Por José Castello
Ana Cristina Cesar foi uma personagem do século XIX que viveu no século XX. Desfilou sob o sol de Ipanema, entre peles queimadas e trajes sumários, portando sua tez de bailarina e suas luvas de pelica, e dançou pelas noites frenéticas do Rio de Janeiro com a pose estudada de quem pisava o mezanino de um café inglês. Não há nenhuma novidade nessa constatação, porque foi ela mesma a primeira a se desculpar, dizendo que, num golpe de má sorte, errara de século. Mas foi ao errar de século, e parecer etérea e irreal, tão inacreditável que um dia, para ser coerente, sentiu-se obrigada a se matar, que Ana C., em minúsculos cadernos que escondia como jóias, se pôs a escrever. Quase duas décadas após seu suicídio, quando sua poesia começa enfim a merecer edições mais competentes, ainda pensamos nela como uma moça bela e fútil, com seu ar de madame meio patética, o chapelão inútil com que tentava se proteger do presente, e a postura de musa decaída que, aos poetas afetados pela seriedade, só podia mesmo irritar.
A maldição de Ana Cristina Cesar foi a beleza. Logo que a formulei, essa idéia me pareceu preguiçosa e vulgar; ainda assim, mesmo desprezando-a, e lutando contra ela, não pude mais abandoná-la. Por várias vezes, tentei, sem sucesso, descartar a idéia da beleza, que um senso crítico danoso me dizia ser evidente demais. Não consegui. Ela voltava sempre que eu pensava em Ana C., como uma atração, mas também como um obstáculo, e essa dualidade configura o que costumamos chamar de enigma. Depois me conformei, pois a verdade, ainda que isso pareça falso, costuma se apresentar logo na superfície – como as etiquetas com que identificamos os cadernos escolares e as valises de viagem. Nenhum pensamento tem o frescor das primeiras idéias, aquelas que nos surgem imediatamente na cabeça quando pensamos em algo ou em alguém; e nem mesmo das chamadas idéias prontas, pois, se elas persistem por tanto tempo e se repetem com tanta insistência, é porque algo nelas, mesmo quando nos parecem tolas e até simplórias, se oferece à decifração.
O problema deixado por Ana Cristina Cesar talvez pudesse ser formulado deste modo: como ser bela e, ainda assim, digna de respeito intelectual? O mais correto é pensar que este é um falso problema, no entanto ele já abalou um número impensável de mulheres, algumas realmente belas e inteligentes, outras só pobres e sonhadoras. No caso de Ana C., porém, o que importa não é a formulação do problema, ou o quanto ele seja previsível e banal, mas a solução que ela lhe deu: para conservar os dois atributos, Ana passou a ver a si mesma como uma espécie de ser inexistente, só uma sombra de mulher que, por isso, não podia se ajeitar na vida real. Tornou-se meio invisível, meio inatingível, conquanto lhe destinassem sempre o papel de deusa mundana, e assim, deixando uma imagem escorregadia atrás de si, jogou-se de uma janela.
Ana C. foi poeta e crítica literária, e, como tal, queria ser reconhecida pelo que era capaz de produzir e dizer. Desejava ser ouvida e lida, e isso era quase tudo. Mas não: diante dela, mesmo os homens mais sensíveis e as mulheres mais discretas detinham-se nos traços do semblante turvo, olhos caídos e manchados de luz, a face leitosa, como se estivesse encoberta por uma fina gaze, um curativo delicado sobre o qual todo o raciocínio se transformava em uma borra. Ana foi uma mulher sofisticada, que leu Eliot, Baudelaire, Cecília e os metafísicos ingleses, e não era também mulher de desistir – o que, porém, não bastou para salvá-la. Decidiu que levaria até o fim, e que fim!, o impasse que a habitava e que, na verdade, não era um impasse, mas o efeito de uma antiga proibição. Seu dilema foi, afinal, bastante comum, e muito representativo da década em que viveu seus anos adultos, o que não lhe rouba a dramaticidade nem o interesse; não podemos fugir dos estereótipos, pois eles fazem parte do mundo, que quase sempre é mesmo enfadonho e repetitivo, e não temos qualquer controle sobre isso.
