Por José Castello
Caio Fernando Abreu passou boa parte de seus quarenta e sete anos de vida enamorado da morte. Preferiu sempre as atmosferas sombrias e se deixou guiar por uma estética dark que começava nas roupas negras, nas olheiras emprestadas de El Greco, no porte arqueado, e que se ampliava em suas ideias depressivas a respeito do mundo a seu redor.
Só descobriu que amava a vida e a claridade, que a parte mais fecunda da existência estava em coisas simples e imperceptíveis, depois que um boleto de laboratório, expedido em 1994, lhe anunciou que era portador do vírus HIV, que por fim o matou, em fevereiro de 1996. O anúncio da morte, contido naquele resultado “positivo”, primeiro o lançou na depressão; superado o golpe, porém, o adjetivo, apesar da carga simbólica negativa que carrega, pois atesta a presença de um vírus letal, tornou-se afirmativo – isto é, positivo – e mudou a vida de Caio.
Dirão que esses efeitos psicológicos são inevitáveis sempre que a morte se anuncia, que a consciência da finitude impõe um realismo compulsivo e leva a existência a ser percebida com outra intensidade, até porque não há alternativas. Isso é verdade, mas é só meia verdade. Poderão argumentar também que, nesse reencontro de Caio com os aspectos positivos da vida, não houve iluminação alguma, mas apenas o reagir mecânico de um homem diante da doença. Acontece que, em Caio Fernando Abreu, essa mutação tomou formas extremas, que caracterizam uma verdadeira metamorfose (a transformação de um ser em outro), e ele mesmo se surpreendeu com o efeito benigno que, depois da inevitável tristeza, a enfermidade foi capaz de produzir.
O relato dessa mutação foi traçado pelo próprio Caio, sem ceder a nenhum tipo de pudor ou de autocomiseração, nas crônicas semanais que ele publicava, aos domingos, em O Estado de S. Paulo. Em uma série de três “Cartas para além do muro”, a primeira publicidade em 21 de agosto e as seguintes em 4 e 18 de setembro de 1994, o escritor fez questão de comunicar a seus leitores, sem evasivas, a descoberta do vírus, e a partir dali colocou sua doença em exibição, não por narcisismo tardio, ou, ao contrário, por morbidez e perversão, ou até por maldade, mas porque desejava que eles pudessem acompanhar as mudanças imprevistas, e positivas, que a notícia da morte fora capaz de provocar. Caio começa vacilante (“Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela”), mas aos poucos se enche de coragem e por fim anuncia: “Procurei um médico e, à revelia dele, fiz O Teste. Aquele. Depois de uma semana espera agoniada, o resultado: HIV positivo.” Numa quarta “Carta”, publicada na véspera de Natal do mesmo ano, já tomado por estranhas esperanças, ele diz: “Amanhã à meia-noite volto a nascer. Você também. Que seja suave, perfumado, nosso parto entre ervas na manjedoura.”
Mas as mudanças interiores já se esboçavam desde muito antes. No dia 22 abril de 1987, na crônica “Anotações insensatas”, Caio dizia a respeito do homem que deixara de ser: “Era desses caras de barba por fazer que sempre escolherão o risco, o perigo, a insensatez, a insegurança, o precário, a maldição, a noite – a Fome maiúscula.” Ele deixou espalhadas em suas crônicas, gênero em que a imaginação se mescla sem qualquer vergonha ou precaução à experiência pessoal, para uso dos interessados, pistas de todos os tipos a respeito dessa transformação e, diagnosticada a doença, passou a registrar, passo a passo, seu processo de decadência física, que foi, ao mesmo tempo, uma longa entrada na introspecção.
