Por Roberto Muggiati
Em 1938, depois de quase dez anos lutando pelo reconhecimento como escritor, John Fante publicava seu primeiro romance, Wait Until Spring, Bandini (Espere a primavera, Bandini). Fortemente autobiográfico, segue o modelo da época para romancistas principiantes, o “retrato do artista quando jovem”. Espere a primavera introduz o alter ego de Fante, Arturo Bandini, que apareceria ainda em três outros romances. Narra sua vida asfixiante numa cidadezinha do Colorado, numa casa pequena com os pais pobres, dois irmãos e uma irmã. O jovem escapa da dura realidade almejando a glória como jogador de beisebol, com sua canhota iluminada.
Fante nasceu em 8 de abril de 1909 em Denver, Colorado, filho dos imigrantes Nicola Fante e Maria Caolungo, respectivamente dos Abruzos e da Lucânia, regiões do sul da Itália. Estudou em várias escolas católicas de Boulder, passou rapidamente pela Universidade do Colorado e em 1929 largou tudo e foi morar em Los Angeles, com o objetivo de se tornar escritor.
Foram anos difíceis — no bojo da grande Depressão econômica que atingiu milhões de americanos ao longo dos anos 1930. Mas Fante perseverou e acabou alcançando o que almejava. Tinha 20 anos quando se instalou em Los Angeles. Enfurnado num quarto de hotel barato, de repente se deu conta de que, para se tornar escritor, precisa conhecer um pouco mais da vida. Submeteu sem sucesso vários contos à revista literária The American Mercury, dirigida pelo conceituado intelectual H. L. Mencken.
Um dia, Mencken aprova condicionalmente a história “Altar Boy/Coroinha”. A extensa troca de cartas cria um vínculo entre eles e Mencken ajuda Fante a publicar seu primeiro romance, Espere a primavera, Bandini. Em 1939, Fante publica um segundo romance, Ask the dust (Pergunte ao pó), sua obra mais representativa, também protagonizada por Arturo Bandini. Em 1940, ele lança ainda uma coletânea de contos, Dago red, algo como Tinto carcamano, referência ao vinho barato que bebiam os imigrantes italianos e seus descendentes.
Vem então a Segunda Guerra Mundial e nem se pode dizer que os livros de Fante caíram no esquecimento; eles não haviam causado a menor impressão no mercado editorial americano. Um detalhe desconhecido foi revelado pela filha de Fante, Victoria Fante Cohen, em 2009: “Os editores de papai, Stackpole Sons, publicaram, em 1939, uma versão não-autoriza da de Mein Kampf e Hitler os processou. Por isso, não houve dinheiro para promover Pergunte ao pó.”
Nos anos 1940 Fante insiste na literatura, com um sonho todo seu: “A história do filipino na Califórnia ainda não foi contada. E eu vou contá-la. Meu romance será para os colhedores de frutas filipinos, o que As vinhas da ira, de John Steinbeck, foi para os americanos pobres que fugiram da seca no Meio-Oeste. The little brown brothers será uma história fanfarrona e romântica de um povo pequeno, mas orgulhoso, que é massacrado pelo mais cruel sistema de classes e de tabu racial que já existiu. Mas não vou contá-la dessa maneira. Vou fazer do pequeno filipino um herói. Eu entendo os filipinos, gosto deles. Consigo enxergá-los porque sou latino também.”
Depois de mandar ao seu editor uma amostra das primeiras cem páginas do livro, Fante passou a viver uma temporada tensa. Corria todo dia à sua caixa de correios em busca de uma resposta. Quando ela veio, com o manuscrito devolvido, foi arrasadora. O editor detestou o texto, no fundo ele não simpatizava com a ideia do livro. Stephen Cooper, autor de Full of Life: A biography of John Fante (2000), lamenta: “Fante revelou verdades sobre a sociedade americana que persistem até hoje e mostrou que o tecido desta sociedade está carregado de tensão racial.”
