuo de contatos e trocas físicos e culturais. De escambos biológicos e simbólicos. Esta é a nossa realidade biossociocultural. Quem fechar os olhos para isso, não estará falando do Brasil. Com todas as assimetrias e crueldades que marcaram a construção histórica do país, nossas formas de viver, criar, produzir, amar, falar, cantar e pensar são indissociáveis das nossas mestiçagens.
No meu livro mais recente, que está para ser lançado ainda este mês, MESTIÇAGEM, IDENTIDADE E LIBERDADE, digo justamente isso: que, a essa altura de nossa história como povo e nação, alguém ainda se sinta na obrigação de reafirmar publicamente que o Brasil é um país mestiço, é a prova mais ostensiva e escandalosa de o quanto andamos alienados com relação a nós mesmos.
Diante de tudo isso, penso que a solicitação, que hoje se deve fazer a brasileiros e brasileiras, é a seguinte: por favor, olhem-se no espelho.
N.R.: Antônio Risério é antropólogo, ensaísta e historiador. Mestre em sociologia com especialização em antropologia pela Universidade Federal da Bahia. Essa palestra foi proferida por ele durante evento da Academia Brasileira de Letras (ABL) no dia 15/06/2023.