É verdade que desde o início dos anos 90, mesmo sem o diagnóstico fatal, mas certamente afetado por algum tipo de intuição a respeito da doença, talvez já dispersa em pequenos sinais só perceptíveis na intimidade, Caio tornara essa revisão ainda mais radical. A casca do inseto negro e negativista já começava a rachar – a Aids foi só a mão pesada que, num último gesto, arrancou-a, deixando à mostra o miolo delicado. No prefácio que escreveu para a reedição de “Limite branco”, romance ingênuo e adjetivoso que escrevera aos dezoito anos, que publicara em 1970 e relançara em 1992, Caio, depois de justificar a reedição, ainda que revista, de um escrito tão precoce, e que mantém portanto todas as fraquezas próprias das coisas prematuras, cita os versos de Drummond: “Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. / A vida apenas, sem mistificação.” Antes, ele começa a reconhecer, havia uma crosta negra que encobria sua existência e que, se fazia dele um tipo melancólico de sedutor e já parecia até aderida à pele, tornando-se até mesmo a marca do escritor underground, também o deprimia e impedia de viver.
Esse apego extremo às coisas vivas, ou positivas, pois a partir do diagnóstico ele fez sempre questão de repetir o adjetivo “positivo” torcendo seu sentido e invertendo a carga de condenação nele contida, moveu-o também a republicar, em 1995, o “Inventário do irremediável”, do mesmo ano de 1970, esse sim cm largas modificações, substituições, cortes e acréscimos, e rebatizado, sintomaticamente, de “Inventário do ir-remediável”. É o próprio Caio quem, na reedição de 95, explica a mudança no título: “(…) e até o título mudou, passando da fatalidade daquele irremediável (algo melancólico e sem saída) para ir-remediável (um trajeto que pode ser consertado?)”. Ainda para justificar a reedição de um livro tão irregular, ele diz: “Acho que deve-se insistir na permanência de tudo aquilo que desafia Cronos, o Deus-Tempo cruel, devorador dos próprios filhos.” A mudança no título resume o novo estado de ânimo do escritor, que a partir da doença descobriu que, por mais adversa que seja a existência, há sempre e ainda o que remediar e o que desejar. Caio reformou partes do livro, também, com a intenção de expurgar o que considerava ser apenas efeito de uma excessiva influência de Clarice Lispector, no que estava coberto de razão, e o que, apesar de seus esforços, e por mais que lutasse contra isso, jamais superou. E esse aparente fracasso foi, apenas, a persistência de uma presença benigna.
Quando escreveu a primeira versão do “Inventário”, o escritor trabalhava na redação da revista Veja, em São Paulo, para onde se mudara em 1968; perseguido por agentes do DOPS, pois estávamos em plena fase férrea do regime militar, com vinte anos incompletos, ele se refugiou no sítio da escritora e amiga Hilda Hilst, na periferia de Campinas, onde viveu durante quase um ano. Carregou consigo uma mala com cerca de cinquenta contos dispersos, que, organizados e escolhidos, resultaram no novo livro. A partir daí, em retribuição, Caio passou a trabalhar como secretário informal de Hilda, e, à noite, os dois liam juntos estudos de astrologia, misticismo e esoterismo, e depois, inspirados pelo tom nebuloso daquelas leituras, postavam-se à mesa de jantar para fazer o velho jogo espírita do copo que anda. Liam também Tolstoi, Thomas Mann, Rilke, e, em algumas noites mais agitadas, diante de uma figueira tida como mágica que se ergue bem à entrada do sítio, Caio, atiçado por Hilda mas não inteiramente convencido, chegava a acreditar que recebia o espírito de Federico García Lorca.
Além de Lorca, a imagem de outro escritor, homossexual como ele, circulou nesses tempos pela vida de Caio: Lúcio Cardoso, falecido em 1968, autor de “A casa assassinada” e de uma frase célebre, que ele gostava de repetir: “A tragédia é o estado natural do homem.” Ao deixar o sítio de Hilda, Caio Fernando se mudou para o Rio, onde se hospedou com Maria Helena Cardoso, que lhe cedeu, logo a ele que era tão impressionável, o quarto do irmão morto. Assim que se recolheu às trevas desse quarto, sua primeira decisão íntima foi proibir a si mesmo de voltar a ler Clarice Lispector, e com isso acreditava ter se “desclaricezado”, passando a se dedicar a partir daí à leitura de autoras fortes como Kafka, Proust e Érico Veríssimo. Mas as sombras de Lúcio Cardoso e García Lorca, a despeito desse esforço de dispersão, continuaram a imperar.