Talvez Ana C. não tenha sido mesmo uma poeta tão importante quanto alguns desejam; mas foi uma poeta bastante regular e, mais que isso, tem seu lugar assegurado entre os melhores poetas de uma época (os anos cinzentos da ditadura militar, quando a palavra era perseguida e parecia perigosa). Ela manejou a escrita dispersa e coloquial que caracterizou uma geração de jovens escritores, outros nem tão jovens, surgida nos anos 70 e se arrastou, como pôde, até o cenário vazio dos 80. Eles queriam de volta a leveza que os escritores engajados aniquilaram, queriam recuperar o cotidiano, por mais duro que ele fosse, e também retomar o direito a uma linguagem simples e até antipoética. No campo pantanoso da teoria, lutavam contra a hegemonia de João Cabral, o poeta das construções cerebrais – e em contrapartida, lépidos, se definiam como “anticabralinos”. Chamados de poetas marginais, foram quase sempre apressados e infantis, e, como bons filhos de família, não chegaram a se expor a grandes perigos; assim, se foram seduzidos pela marginalidade, foi porque muito pouco lhes restou.
Mesmo indiferente à etiqueta de poeta marginal, que ajudou a construir, Ana C. trafegou à margem de seu tempo, e isso no seu caso não foi só uma condição imposta pela época, mas também a parte mais dura de um destino pessoal. Teve uma vida de inconstância e rupturas, de luta permanente contra aquelas normas que, expedidas pela direita ou pela esquerda, queriam se impor a qualquer preço, e essa volubilidade, se a salvou, pois lhe deu um lugar ao sol, também a matou, o que nos leva a pensar que a plenitude e a morte algumas vezes coincidem. Ana C. fazia questão de se mostrar sempre deslocada de seu tempo, inadaptada às idéias correntes e às atmosferas da moda, indisposta com as seduções que a assediavam, inteiramente só. “Sou uma mulher do século XIX / disfarçada em século XX”, ela mesma escreveu, reafirmando seu isolamento e também a fantasia sob a qual teimava em se esconder.
A princípio, parecia só uma adolescente teimosa; olhando melhor, tinha o jeito de uma moça mimada e bem-educada, uma menina do Sion que, em dado momento, assim como as meninas de hoje preferem uma grife ou uma banda de rock, deu para ler Eliot e Baudelaire. Ana foi mais uma grande personagem que uma grande poeta, e provavelmente soube disso todo o tempo. E podemos supor, mas apenas supor, esse foi um dos focos da depressão que a conduziu lentamente à morte voluntária. Há algo mais grave: ter se tornado uma grande personagem provavelmente a impediu de vir a ser uma grande escritora – fato que ela também parecia conhecer. Ao se suicidar no ano de 1983, aos trinta e um anos, Ana C., pode-se cogitar, tentou matar a personagem que a impedia de ser. Só que a morte não é dada a sutilezas e a levou junto.
Não que Ana C. tenha querido atribuir algum significado estético à morte, como, dando meia-volta ao mundo, fez bem antes dela o escritor japonês Yukio Mishima, que cometeu haraquiri; muito ao contrário, sua decisão de morrer deve ser creditada a um sofrimento intenso, uma dor sem nenhuma estética que a degolava, e nesse aspecto ela se aproxima de outra poeta, a americana Sylvia Plath, que ela também gostava de ler e que, duas décadas antes, e com a mesma idade emblemática de trinta e um anos, deu fim à vida para se livrar da infelicidade. Artistas, todos sabemos, não costumam escapar dessas associações mórbidas; são, com mais frequência do que supomos, sugados por essas coincidências que atravessam as trajetórias de pessoas distantes no espaço, até no tempo, mas não no modo de desafiar o mundo.
Tampouco parece adequado fazer qualquer paralelo entre o suicídio de Ana e a morte da escritora inglesa Virginia Woolf (embora Ana adorasse a Inglaterra, onde passou seis meses numa escola de moças, em Richmond), pois quando a autora de Orlando se jogou no Ouse em 1941, a obra já lhe parecia completa, e as forças, esgotadas, enquanto para Ana C., ao contrário, a vida estava apenas começando. É verdade que Ana, com sua pose de princesa, poderia ver o suicídio como um ato aristocrático, próprio das almas especiais; mas não ficou nenhum indício de que tenha encarado as coisas desse modo. Ao que se sabia (mas isso não quer dizer muito), não houve também nenhuma paixão não correspondida, nenhum amor perdido, nenhuma desilusão radical que a estimulasse a tomar uma decisão tão extrema, logo ela não pode ser vista como uma imitadora tardia de Werther, o trágico personagem de Goethe. Havia nela, sim, uma melancolia crônica, uma dor persistente, e nesse sentido o suicídio poderia lhe sugerir uma espécie de triunfo, como foi para Gérard de Nerval e outros artistas românticos; um fecho para a obra e uma vitória sobre a melancolia, um drible, enganando a tristeza e deixando-a perigosamente para trás.