Abandonado o projeto filipino, Fante reúne forças para uma nova tentativa, o romance 1933 foi um ano ruim, protagonizado por um segundo alter ego, Dominic (Nick) Molise. Os originais são prontamente devolvidos pelo editor com um bilhete sarcástico: “Mr. Fante, o senhor perdeu a sua embocadura…”
Foi um golpe brutal para sua autoestima. Segundo seu filho Jim, “ele passaria o resto dos anos 1940 bebendo, jogando golfe, jogando pôquer e escrevendo roteiros, coisa que detestava.” Em carta a uma amiga, o escritor desabafa: “Esta noite estou mal, mal para morrer. Bêbado a noite inteira. Eu choro pela humanidade. Homens perambulando pela terra. Homens em suas pequenas casas com suas pequenas mulheres e seus filhos, escondendo-se do mundo. Algo se faz necessário, uma onda de excitação, alguma maneira de enganar a morte.”
Ressurreição
Em 1937, Fante casou com Joyce Smart e teria com ela três filhos e uma filha. Com uma família a zelar, Fante resolveu correr atrás do dinheiro. Entregou-se ao que chamava “o emprego mais desprezível no reino de Cristo”: escrever roteiros para o cinema. Apesar do temperamento sanguíneo, Fante soube se comportar e trabalhar com eficiência, roteirizando sete filmes de sucesso entre 1952 e 1969. Adquiriu um espaçoso rancho em Point Dume, Malibu, onde seus filhos cresceram em plena liberdade. Mas um homem que renega seus sonhos acaba pagando um preço por isso. No caso de Fante, o preço foi brutal. Já em 1955 ele exibia um quadro de diabetes que acabaria provocando a perda da visão e a amputação dos dedos dos pés; depois dos próprios pés e das pernas em 1977.
Cego e mutilado, Fante foi agraciado finalmente por uma ressurreição espetacular em 1980, quando foi relançado Pergunte ao pó, pela Black Sparrow Books, uma editora de Boston criada em 1966 basicamente para publicar os livros de Charles Bukowski e de outros autores alternativos. Para se ter uma ideia de como as obras de Fante estavam fora do mercado, o editor John Martin, para republicar o livro, teve de recorrer a um exemplar de Pergunte ao pó copiado da biblioteca de Los Angeles. O autor do milagre, na verdade, foi Bukowski, que indicou o romance de Fante e escreveu um prefácio-exaltação, resumido aqui:
“Eu era um jovem passando fome, bebendo e tentando ser escritor. Fazia a maior parte das minhas leituras na Biblioteca Pública de Los Angeles, no centro da cidade, e nada do que lia tinha a ver comigo ou com as ruas ou com as pessoas que me cercavam. Parecia que todo mundo estava fazendo jogos de palavras, que aqueles que não diziam quase nada eram considerados excelentes escritores. Você ficava a olhar para fileiras e fileiras de livros extremamente chatos. Eu tirava livro após livro das estantes. Por que ninguém dizia algo? Por que ninguém gritava? Então um dia puxei um livro e o abri e lá estava. Fiquei parado de pé por um momento, lendo. Como um homem que encontrara ouro no lixão da cidade, levei o livro para uma mesa. As linhas rolavam facilmente através da página, havia um fluxo. Cada linha tinha sua própria energia e era seguida por outra como ela. A própria substância de cada linha dava forma à página, uma sensação de algo entalhado ali. E aqui, finalmente, estava um homem que não tinha medo da emoção. O humor e a dor entrelaçados a uma soberba simplicidade. O livro era Pergunte ao pó e o autor era John Fante. Ele se tornaria uma influência no meu modo de escrever para a vida toda. Existe muito mais na história de John Fante. É uma história de uma terrível sorte e de um terrível destino e de uma rara coragem natural.”