Desde jovem, Caio sempre foi muito preocupado com a ideia da morte, inquietação que se exacerbou depois da leitura, que a moda tornava obrigatória, dos existencialistas franceses. “Naquela época, o existencialismo e o suicídio eram chiques, a moda era ser sombrio”, ele disse. “E eu fui incapaz de resistir.” Caio incorporou esse tom lastimoso e o transformou não só em um estilo literário, mas também numa regra de vida. Depois da temporada com Maria Helena Cardoso, ele se transferiu para o bairro de Santa Teresa, na época um reduto de hippies, desbundados e afins; entregou-se ao rock’n’roll, à maconha, ao sexo, à flauta doce, às leituras mágicas e deixou crescer os cabelos até os ombros. Um dia, preso por porte de maconha, só conseguiu ser solto com a intervenção direta de Adolfo Bloch, seu patrão na revista Manchete; em liberdade, foi imediatamente demitido por Bloch, recebendo como indenização uma passagem só de ida para Porto Alegre, pois o empresário queria ter certeza de que não o veria mais.
De volta ao Rio Grande, ainda tentou trabalhar no jornal Zero Hora, mas logo entendeu que não se adaptaria mais às redações; além de estranhar seus cabelos longos e roupas exóticas, os companheiros de jornal não suportavam, em particular, o incenso indiano que Caio acendia diariamente a um canto de sua mesa de trabalho e que se espalhava pela redação com sua fumaça doce.
Em 73, querendo deixar tudo para trás, ele decidiu por fim viajar para a Europa. Ficou primeiro algumas semanas na Espanha, depois se transferiu para Estocolmo, onde sobreviveu, entre exilados moçambicanos, portugueses e russos, como lavador de pratos em um restaurante executivo. Mudou-se em seguida para Amsterdã, onde exerceu ofícios tão díspares quanto os de modelo fotográfico e faxineiro, e um dia, sem dinheiro no bolso, resolveu pegar carona para assistir a um show dos Rolling Stones em Viena mas perdeu-se no caminho e, sem conseguir se comunicar ou mesmo entender em que país se encontrava, e sem assistir ao show, tomou o caminho de volta para a Holanda.
Quando finalmente chegou a Londres, seu destino original, decidiu se dedicar novamente à literatura e escreveu “Ovelhas negras”, uma espécie de livro de memórias inglesas, que só seria lançado em 1995, recordações dos tempos em que viveu em um pequeno quarto londrino, sem eletricidade, o que o obrigava a passar os dias enrolado em cobertores e lendo à luz das velas que roubava dos altares de uma igreja gótica da vizinhança. Naquele momento, Caio se viu em uma encruzilhada que, influenciado pelas utopias do desbunde, assim definiu: “Ou vou para a Índia, ou me torno escritor”, e, como todos sabem, e foi muito melhor, preferiu a segunda opção.
Quando retornou mais uma vez a Porto Alegre, em fins de 74, parecia não caber mais na rotina do Brasil dos militares: tinha os cabelos pintados de vermelho, usava brincos imensos nas duas orelhas e se vestia com barbas de veludo cobertos de pequenos espelhos, e ainda assim andava calmamente pela Rua de Praia, centro nervoso de Porto Alegre, imaginando que ninguém se espantaria, como se estivesse numa praça de Londres. Colaborou na imprensa alternativa, fez teatro, tentou sobreviver, mas, diagnosticando em si mesmo outra encruzilhada, dessa vez entre a loucura a que parecia destinado e o instinto de sobrevivência, decidiu se tratar com um psicanalista freudiano da linha ortodoxa, pagando as sessões com o salário que passou a receber como crítico teatral da Folha da Manhã, e, depois de um ano de divã, julgou-se reintegrado à vida brasileira. Mesmo com três contos excluídos pela censura do governo Médici, conseguiu publicar “O ovo apunhalado” pela prestigiada Globo, mas “Pedras de Calcutá” só encontrou abrigo na Alfa-Ômega, uma editora pequena e maldita. Tudo parecia perfeito, até que, um dia, seu psicanalista morreu em um desastre de automóvel e Caio, transtornado com o acidente, decidiu fugir para São Paulo.