Havia, de qualquer forma, alguém a matar, e esse alguém se confundia com ela mesma: talvez não fosse Ana Cristina Cesar quem desejava morrer, fosse apenas Ana C., mas seria muito simplista separar as duas, e seria injusto julgar que Ana não percebia isso. Não era uma questão de cisão, mas de supremacia – era, quem sabe, uma questão muito comum, só que para alguns o comum é insuportável. No mais completo retrato de Ana C. já escrito, O sangue de uma poeta, publicado em 1996, o poeta Italo Moriconi, que foi também seu amigo, escreve: “Ana Cristina dizia que uma das facetas do seu desbunde fora abandonar a idéia de ser escritora, livrar-se do que ela naquele momento julgava ser sua face herdada, o estigma da princesa bem-comportada, alguém marcada para escrever.” Em outras palavras: ela pode ter desejado matar um personagem herdado do qual não podia se desvencilhar, e não propriamente morrer. Muitas pistas podem ser encontradas no livro de Italo, retrato idôneo, ainda que às vezes comprometido pelos hiatos e as ênfases que caracterizam as amizades, e até um pouco irônico sem ter consciência disso. Treze anos após a morte de Ana, alguém tentava, pela primeira vez, decifrar a carta enigmática que ela nos deixou, cujas peças aparecem expostas não só em seus versos, mas em sua biografia e, sobretudo, na relação tensa em que ambos se enlaçaram. Ana C., autora ou personagem? Não é demais repisar essa pergunta, que se ajusta à biografia da maior parte dos grandes escritores, mas que em seu caso parece ter atingido as proporções de uma danação.
Movido pelos laços de afeto, Italo terminou por sintetizar boa parte dos atributos que Ana C. desejou para si mesma. Seu livro é uma espécie de espelho que ele oferece à amiga para que ela, ainda que tarde demais, nele recolha sua imagem. Exibe uma Ana sofisticada, mas ainda assim eterna adolescente, que escreveu versos cerebrais apoiados em poetas cultos, que tomou posição nos ferozes debates literários travados entre estruturalistas e populistas, que se analisou com uma lacaniana da moda e que se escondeu sob um par de óculos escuros, coerentes com seus olhos claros, mas que nem por isso deixaram de ser uma espécie ofuscante de ausência, estratégia de se esconder para aparecer. Italo não chega a atribuir nenhum valor especial à beleza de Ana. Não se detém muito na relação entre a criadora, Ana Cristina Cesar, e a criatura, Ana C., e talvez aqui o afeto tenha ocupado o lugar da lucidez. A biografia de Ana C. ainda está por ser escrita, e o próprio Italo apresenta seu livro apenas como uma contribuição a esse projeto; no entanto, é preciso corrigir desde já alguns enganos, antes que a deusa, que foi só uma miragem, seja biografada no lugar da mulher.
Provavelmente, quem até hoje melhor descreveu o predomínio da personagem sobre a poeta foi o escritor Bernardo Carvalho, uma dezena de anos mais moço que Ana, que em Teatro, seu terceiro romance, lançado em 1998, inspirou-se não apenas nela, mas também na sucessão de imagens a ela superpostas, para criar uma personagem igualmente sufocada em máscaras – a sua Ana C. O romance de Bernardo é sarcástico e pega o mito de Ana C. para desmontá-lo. Seu livro é também um relato sobre a paranoia, os delírios persecutórios estruturados sobre uma lógica impecável que parecem domesticar o mundo, quando na verdade o asfixiam. Bernardo soube jogar com a sutileza que separa os nomes de Ana C. e Anna O. – pseudônimo de Bertha Pappenheim, a célebre paciente de Breuer que o inspirou a escrever, em parceria com Sigmund Freud, os Estudos sobre a histeria. Ana C. foi leitora de Freud, fez psicanálise, e essa associação, por certo, não lhe escapava. Tampouco deve ter desprezado esse laço, e não é absurdo pensar que, ao adotar a assinatura de Ana C., ela o tenha manipulado de modo intencional. Só que em Ana C. a beleza tomou o lugar da histeria – a beleza se tornou histérica, descontrolada, e se transformou em empecilho e fardo. Tudo se concentrou na beleza, e por isso Ana C. precisou acabar com ela.
