Por Luis Felipe Miguel (*)
Trabalho feito com “inteligência artificial”, que Noam Chomsky prefere chamar de “software de plágio”, foi indicado ao prêmio de ilustração do Jabuti – e depois retirado. O caso acendeu a discussão sobre o uso de IA na criação artística.
Creio que há quatro questões interligadas. Uma é a questão dos direitos autorais. Ferramentas de IA não criam nada, simplesmente rastreiam a internet e combinam o material lá encontrado. É a crítica de Chomsky.
Mais séria é a questão da criatividade. Como são basicamente uma linha de montagem de pastiches, as ferramentas de IA reproduzem os padrões estéticos dominantes e não acrescentam nada ao repertório.
A indústria cultural já faz isso, claro. Grande parte das ilustrações – de livros infantis, por exemplo – seguem um padrão Disney ou clipart. Um trabalho anódino, que não exige nada do público, que não provoca fricção.
Ou a música – o que são, em geral, os hits da música pop? Daí você lê que os sucessos de Anitta têm 18, 20 compositores e vê que não é para ter nenhum componente autoral mesmo. São especialistas na adequação às preferências do público. (Mas precisa de 20? Cada um acrescenta um “senta” na letra, é isso?)
Ou os filmes blockbusters. Enfim, tudo. E os autoplays da vida, as sugestões de “conteúdo semelhante” das plataformas de streaming, tudo caminha para que o público consuma sempre mais do mesmo, evitando o choque, o desconforto da descoberta.
A IA minimiza a intervenção humana nesse processo. É a automatização da pasteurização. E isso leva à terceira questão: é eliminada a necessidade de toda uma mão de obra que vive nos arredores do trabalho criativo. Ilustradores, músicos, roteiristas. Todos para a rua. Ganham os patrões, perdem os trabalhadores.
Com a geração de fakes cada vez mais potentes, podemos levar ao zênite esse processo. Podemos ter a cada ano um novo filme de Hitchcock estrelado por Grace Kelly. Uma nova canção dos Beatles. Uma nova ópera de Verdi na voz de Maria Callas. Um vernissage de Van Gogh. Ou, para ser mais exato: um novo filme de J. J. Adams estrelado por Adam Sandler. Uma nova canção de Shakira. Um novo musical de Miguel Falabella na voz do próprio. Um vernissage de Romero Britto.
E com isso perdemos a benção da mortalidade humana, fundamental para que o mundo avance e se renove – o que é a quarta questão.
Eu vi algumas das ilustrações do livro indicado e depois desclassificado pelo Jabuti. Não sei o quanto do trabalho foi feito por IA – os desenhos são assinados por um ser humano e indicada a “assistência” de uma ferramenta dessas. Achei o resultado bem desinteressante. Convencional, desinspirado.
Se esse é mesmo o futuro, fico feliz de que não estarei aqui para vê-lo. É o outro lado da benção da mortalidade humana.
(*) Luis Felipe Miguel é professor de Ciência Política na UnB