A nova edição de Pergunte ao pó saiu em 1980 e teve uma recepção assombrosa. É um caso inédito: publicado 41 anos antes, o livro só passa a existir a partir do seu relançamento, conquista instantaneamente a geração mais jovem e se torna cult. Podemos aproximá-lo de The catcher in the rye (O apanhador no campo de centeio), de J.D. Salinger, ou de On the road (Pé na estrada), de Jack Kerouac — todos na linhagem do fabuloso As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain.
É hora de desfazer um grande equívoco da mídia literária, ou dois. Os escritores da beat generation — movimento que teve seu auge nos anos 1950 — nunca foram influenciados por Fante, pela simples razão de que os livros de Fante não estavam ao seu alcance. A primeira edição de Pergunte ao pó, publicada pela Stackpole Sons, foi de apenas 2.200 exemplares… Uma reedição em livro de bolso pela Bantam em 1954 também não teve repercussão. Hoje, exemplares da edição Bantam são oferecidos por cerca de mil dólares; e um exemplar da edição de 1939 vale cerca de dez mil dólares.
Nas dezenas de biografias de Jack Kerouac e nas 1200 páginas de sua correspondência completa (1940-1969), não há uma menção sequer a Fante. O equívoco é facilmente explicável por outra falácia, a de rotular Charles Bukowski como escritor beat. Os beats eram gregários, uma turma numerosa liderada pela Santíssima Trindade formada por Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs. Já Bukowski era um individualista ferrenho, anarquista e hedonista, o “dirty old man” alcoólatra e sexólatra, como ele mesmo se autoproclamava.
Enredo
Mas vamos a Pergunte ao pó, felizmente resgatado para as novas gerações em 1980. O romance é a chave para o entendimento do enigma Fante. Um crítico pedante o chamaria de Bildungsroman, romance de formação. Eu o vejo mais como uma love story — ou melhor, uma love-and-hate story. Arturo Bandini, aspirante a escritor, mora num hotel bolorento em Bunker Hill, uma área decadente no centro de Los Angeles, num quarto “onde o pó se acumulava sobre minha máquina de escrever e Pedro, o camundongo, se sentava no seu buraco, os olhos negros me observando através daquele tempo de sonho e divagação.”
Bandini vive de suco de laranja (“cinco centavos a dúzia”) e outras frutas que o feirante japonês lhe dá sem cobrar. Quando tem uns trocados, vai a um café, o Columbia Buffet. Lá conhece a garçonete mexicana Camilla Lopez. Fixa-se nos sapatos da moça: “Eram huaraches, as tiras de couro enroladas várias vezes ao redor dos seus tornozelos. Eram huaraches desesperadamente maltrapilhos; o couro trançado se desenredara. Quando os vi fiquei muito agradecido, pois era um defeito nela que merecia crítica.”
Aí já aparece toda a crueldade de Bandini na relação. Ele, carcamano do Colorado que se faz passar por americano, exorciza seu complexo de inferioridade na mexicana de pés sujos, que o lembra desconfortavelmente de sua própria origem. Apesar disso, apaixona-se por Camilla, um amor sem esperança, já que ela, por sua vez, é perdidamente apaixonada pelo garçom do Columbia, Sam. Sam despreza Camilla e diz a Arturo que, se quiser conquistá-la, tem de maltratá-la.
Camilla peregrina por asilos para doenças mentais. Arturo decide levá-la para fora de Los Angeles, é inverno, os alugueis na praia estão mais baixos, instala-se com Camilla numa casinha em Laguna Beach, compra até um cachorrinho para ela. Volta a Los Angeles para pegar suas coisas. Quando regressa à casinha de praia, Camilla sumiu. Sam, com uma tuberculose terminal, mudou-se para um galpão na franja do deserto. Camilla foi atrás dele, que a expulsou e ela então ruma para o deserto com o cachorrinho. Bandini vai ao galpão de Sam e fica sabendo que Camilla partiu para o deserto dois dias antes. Tenta em vão encontrá-la, desiste. E é assim que termina o livro, com estas palavras:
“Lá longe, através do Mojave, erguiam se os vapores do calor. Subi lentamente a trilha até o Ford. No assento, havia um exemplar do meu livro, meu primeiro livro. Achei um lápis, abri o livro na folha de guarda e escrevi:
A Camilla, com amor,
Arturo
Levei o livro uns cem metros para dentro do deserto, no rumo sudeste. Com toda minha força, joguei-o para longe, na direção em que ela sumira. Entrei então no carro, dei a partida e rodei de volta para Los Angeles.”