Quem a terá de fato entendido? Recentemente, o poeta Bruno Tolentino publicou (no mensário Bravo!) um artigo que ilustra, com sobras, as desordens que Ana C., com sua mistura de sedução e desafio, até hoje é capaz de despertar. “O véu de suspiros que a deusa da Zona Sul chamou de caderno terapêutico é de outra ordem: é de uma inconsequência que se escora mal até mesmo noção carioca de inconclusão”, escreveu Bruno, sintetizando o incômodo que ainda hoje sua poesia provoca.
Não basta porém identificar o incômodo, que talvez seja a manifestação tardia de um preconceito; é preciso liga-lo ao impulso de morte em que ele se converteu. Logo após o lançamento de seu último livro, A teus pés, publicado em 1982, um ano antes de seu suicídio, Ana parecia sufocada por essa admiração que ela vivia como uma negação. É Italo quem diz: “Ana Cristina sentiu enorme náusea diante do sucesso do livro e de como todas as atenções se focalizavam sobre a sua pessoa e sobre sua beleza carismática e não sobre o conteúdo literário.” Tomando toda a frente da cena, a beleza física pouco espaço deixou para a palavra, e foi por perseverar na palavra, por colocá-la acima de tudo, que Ana C. resolveu partir. “Há uma fita / que vai sendo cortada / deixando uma sombra / no papel”, escreveu Ana C. em “O homem público número 1 (Antologia)”. Depois de sua partida, ficou a sombra, que ultrapassa o tempo e não precisa de retoques.
Não fui amigo de Ana C. – e isso pode ser, hoje, uma vantagem. Também nunca fiz cm ela uma entrevista formal, nem chegamos a trabalhar muito próximos. Eu a vi algumas vezes, de longe, quando era colaborador do semanário Opinião, de Fernando Gasparian, mas quase não nos falamos. Eu a admirava vagamente e já me dedicava a ler seus poemas, até com algum entusiasmo, mas era só. Ana C. logo se transformou, porém, numa espécie de musa dos colaboradores da seção “Tendências e cultura”, editada por Júlio Cesar Montenegro, e essa definição adquire, em seu caso, sentidos ambíguos, que indicam tanto a admiração como a detração. Como descreve Italo em seu ensaio, Montenegro e Ana competiam discretamente – ela era uma das poucas pessoas que não se permitiam rir das ironias do editor, e ele reagia provocando-a ainda mais. Já nessa época, Ana sabia jogar com o corpo e as paixões que ele despertava. Retraindo-se, provocava. Escapando, tornava-se ainda mais presente. Hoje, morta, termos a sensação de que ainda está viva circulando entre nós.
Só quando Júlio Cesar Montenegro e Genilson César decidiram criar o mensário Beijo passamos a nos falar. Nosso pequeno jornal funcionava numa sala no segundo andar de um sobrado da Praça Cruz Vermelha, no centro velho do Rio. Numa das salas vizinhas, havia um alfaiate que, se minha memória não falha, era descendente de espanhóis; ele vigiava nossas reuniões a distância, muito intrigado, sem ter coragem de ultrapassar a soleira da porta e sem entender de que afinal tanto falávamos. Devíamos ser, a seus olhos, um bando de fanáticos associados a alguma seita. Bem: a esquerda ilustrada, na verdade, não era outra coisa.
Mas, ainda ali, nas reuniões que varavam a madrugada, quase não nos falamos. Depois, logo que os encontros de trabalho foram transferidos para meu apartamento, no bairro do Horto, Ana se afastou do jornal. Eu morava com dois amigos em um apartamento térreo, com um pequeno pátio interno cheio de plantas e um estúdio nos fundos. As reuniões do Beijo enchiam nosso apartamento de poetas, pintores, críticos de arte, filósofos, militantes de esquerda, designers. Começavam em geral no meio da tarde e varavam a madrugada. Em pleno regime militar, tínhamos com a democracia uma relação paranoica. Tudo, absolutamente tudo, era votado; nenhuma decisão, nada podia ser resolvido em separado. Odiávamos o autoritarismo dos militares, mas desprezávamos com a mesma ira, ou mais ainda, porque exercido por gente “como nós”, o autoritarismo da esquerda. Éramos heróis solitários e, para não repetir o erro de nossos inimigos, tornamos a democracia uma doença. Sofríamos de democracia, e isso, ainda que nos purificasse, nos tornava bastante tolos.
