Cantadas Literárias

A carnavalização da cultura popular

Postado por Simão Pessoa

Por Luís Eustáquio Soares

No livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1965), o pensador russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) desenvolveu o conceito de carnavalização e o identificou intrinsecamente à cultura popular, pois esta, ao valorizar a dimensão corporal da vida, tende a ridicularizar, parodiar e subverter a seriedade, os rituais fechados e as transcendentais pompas legalistas dos poderes instituídos.

Embora analise a carnavalização na literatura do escritor renascentista francês François Rabelais (1494-1553), precisamente tendo em vista a obra cômica Gargantua e Pantagruel (1552), penso que os argumentos de Bakhtin podem ser ampliados de tal sorte a admitirmos que existe carnavalização para valer quando uma manifestação cultural – e política – debocha de toda e qualquer hierarquia, demonstrando, via riso, informalidade, trapaça e valorização do cotidiano, o quanto os lugares de poder, quaisquer que sejam, são ridículos e farsescos.

A carnavalização, sob esse ponto de vista, é uma questão de povo, pois é o povo que, não ocupando poder institucional algum, ridiculariza todos os poderes existentes, seja imitando-os de forma caricatural, seja ridicularizando-os, seja simplesmente, com muito artifício e avacalhação, divertindo-se, sem lei e sem moral, através da festa carnavalesca de um mundo sem poderes, com seus falsos legalismos e rituais hierárquicos de exclusão, uma vez que, para ficar no óbvio, a força da lei só vale, em qualquer época histórica, para quem não detém, de origem, o poder soberano.

Penso, entretanto, que o conceito de carnavalização de Bakhtin tal como exposto acima foi plenamente válido até o advento da civilização midiática (1945) e, portanto, não vale mais para a nossa atual época, neoliberal, pois hoje é o inverso do inverso que ocorre: as elites econômicas é que carnavalizam o povo, ora imitando ser mais povo que o povo, ora inventando, como ocorre com a cultura de massa, uma civilização, a nossa, em que todos gostamos de tudo que o povo gosta, independente de nossa classe social e desde que, obviamente, não deixemos de ser proprietários das posses que temos, pois as diferenças econômicas, é o que dizemos para nós mesmos, são necessárias, desejáveis e efetivamente desejadas.

De forma farsesca e ao mesmo tempo trágica, são, no atual presente histórico, as elites que se apropriam da chamada cultura popular e a carnavalizam, produzindo o efeito ilusório de que vivemos numa civilização de oportunidades iguais, uma vez que cultivamos os mesmos artistas midiáticos, os mesmos gêneros musicais, os mesmos filmes, os mesmos programas de auditório, assim como desejamos as mesmas reificadas mercadorias.

Sob esse ponto de vista, é possível dizer que, na atual pós-modernidade neoliberal, a própria ideia de comunismo é carnavalizada pelas elites econômicas, pois produzimos carnavalescamente uma civilização em que a hierarquia cultural foi rompida e, por isso mesmo, tal como a carnavalização de Bakhtin, vivemos com júbilo a grotesca ilusão de que somos corporalmente comuns, no que diz respeito a nossas ações e vivências culturais.

A cultura de massa, mais do que o lugar de rompimento entre o erudito e o popular, a alta e a baixa cultura, constitui, hoje, o massificado horizonte midiático a partir do qual as elites econômicas carnavalizam promiscuamente a cultura popular, destronando-a de si mesma e transformando-a em carnavalesco comunismo cultural pleno de hierarquias econômicas, produzindo a ilusão de ótica, por tabela, de que o rico é gente boa, pois é povo como a gente.

Vivemos na época do comunismo cultural do baixo-ventre, na qual todos desejamos sexualmente a todos, independente de classe social, etnia e, cada vez mais, de gênero, desde, é claro, que não nos misturemos economicamente e que nos mantenhamos em nossos hierárquicos lugares eternos: o pobre na favela e o rico em condomínios fechados, até porque o apoteótico altar da arquitetura da civilização do comunismo cultural do baixo-ventre afinal de contas é, via de regra, ocupado por famosas pessoas tão simples e informais como a gente e, ainda tal como a gente, são famosas pessoas que gostam precisamente da mesma música de Zé Camargo e Luciano que também gosto ou deveria gostar, se não quiser ser acusado de elitista e reacionário.

É nesse contexto que devemos analisar a lógica subjacente e ao mesmo tempo carnavalescamente escrachada de uma ridícula homenagem de fim de ano da TV Globo, exibida há alguns anos, com sua carnavalesca letra que assim começa: “Hoje é um novo dia…”, o dia em que Faustão se fantasia de garçom, Luciano Huck, por sua vez, de taxista; Ana Maria Braga, de empregada doméstica; William Bonner, de carteiro, a Xuxa, de babá e, por fim, a angelical Angélica de faxineira.

A homenagem global de fim de ano, dessa forma, carnavaliza e expande o comunismo cultural popular do baixo-ventre, invertendo, fantasiosamente, a hierarquia econômica: Faustão, que nem no Brasil mora, é um simples e popular garçom; Xuxa, que igualmente tem os Estados Unidos como primeira moradia hierárquica, é uma amorosa e cuidadosa babá popular de não menos fantasiadas criancinhas burguesas; William Bonner, exemplar carteiro que não deve ter participado da última greve da categoria, olha aí, não ganha como supúnhamos, a fortuna que recebe por ano, posto que vive do miserável salário que os carteiros recebem.

Viva o comunismo cultural da cultura de massa! Nele e através dele todas as ilusões são possíveis, pois o novo dia já começou: sejamos os carteiros, o William Bonner; as babás, a Xuxa; os taxistas, o Luciano Huck; as empregadas domésticas, a Ana Maria Braga; os garçons, o Faustão e as faxineiras, a angelical Angélica.

Tenhamos, como primeira moradia hierárquica, tal como eles, nossa mansão em Miami, pois tal como a sequência da letra, as alegrias serão de todos, no fantasioso comunismo cultural da cultura de massa, desde que não subvertamos a hierarquia econômica, denunciando e destronando a apoteose dos escandalosos e corruptos salários e rendas publicitárias que esse povo global recebe, como aplicados medíocres funcionários mediadores de nossa domesticação generalizada, porque, nesse caso, um Faustão ou uma Xuxa ou uma Ana Maria Braga ou um William Bonner ou um Luciano Huck ou uma Angélica imediatamente retiraria a fantasia de explorado e vestiria sem dó e piedade a fantasia militar da repressão e criminalização do subversivo e intrinsecamente (porque real) carnavalesco povo.

“Cassetete neles!”, “Salvem-nos o golpe militar idealizado pela embaixada americana do Brasil”, diriam raivosos.

Aí sim, caso insistíssemos em nossa primavera árabe – ao estilo da potência insubmissa da carnavalização da apoteose midiática, protagonizada pelo povo brasileiro –, aí sim poderíamos, através de uma subversiva festa popular, dizer: “Hoje é um novo dia, de um novo tempo, porque sem realidade de explorados, pois sem opressores, logo sem Xuxa, Faustão, Luciano Huck, Angélica, Ana Maria Braga, William Bonner e outros medíocres mediadores da exploração de classe nacional e internacional.”

Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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