O cineasta Robert Towne, que levou o livro às telas, chama Pergunte ao pó de “o maior livro já escrito sobre Los Angeles.” No início do romance, Fante faz uma exortação à cidade: “Los Angeles, dê-me um pouco de você! Los Angeles, venha a mim do jeito que eu vim a você, meus pés sobre suas ruas, bela cidade que adorei tanto, triste flor na areia, bela cidade.”
Aparentemente realista, a narrativa de Fante envereda às vezes pela alegoria. Um exemplo é o episódio no hotel em que Hellfrick, o excêntrico vizinho de Bandini, o convida para comer “um bife grande e grosso.” Bandini estranha o convite, Hellfrick nunca tem dinheiro. Saem de carro. Num pasto em San Fernando Valley, Hellfrick rouba um bezerro da mãe e volta ao carro com o animal morto sobre as costas. Bandini descreve: “Era um bezerro, o sangue jorrando de um talho entre as orelhas. Os olhos do bezerro estavam arregalados, eu podia ver a lua refletida neles. Era assassinato a sangue frio. Estremeci pensando na velha vaca sozinha no campo ao luar mugindo por seu bezerro. Assassinato!”
No final da vida, Fante foi acometido pela diabetes e teve que amputar as pernas. Cego, ditou à mulher Joyce seu último romance, Sonhos de Bunker Hill.
Antes de partir para o desenlace da história de Camilla, Fante insere seu herói num episódio apocalíptico inspirado por um fato real, o terremoto de 1933 em Long Beach, que matou mais de uma centena de pessoas e provocou grande devastação na área metropolitana de Los Angeles.
Uma curiosidade final sobre Pergunte ao pó: o título do romance. Tudo nos induz a crer que tem a ver com a proximidade do deserto, sua poeira que cobre tudo em Los Angeles. Na verdade, o título vem de mais longe, da Noruega. Fante amava o autor de Fome, Knut Hamsum (1859- 1952) e inspirou-se na passagem do romance Pan, referente à garota na torre: “Ele a amava como um escravo, como um louco e como um mendigo. Por quê? Pergunte ao pó na estrada e às folhas que caem, pergunte ao misterioso Deus da vida, pois ninguém sabe destas coisas.”
Sua redescoberta em 1980 — e o merecido reconhecimento depois de quatro décadas de ostracismo — daria um alento final a Fante. Mesmo cego, ele ainda “escreve” um último romance, ditado à sua mulher Joyce, antes de morrer, aos 74 anos, em 8 de maio de 1983. Sonhos de Bunker Hill (1982) é uma variante das aventuras de Arturo Bandini na Los Angeles dos anos 1930. Em 2010, no dia do 101º aniversário do autor, foi inaugurada a Praça John Fante, perto da área de Bunker Hill e da biblioteca de Los Angeles, onde Bukowski descobriu Pergunte ao pó. Mais do que isso, porém, Fante continua vivo na quantidade de romances e coletâneas de contos descobertos e publicados nos 30 anos depois de sua morte. Para uma legião de escritores do mundo inteiro, ele é um exemplo de que às vezes, munido apenas da palavra, um homem é capaz de viajar a lonjuras inimagináveis.
Roberto Muggiati é jornalista e escritor. Traduziu as mais recentes reedições de John Fante no Brasil, publicadas pela José Olympio: Pergunte ao pó (2003), Espere a primavera, Bandini (2003), O caminho de Los Angeles (2005), O vinho da juventude (2010), A irmandade da uva (2013) e A grande fome (2015).