Cobiçada por homens e mulheres, desejada com desespero, Ana C. evitava tomar posição nos debates e, afora intervenções rápidas mas incisivas, preferia ficar quieta. Se falava, era irônica e afirmativa, o que vinha ratificar a fama de afetada e arrogante. Conservou-se quase sempre presente e misteriosa, numa postura de dar nos nervos, e às vezes se defendia com estridência, em outras simplesmente fugia, mas depois que as reuniões do Beijo se transferiram para o Horto, ela desapareceu. “Ana diz que está com outros interesses”, explicou-me, um dia, um amigo.
Houve ainda assim uma noite, de muita chuva, em que Ana, a essa altura já afastada do Beijo, apareceu para nos visitar. Fomos para a cozinha na esperança de transformar uma sopa Maggi instantânea em algo menos deprimente. Era uma tarefa impossível, mas nós gostávamos de desafios. Enquanto eu mexia a panela, Ana ia derramando porções de parmesão, noz-moscada, rodelas de cebola, salsa verde, ervilhas, dentes de alho. “Não ficará pior do que já é” ela me disse. “Há momentos em que nada pode piorar mais.” Essa lembrança sempre me enche de dúvidas, e às vezes se parece só com um sonho, cheio de buracos e interrogações, mas foi a primeira vez em que percebi em Ana focos de desengano, que ela, indisposta com o líquido sujo que fervia à nossa frente, atribuía à alimentação industrial. A chuva aumentou e as luzes se apagaram. Continuamos, apesar disso, nosso pequeno ritual à luz de vela. Contra o fogo pálido, o rosto de Ana C., já muito branco, encheu-se de tons gelados; essa foi a primeira e talvez única vez em que tive a sensação de poder olhar através de sua máscara de mulher bela. Então seus olhos azulados passaram a revelar uma tristeza que eu nunca percebera, e havia também uma melancolia, que era mais uma perplexidade sem objeto, sentimento vago que lhe retorcia o perfil e a deixava um pouco mais velha. Lembro-me de que aquilo me assustou, mas eu não demonstrei. Ana C. gostava de se esquivar, esse era o seu grande jogo, e eu não queria contrariá-la.
Continuei a mexer a sopa Maggi (lembro-me agora de que em Luvas de pelica ela fala em “sopas Knorr”, e não Maggi, mera competição de marcas”, com a lentidão circular aconselhada pelas instruções do envelope, o cheiro nauseante das ervilhas espalhando-se pela cozinha, as espumas da borda derramando-se sobre a chapa do fogão. Pude sentir então, mesclada ao vapor barato da sopa, a tristeza de Ana. Ela possuía essa beleza contínua e difusa que dá o tom das pessoas para quem a infelicidade se tornou um vício e só pode ser captada em momentos de iluminação. No caso, iluminar-se era ignorar sua beleza e caminhar além dela, ali onde a verdadeira Ana C. deveria estar ou, pelo menos, naquele ponto mais remoto em que seria possível sustentar essa ilusão. “Você está bem?, lembro-me de que ainda perguntei. Ela não demonstrou nenhum susto. Olhou-me em silêncio e depois, apática, voltou a derramar os olhos na sopa, entre cebolas e rodelas de palmito, sem nada dizer, concentrada apenas naquela colher que girava. “Ela deve estar doente”, lembro-me de ter pensado, para logo esquecer aquela idéia estúpida. “Mas como pode estar tão apática?”
“Nunca estou bem”, Ana C. respondeu algum tempo depois, com um sorriso que mais se parecia com um grito mudo. Disse aquilo mirando-se no fundo da panela, os vapores subindo por seus cabelos dourados, dissolvendo seus olhos azuis. “Algo em especial?”, insisti, com medo de ser hostil e temendo que ela pudesse imaginar que aquilo era apenas o estribilho de uma sedução tola. “Nada em especial, simplesmente tudo”, ela respondeu, numa frase que não posso esquecer, sobretudo porque Ana a emitiu em um tom melodioso, quase chorado. E ficou me olhando, disso me lembro bem, ainda que com as palavras eu me atrapalhe um pouco, pois seus olhos relampejavam contra a luz das velas, a cozinha embaciada, nossos perfis agora ainda mais vagos, e eu me senti, e isso era inesperado, um pouco mais próximo dela. Como nas tempestades, quando nos encolhemos e então o mundo parece menor.
