Por João Filho, do Intercept-Brasil
Os recentes ataques de Elon Musk à democracia brasileira não são fruto de uma bad trip de um bilionário viciado em ketamina e cocaína. Antes fosse. A armação liderada pelo dono do Twitter nos últimos dias faz parte de uma estratégia articulada pela extrema direita internacional para desestabilizar democracias pelo mundo e serve aos seus interesses comerciais no Brasil.
Com a ajuda do patriotismo entreguista dos bolsonaristas, Musk passou a semana insuflando narrativas conspiracionistas, ameaçando descumprir as leis brasileiras e contribuindo para o processo de destruição da reputação do STF encampado pelo bolsonarismo.
Apesar do bilionário sul-africano gostar de posar de militante pela liberdade de expressão irrestrita pelo mundo, não é assim que a coisa funciona na realidade. O que primordialmente move esse idiota são os interesses comerciais. O personagem anarcocapitalista militante só entra em campo quando favorece seus negócios. Quando não, o militante dá lugar a um empresário cumpridor das leis.
Na Turquia, ele abana o rabinho para o governo autocrático de direita e cumpre caninamente todas as decisões judiciais. Nas últimas eleições, por exemplo, o Twitter atendeu à justiça turca e censurou contas de políticos da oposição às vésperas da votação.
Na Índia, que também é governada por uma autocracia de direita, o Twitter tem removido sistematicamente postagens críticas ao governo e banindo contas de jornalistas para cumprir decisões da justiça indiana. Ou seja, o nosso guerreirinho só veste a capa e sai à luta pela liberdade de expressão da extrema direita internacional — e/ou quando isso for interessante para seus negócios.
No Brasil, é mais interessante para Musk cumprir o papel do destemido militante ultralibertário para desestabilizar o governo. O país descobriu recentemente várias reservas de lítio, que é o metal essencial para a produção de baterias, energia solar e eólica e carros elétricos. A volta dos bolsonaristas ao poder poderia garantir a Musk — que também é dono da Tesla, fabricante de carros elétricos — livre acesso às reservas de lítio.
Quando era presidente, Bolsonaro lhe ofereceu a possibilidade de explorar nossas reservas de nióbio. Mas Musk deixou claro que o seu interesse é o lítio. Na Bolívia, país que possui uma das maiores reservas de lítio do mundo, Musk também conspirou contra o governo e admitiu abertamente o seu intuito golpista no Twitter: “Vamos dar golpe em quem quisermos!”.
Com seus principais líderes encurralados pela Polícia Federal e pela justiça, os bolsonaristas têm acionado a rede internacional da extrema direita para ajudar a vender o delírio de que o Brasil vive sob uma ditadura do judiciário. O bolsonarismo segue o seu instinto golpista e busca a qualquer custo criar um ambiente político que inviabilize o trabalho STF e impeça a prisão de Bolsonaro.
A farsa armada por Elon Musk opera dentro desse contexto. Políticos bolsonaristas, que há pouco mais de um ano insuflaram uma tentativa de golpe no país, foram aos EUA tentar convencer parlamentares republicanos a aprovar sanções contra o governo brasileiro. É assim que agem os traidores da pátria que se dizem patriotas. “Brasil acima de tudo”, não é mesmo?
Nos últimos dias, Elon Musk participou ativamente na disseminação das mentiras e narrativas bolsonaristas. O tal “Twitter Files”, anunciado como uma bomba contra o “ditador” Alexandre de Moraes, na verdade se resume a meras trocas de emails entre advogados e funcionários do Twitter.
Um jornalista americano chamado Michael Shellenberger foi escalado para conferir algum verniz de credibilidade para esse falso dossiê. Trata-se de um picareta, uma espécie de Oswaldo Eustáquio gringo. É mais um parajornalista que desinforma deliberadamente visando atender os interesses de grandes lobbies, como o da indústria nuclear.
Com base nos emails fornecidos pelo Twitter, Shellenberger inventou que Alexandre de Moraes ameaçou funcionários da empresa de prisão caso não fossem entregues informações privadas de determinados usuários. Mais tarde, o próprio parajornalista confessou a mentira. Mas o estrago já estava feito e o objetivo do picareta atingido.
A falsa narrativa fez a cabeça de boa parte da população e deixou os bolsonaristas em polvorosa. Como se sabe, não importa se a armação parece amadora, nem que ela seja desmascarada mais tarde. O que importa é fazer a falsa narrativa circular massivamente para acabar se naturalizando como uma verdade.
Com o circo armado, parlamentares bolsonaristas convocaram Schellenberger para falar na Comissão de Comunicação do Senado. Lá, o parajornalista fez uma exaltação da liberdade de expressão absoluta garantida pelas leis americanas: “Em 1977, a Corte Suprema dos EUA resolveu que os nazistas poderiam fazer manifestações em bairros de judeus sobreviventes do Holocausto. É uma coisa incrível!”.
Realmente é uma coisa incrível. Os EUA é hoje um dos maiores caldeirões de tensão racial no mundo graças em grande parte à liberação dos discursos de ódio. É o país com o maior número de massacres do mundo e com a maior taxa de homicídios entre os chamados países desenvolvidos.
Grande parte desses assassinatos foram motivados por discursos de ódio contra minorias. Percebam como é “incrível” viver em um lugar em que supremacistas brancos desfrutam da liberdade de sair às ruas pregando o extermínio de pretos e judeus. Viva a liberdade de expressão absoluta!
Com boa parte da opinião pública contaminada pela farsa, o STF se viu obrigado a reagir à armação. Elon Musk foi incluído como investigado no inquérito das fake news, o que acabou por ajudar a fortalecer a narrativa de que Alexandre de Moraes é um ditador.
O episódio demonstra que a regulação das big techs se tornou mais urgente do que nunca. É impossível continuarmos sem uma lei regulatória das redes sociais. Ou o país enquadra essa turma ou passará os próximos anos vendo sua democracia como marionete nas mãos de bilionários estrangeiros donos de big techs.
Lembram do caso “Pavão Misterioso”? Estamos diante de uma armação do mesmo naipe, mas, dessa vez, além de atender aos interesses bolsonaristas, atende também aos interesses comerciais de um bilionário estrangeiro. O mesmo ecossistema em que floresceu o Pavão Misterioso, que pautou o debate público com um dossiê falso, está vivo, atuante e mais forte do que nunca.
É um momento difícil para a democracia brasileira. O STF virou alvo de uma orquestração internacional que visa destruir sua reputação. O bolsonarismo foi cuspido do executivo federal nas eleições, mas sua base parlamentar é grande e seus tentáculos sobre a democracia estão mais fortes do que nunca. Agora eles contam com a ajuda de um lunático bilionário que controla uma das redes sociais mais importantes do mundo e está sedento pelas nossas reservas de lítio.
Elon Musk, o parajornalista gringo e os políticos bolsonaristas mentem como respiram. São patéticos, mas muito eficientes em fazer propaganda da sua realidade paralela. É ridículo que tenhamos que lidar com esses patetas da extrema direita nacional e internacional, mas esse é o mundo na era da pós-verdade. A superação dessa realidade é um desafio que está posto não só para a democracia brasileira, mas para todas as democracias do mundo.