Por Joaquim Ferreira dos Santos
Se ela fosse louca por mim, eu pedia licença ao Vinicius que já andou com problema parecido, comprava toda a produção de pipoca da cidade e fazia chover, sal e mel, sobre sua adorável cabeça de caracóis. Louca fosse ela, e garantisse por mim tal apoplexia sentimental, eu lhe pegava o touro à unha, tocava o terror, botava o galho dentro, purificava o Subaé, fazia do gato sapato e corria para o abraço.
Não sei se ela ainda o é, digo, louca. Sempre que pergunto, tartamudeia. Noção nenhuma, graças aos orixás judaicos que regulam sua existência feliz, do que seja um verbo horrível daqueles. E, no entanto, eu orquestraria os cânticos de todas as religiões, eu harmonizaria os rocks de todas as tribos em sua fabulosa lira abdominal.
Da primeira à última vez que a vi, andava carregada de cores everywhere. Nasceu não faz muito. Não tem idade para saber que se trata, pele e músculo, de um verso ao vivo da fase psicodélica dos Rolling Stones. Era-lhe uma definição perfeita, o arco-íris de Jagger e Richards, mas nunca o disse. Jamais charlei em sua presença qualquer item cultural, e olhe que se eu tivesse recitado o “amor/humor” do Oswald, certamente ela teria customizado a piada numa camiseta de dormir da Acorda Alice.
Discreto, sequer demonstrei a pequena lista de orgulhos sobrenaturais que herdei dos antepassados lusos, como o dom de adivinhar o número de gomos de uma tangerina fechada, a localização da Ursa Polar no céu de inverno ou a capacidade de, pelo olfato, identificar cada uma das ladeiras da Fonte da Saudade.
Diante de sua sublime presença matissada, ora louca ora subitamente mouca, calei-me sempre em pasmo respeito. Deixei trancadas as palavras profissionais no computador e em seu louvor preferi certa noite abrir os bolsos da jaqueta e deixar voar duas borboletas, meia dúzia de esperanças, dois vaga-lumes e um melro, num truque de circo que devo ter visto em algum filme do Fellini e há tempos ensaiava para quem merecesse. Fi-lo, quero repeti-lo.
Nunca verbalizei nenhum camões, mas sempre e apenas o estupor sincero diante de tamanha beleza estar ali daquele jeito que eu comecei a descrever com o verso dos Stones, carregada de cores por todos os lados e boquiabrida com o realismo mágico de pássaros e insetos voando ao léu. Por onde ela andava, mesmo no Cosme Velho onde nunca as vira, nasciam joaninhas. Errou de escritor, coitada. Garcia Márquez lhe faria crônica muito melhor.
Eu, de minha parte, me daria mais ao respeito, respeitaria o sábado, não me queixaria ao bispo, comeria mais cereais, melhoraria o backhand, controlaria o colesterol, começaria tudo outra vez se ela por mim louca se pusesse fora de casa agora – e, de uma vez por todas, me viesse. Viesse nas cores de sempre.
E eu gosto de lembrar daqueles dias em que ela radicalizava o processo cromático de ser naturalmente uma paleta de cores vivas. Nessas horas, deixando de fora só os olhos azuis, ela afundava, dentro de um gorro vermelho-e-verde do Max Cavallera, os caracóis, os caracolitos louros que eu nomeei, um por um, xarás das mais belas bromélias do Jardim Botânico. Vinte anos atrás ela teria sido atriz, trabalhado em “Hair”. Hoje não tenho a mínima de por onde desanda seu bamboleio.
Procura-se, mas não desesperadamente. Até as borboletas que tatuou na pele do úmero ririam de tamanho bolero.
Já me esteve louca, não pode negar, e foi em sua honra, rainha entronizada numa cadeira amarela do Maracanã, que Alex fez em certo domingo, na baliza logo em frente, aquele gol de calcanhar contra o Flamengo; foi em seu fervor cívico que Getúlio repetiu o tirambaço nos peitos num domingo de julho no Museu da República; foi em troca de seu pânico, de sua luxúria e excitação que os casais meteram bronca entre si numa madrugada de agosto no clube suingueiro de Copa.
Em setembro, quando ia ganhar um corte de chinchila, saúda fila e ficar para sempre sob a guarda deste cão fila, eis que essa camponesa tcheca, musa difusa do usa-e-abusa do Baixo Gávea, sumiu-se de si própria, da minha casmurrice lusa. Voltou atrás. Parou de rir. Declarou-se ledo, ivo, lindo desengano.
Em outubro, me tem sido nada além, nada além de uma ilusão. Tira o telefone do gancho e desde o dia quatro, por volta das cinco, bota para quem estiver ouvindo do outro lado uma balada triste dos Smiths falando em dúvida, adeus, quiçá, alhures e amiúde, as palavras mais feias em qualquer língua.
Urge que se instale novembro, derradeira esperança de que a cigarra, por mais feio que o verbo soe, zina – e, inseto como a joaninha sobrevoando os melhores momentos dessa trama, tudo nos abençoe.
Sei, nesse período do ano, de mulheres tomadas por súbita necessidade de também repetir a natureza, soltar a casca, saudar o verão e, não fosse tanta família, tanto compromisso, tanta tradição, cruzar o Horto Florestal pela copa das árvores.
Nunca vi, e Deus permita que eu não morra sem tal, essa que pretendo ainda louca açoitada pelo solstício de 20 de dezembro. Acho que o calor lhe anestesiará os medos, o sol do Posto 9 lhe desmilingüirá as culpas.
Enfeitiçada – e em troca renovo as promessas finais de pantanais, o sole mio, jogar nas onze, soltar os bichos, matar a pau, tocar o bonde, leite no pires, beijo de boca grossa, passar o pente-fino, honrar pai, mãe e o diabo a quatro –, enfeitiçada enfim, docemente enfeitiçada por fim, ela se me deixará para sempre raptar com todas as cores do seu sublime arco-íris.