A sopa fervia em fogo brando, semitampada, e podíamos enfim sentar à mesa da copa, de onde era possível, vigiar a panela ardendo sobre o fogão. Servi dois copos de vinho tinto, mas ela não chegou a tocar no seu. “Você me dá vontade de falar de mim”, Ana me disse, ou algo que tinha esse sentido. Aquilo foi um presente que tantos desejavam e que ela em geral negava. Agora me era dado assim, num momento trivial, quase de graça, enquanto uma sopa barata cozinhava e nós a vigiávamos a distância. Eu, sem ter feito qualquer esforço para isso, começava a receber o que provavelmente muitos buscaram e jamais tiveram. Eu não queria o corpo de Ana, queria seu espírito, e ela começava a despi-lo.
“Então fale”, incentivei-a. Ana C. começou a me explicar que, quando se quer falar a respeito de tudo, o mais difícil é começar. “Se é tudo, comece por qualquer coisa”, sugeri. Ela ficou parada, como uma mulher que separa seus feijões procurando os pontos mais negros, buscando uma extremidade a que pudesse, enfim, se agarrar. E, ainda insegura, disse: “Acho que você também sente o que eu sinto.” Sim, aqui eu sei que a frase foi essa, ou quase essa, pois uma declaração assim não se pode esquecer. Talvez eu confunda as palavras, mas, diante do cálice cheio de vinho sangrento, Ana C. quis dizer que via em mim uma espécie de irmão. Era uma declaração surpreendente, pois mal nos conhecíamos. Senti um abalo e pude perceber que o que me massacrava era mais que alguma atração; eu também tinha sido tragado pelo mito, e agora me era dada a chance de tocá-lo. Era com essa idéia, o mito de Ana C., que Ana Cristina Cesar jogava todo o tempo. Uns a menosprezavam, julgando tudo aquilo ridículo; outros, como eu, tentavam aceitar, e não sei se ela podia perceber, nem se era isso o que ela desejava. Havia o mito – a deusa – interposto entre nós e nada o afastaria dali, então era melhor partir dele.
Vendo meu espanto, Ana continuou: “Eu sei, você não chega a ser um homem bonito”, ou eu guardei a palavras assim. Senti o esforço que fazia para falar e fiquei quieto. Tive a sensação de que qualquer movimento em falso, qualquer respiração mais fremente fariam tudo desmoronar. Ela chegava enfim ao tema proibido: a beleza. Ana C. tinha absoluta consciência de sua beleza, que carregava como uma máscara – não uma máscara festiva, que empresta prazer, mas como um desses moldes gelados que se tiram do rosto dos cadáveres. Na beleza, hoje estou quase certo, Ana C. começou a morrer. Tudo começou naquela máscara.
É claro que ela tirava também vantagens dela, e não escrevo aqui para resenhar suas experiências afetivas, mas as desvantagens pareciam mais fortes. Ou me interessavam mais. “Não quis ofendê-lo”, Ana se corrigiu. Eu ri, pois aquilo era uma tolice. “Gosto de mim como sou”, repeti o chavão só para aliviá-la, pois é claro que, afora os consolos do amor-próprio, ninguém está satisfeito consigo mesmo. Não sei se ela me entendeu, e acho que não, porque Ana parecia sempre mais concentrada em si que em qualquer outra coisa. Nem sei se me via, ou se falava mesmo de mim. Mas isso não me aborrecia: diante dos deuses, queremos só nos ajoelhar.
E então Ana C. começou a me dizer, bem de leve, experimentando as palavras com delicadeza, com muito medo, que a beleza a condenava. “Ela me afasta do mundo”, me disse. “Todos se referem a ela, mas ela não sou eu.” Era singular e bela a maneira como Ana C. tentava se afastar de sua beleza. Falava dela como se fosse um vestido apertado e fora de moda que devesse passar adiante, um sapato que, machucando os dedos, devia jogar no lixo. Na verdade, falava de algo que vinha do passado, primeiro da menina angelical, depois da adolescente mimada, algo que perdurava porém para além da cronologia, que estava além do tempo. Já nem era mais da beleza que ela tentava falar, mas de uma condenação. Pois era isso o que eu podia concluir: que Ana C. se sentia condenada.
