Por Edney Silvestre, de Nova York
Todo 31 de outubro tem festa pela cidade inteira. Dos apartamentos pobres do Bronx às coberturas em frente ao Central Park, dos restaurantes pernósticos da Madison Avenue às ensandecidas espeluncas do Lower East Side, das sombrinhas ruas do Harlem à freneticamente alegre Christopher Street, todo nova-iorquino estará celebrando – cada um segundo seu humor, disponibilidade financeira ou espírito festivo – um daqueles ricos sincretismos que só a imigração e o entrelaçamento cultural podem originar. Hoje é dia de Halloween.
Desavisados, como eu no meu primeiro ano aqui, podem pensar que se trata apenas da tal “Festa das Bruxas” e ir para casa, achando que até mesmo baile de carnaval em clube paulistano é mais divertido. Não sabem o que estão perdendo.
Como toda boa festa que se preza, sua origem é pagã. Muitos séculos antes que a Irlanda se transformasse neste conflituoso, belo e triste país dilacerado entre católicos e protestantes intransigentes, quando o povo celta que ali habitava sequer vira um legionário romano – cujas armas o dominariam –, quando mais ouvira falar de incréu, 31 de outubro tinha outros significados.
A data marcava o final das colheitas, que, ruins ou boas, mereciam comemorações. Era, também, o último dia do ano no calendário celta. Nos campos e vilarejos acendiam-se enormes fogueiras para afugentar os maus espíritos, enquanto se dançava em torno delas, bebendo-se a cerveja recém-fermentada. Nas portas e janelas das casas colocavam-se oferendas aos deuses da abundância.
No feno mais próximo rolava-se com o vizinho ou vizinha mais atraente, num ritual de fertilidade semelhante ao que se pratica hoje em dia, se bem que a cautela que nossos perigosos novos tempos exigem. Também era noite propícia para invocar a alma dos mortos e pedir-lhes ajuda para o ano que iniciava. Gatos pretos, demônios e bruxas esconjurados outras noites, nesta eram bem-vindos.
Foi uma versão domada pelo catolicismo que os imigrantes irlandeses trouxeram para o Novo Mundo no século passado. Ainda assim, mesmo rebatizada de “Noite de Todos os Santos” (Halloween é corruptela de “All Hollow’s Eve”), o clima eivado de fantástico permaneceu. E ganhou adições como a abóbora mal-assombrada, brincadeiras infantis, superstições de outras culturas.
Esta “Noite das Bruxas” atual, uma festa tipicamente americana, virou uma espécie de carnaval deles. Em Nova York, então, onde tudo é desculpa para comemorar – e faturar –, agigantou-se.
Vitrines de lojas, pubs, bares, restaurantes; janelas e portas de casas e apartamentos, interiores de clubes noturnos, livraria, elevadores e até supermercados: não há pedaço da cidade que não exiba alguma decoração ou sinal marcando o dia.
Caveiras, teias de aranha, fantasmas, figuras de vampiros, bruxas e lobisomens estão em cada lado para onde a gente se vire. Enviam-se cartões desejando Happy Halloween, come-se chocolate com formato lúgubres, comem-se balas com aparência de miniabóboras, come-se torta de abóbora, come-se ravióli de abóbora, come-se sushi de abóbora. O tal Jack-O-Lantern, monstro/fantasma/espírito que habita esta cucurbitácea, é símbolo onipresente.
Um grande desfile de carros alegóricos e fantasias, na base do vá-como-quiser, ocupa a Sexta Avenida, começando no SoHo (Spring Street) e indo até o Chelsea (Rua 23).
Jipe, caminhonete, cadilaque conversível ou carrinho de supermercado enfeitado com tema fantasmagórico, vale tudo. Nas fantasias, também. Caveira e vampiros são os favoritos, mas já vi uma família inteira (pai, mãe, filhinha bebê no carrinho) vestidos de Leão Medroso, Homem de Lata, Espantalho e Dorothy de O Mágico de Oz.
Com exceção do menino, que era um leãozinho adormecido apesar de todo o barulho, música e agitação em volta, não me recordo de quem era quem, só que formavam um conjunto alegre, gracioso e ingênuo.
A festa prossegue noite adentro, na Christopher Street e, dali, para as boates, bares, restaurantes e todo o lugar que resolva acolher hordas monstruosas.
Na rua, predominantemente gay, abundam fantasmas de Marilyn Monroe, Vacas Mal-Assombradas. Madonnas saídas do túmulo, um ou outro Michael Jackson. Não faltam, tampouco, as Marlene Dietrich e as Diana Ross. Seguramente aparecerá alguém soterrado pelos balangandãs à la Carmen Miranda.
Manhattan também é sacudida, finalmente, por festas particulares. Só no meu prédio, que não é grande, ano passado aconteceram quatro. E foi um ano meio desanimado.
No anterior, em plena disputa presidencial entre George Bush e Bill Clinton, meus vizinhos de andar, o casal Paul e Laughlin, militantes apaixonados do Partido Democrata, me convidaram para a deles, intitulada “Exorcizando a Casa Branca”. Paul, que é mais gaiato, recebeu os convidados usando orelhas de Ross Perot.
Mesmo sabendo que nem eles nem os outros convidados entendiam nada de política brasileira – mas já que o tema era fantasmas recentes & suas maldições –, fiz produção de acordo. Cheguei lá de cabelo gomalinado, terno, gravata Hermés e faixa presidencial verde e amarela.
Só me faltaram as algemas.