Resolvi arriscar: “Mas você não é tão bonita assim”, e logo temi pelo que disse, até porque estava mentindo; aos meus olhos, Ana era uma mulher muito bela, de uma beleza peculiar, de um tipo que, em vez de levar o outro a nela se fixar, leva-o à tonteira. Mas fui tomado por uma dessas tolices dos sentimentos, uma dessas fúteis vontades de ser bom. Ana era esperta, e, quando queria, sabia ser sarcástica, então me respondeu com um sorriso oblíquo. Lembro-me de que se levantou e começou a caminhar pela cozinha, como se procurasse algo que, por distração, tivesse deixado para trás. Uma colher, uma pitada de sal, um guardanapo. Tratei de esperar.
A sopa começava a fumegar e era preciso diminuir o fogo. Fomos até o fogão. Enquanto eu procurava alguma coisa no armário, derrubando-me pelas costas, Ana C. me disse: “Minha beleza é como essa sopa: chegou a um ponto em que precisa ser abrandada, ou tudo se põe a perder.” Não sei, também aqui, se a frase foi exatamente essa, mas foi a que me ficou. Então, esperei que ela continuasse a falar, até que disse: “Cheguei a esse ponto.” E concluiu: “Ou estou bem perto dele.” E aqui, neste remate, eu percebi a sombra de uma ameaça, mas não tive coragem de levá-la a sério.
Ainda agora, quando recordo esse diálogo à borda do fogão, tenho medo de estar confundindo as palavras, medo de, tonto diante da beleza, ter ouvido o que não me era dito, ou apenas ter sonhado – pois nas semanas seguintes, eu me lembro, tive muitos sonhos com Ana C.; sonhos vagamente amorosos, um pouco ilegíveis, como se a realidade estivesse sempre encoberta por uma bruma intensa. Não posso me lembrar dos conteúdos, mas posso recordar das sensações que eles despertaram em mim; entre elas, a de iminência de uma revelação, que no entanto jamais se cumpriria. Até porque deuses são mesmo indecifráveis.
Ali, naquele momento, com seu rosto em brasa pela fumaça quente da sopa, o branco da pele tomado de um vermelho que o vinho ajudava a tingir, eu vi o desespero de Ana C. e não me esqueci mais. Depois, conversamos sobre nossa paixão pelos chás e pela noite, sobre a tolice que era estar falando daquilo enquanto mexíamos uma sopa, sobre a fome que começávamos a sentir. Os assuntos foram se empilhando, temas sobrepostos que se erguiam na forma de uma parede protetora, e logo tudo voltou ao normal. E logo depois amigos entraram na cozinha, a sopa Maggi foi servida e Ana voltou a ser Ana C.
Caiu uma tempestade, e Ana C., quando já se preparava para ir embora, foi obrigada a ficar mais um pouco. Decide que não voltaria aos temas delicados que apareceram na cozinha, mas dessa vez era ela quem, cheia de curiosidade, me vigiava, como se eu estivesse prestes a fazer algum uso indevido daquelas confissões. Estava abatida, talvez só cansada, mas a beleza continuava inalterada em sua face. Depois, chegaram alguns de seus amigos mais íntimos, professores de literatura, pintores, e eu me afastei. Ainda a observei a distância, ativa em seu papel de deusa circunstancial, com os visitantes girando à sua volta, como súditos. Nada mais restou em minha memória.
Alguns anos depois, fiquei sabendo que Ana C. se matara. Ana lutava contra a beleza, assim como lutava contra o estigma da maneira bem-comportada, contra a imagem bem-posta da “escritora” que se recusava a ser e até contra a fama de deusa decaída, a vagar pelas ruas da Zona Sul carioca, ou prestes a pegar um avião para Londres. Agarrei-me, então, aos livros. Relendo Luvas de pelica, que ela escrevera e publicara na Inglaterra em 1980, tive a chance de ver novamente o quanto ela se deixava levar pelas circunstâncias, o quanto tinha fugido da rigidez e também o quanto se atrapalhara com tudo isso. Luvas de pelica é uma falsa carta a amigos distantes, carta enganosa que tantas vezes é verdadeira, e outras não. É uma armadilha, em que Ana tenta escapar de qualquer imagem fixa e, para isso, investe em expectativas que logo depois frustra, promete o que não quer ou não pode dar, repele e em seguida seduz com sua dança de palavras, que descerra como véus. Numa leitura atenta, porém, vemos que a autora ainda é a boa moça que Ana nunca deixou de ser. Talvez distante e cheia de mordacidade, porque levava tudo a sério demais; certamente deprimida; mas ainda assim uma menina bem-comportada que, esperneando por ter sido lançada no século errado, tentava ser moderna sem conseguir nem mesmo ser.
Ainda na cozinha, eu lhe dissera que talvez não precisasse se esforçar tanto, que talvez o problema estivesse no esforço. Ela se surpreendera: “As coisas às vezes são, às vezes não são. Você as define demais, e nada é assim tão definido.” Eu entendera que ela queria fugir, e não era só de mim. Com seus olhos transparentes e sua pele de louça, Ana C. era também um desmentido de si mesma, ou pelo menos de seus escritos. Eu lhe dissera ainda: “Quando escrevemos, escrevemos também com o corpo. O corpo nunca fica de fora” – mas ela só achara engraçado, ou fingira achar, pois reagira com uma risada silenciosa. E Ana, a deusa ipanemense, fora tomando aos poucos a sua sopa, dando pequenos goles no vinho barato, goles sem vontade, pois a borda se mantinha sempre na mesma altura e apenas seus lábios pareciam levemente manchados de sangue. Foi essa, provavelmente, a última cena que guardei dela: Ana sentada num banquinho de cozinha, borrada de vermelho, a olhar para os ladrilhos como se decifrasse um mistério. Aquilo, provavelmente, era o êxtase.
Ana C. escolheu o título “Êxtase”, e não “Felicidade”, como é mais comum, para traduzir um poema de Katherine Mansfield – “Bliss” –, que foi também o objeto de sua tese de tradução literária, em Londres. E traduzir é, quase sempre, identificar-se. Ana era sensível a essas associações e não estava imune ao desejo de construir seus ascendentes. Mansfield seria, a partir daí, um deles. Em arte, ao contrário do que se passa na natureza, somos nós quem bordamos nossas origens, como se o tempo andasse da frente para trás. “Bliss” é o estado que Ana C. buscava para desviar-se das coisas petrificadas, das ilusões de superfície, das tendências “naturais”, como por exemplo a beleza física. Ela desejava, talvez, se tornar antinatural, para que assim, protegida pela arbitrariedade do artifício, não pudessem mais manobra-la.
No primeiro número de Beijo, ela publicou em artigo, “Malditos, marginais, hereges”, que é na verdade um ataque à literatura dita marginal, que Ana C. nos faz ver, é só uma nova face do naturalismo. Ela odiava as coisas naturais, e por isso é ingênuo, para não dizer maldoso, ver seus poemas só como confissões. Nos versos, Ana C. está encenando todo o tempo; é a máscara que fala, a deusa que se despede, enquanto a mulher joga com ingenuidade, que afinal é a condução primeira de qualquer leitor. Não posso deixar de pensar que o suicídio de Ana C. foi um ato gratuito e sem malícia, que só depois foi adornado pelo glamour que costuma envolver o suicídio dos artistas; quem se jogou da janela não foi a poeta, mas a menina do Sion.
Foi só – nunca mais nos vimos. Eu ainda a observei a distância em uma outra ocasião, e só trocamos palavras rápidas e convencionais, nada além disso. Ela tampouco voltou a me visitar, ou mesmo chegou a me procurar, prova de que aquela conversa, que tanto me marcou, não tivera grande significado para ela. Não me importo que as coisas tenham transcorrido assim, pois guardei a minha lembrança de Ana, talvez fantasiosa, quem sabe absolutamente falsa; no entanto, é a que me ficou. Não terei sido o único, porém, a cair em sua armadilha; sei que outros também tentaram se aproximar e que ela, imperturbável, respondia ora que sim, ora que não, e jamais se entregava. Pois Ana C. só iria se entregar à bolha de ar abafado que, antes do chão de pedra, carregou-a para a morte.
Ao se matar, Ana C. foi, mais que nunca, a poeta que escreveu: “Hoje sou eu que / estou te livrando / da verdade.” Pois, morrendo, era a poeta, e não a mulher, que desejava deixar para trás – e no entanto é a poeta, agora, quem persiste. Foi ela também quem escreveu: “Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima sem medir as consequências.” A boa moça, deixando de lado seus boletins, seus caderninhos e suas luvas de pelica, partia para deixar a poeta maldita em seu lugar.
(Publicado no livro “Inventário de Sombras”, de 1999)