A escrita gótica sempre o atraiu. Ao lançar “Pedras de Calcutá” em 1977, ele disse: “Pedras de Calcutá é, na sua quase totalidade, um livro de horror.” O livro abre com uma epígrafe bastante significativa de Luiz Carlos Maciel, que define a agonia que naquela época o atormentava: “Tudo é divisão. Esquizofrenia. Drama.” Ainda seguindo a trilha deixada pelas epígrafes, encontramos outra bastante eloquente, tomada de empréstimo do escritor português Miguel Torga, que está bem à entrada de “Estranhos e estrangeiros”, livro póstumo de 1996: “Pareço uma dessas árvores que se transplantam, que têm má saúde no país novo, mas que morrem se voltam à terra natal.”
Contrariando, porém, em parte a sentença de Torga, ainda que a morte de fato viesse a se impor, Caio só encontra um sentido mais delicado para a vida quando, já de posse do diagnóstico, volta a viver com os pais em Porto Alegre. Põe-se a cuidar de roseiras, a reescrever livros antigos e a meditar sobre as doçuras da existência que, agora, ele se preparava para abandonar. Em uma crônica publicada no Estadão em 11 de dezembro de 94, “Breves memórias de um jardineiro cruel”, ele chega a dizer que anda pensando em substituir o crédito “escritor e jornalista” por “escritor e jardineiro”. A paixão tardia pelas plantas lhe serve de tema para muitas outras crônicas, em contraponto com a doença, que é o tema de duas crônicas magníficas, “Breve introdução ao estudo do ciclo seco” e “O ciclo seco ataca outra vez”; na segunda, sem qualquer esforço para poupar o leitor, ele diz coisas assim: “O ciclo seco voltou. Desta vez nem tão seco assim, já que acompanhado por febres, suores abundantes, terror generalizado e, se não generalizado, tão particularizado que num segundo parágrafo não restariam leitores.” Ao contrário do que temia, suas crônicas, mesmo quando encharcadas de tristeza, continuaram a atrair legiões de leitores.
Em São Paulo, no ano de 1978, Caio integrou a equipe da revista Pop, em cuja redação começou a escrever “Morangos mofados”, e começou também a publicar resenhas em Veja. Inquieto, logo se cansou do que fazia e pediu transferência para a redação de Nova, revista destinada ao público feminino, mas em 1981 decidiu outra vez abandonar o jornalismo para se dedicar exclusivamente a escrever. Ainda viveria mais uma recaída na imprensa, naquele mesmo ano, ao aceitar um convite para se tornar o editor de Leia Livros, cargo que logo em seguida abandonou, mudando-se para o Hotel Santa Teresa, um albergue decadente que servia de refúgio para artistas como Ana Cristina Cesar, Raul Seixas e Rita Lee. E lá, entre móveis antigos e paredes descascadas, escreveu “Triângulo das águas”, que sairia em 83 e que ele sempre considerou seu livro mais incompreendido, uma narrativa esotérica, construída sobre uma estrutura astrológica e arquétipos dos signos das águas, muito maltratada pela crítica.
Caio sempre reclamava que um crítico de Veja, resenhando o que não lera, chegara a dizer que o “Triângulo” era um “romance”, quando na verdade ele o considerava uma reunião de três novelas independentes, ainda que enlaçadas por uma lógica esotérica, a primeira, “Dodecaedro”, ligada metaforicamente ao signo de Peixes; a segunda, “O marinheiro”, a Escorpião; e a terceira, “Pela noite”, a Câncer. Não era uma novidade que seus livros fossem incompreendidos; pode-se pensar, até, que Caio os escrevia, um pouco, para isso mesmo, até porque fazia questão de repetir, e assim perpetuar, esses enganos. Vivia empenhado em desempenhar o papel de anjo perseguido, como se isso pudesse trazer, enfim, a prova de uma vocação. Descendia de uma linhagem de escritores que precisavam sofrer para citar. Foi ele própria quem, muitos anos depois, descreveu as coisas assim.
Depois do fracasso de “Triângulo das águas”, Caio decidiu retornar mais uma vez ao jornalismo e se empregou, em 86, na equipe do Caderno 2, de O Estado de S. Paulo, onde trabalhou como copidesque e, mais tarde, a partir de 1993 e até morrer, atuou como cronista dominical. Nos fins de tarde, ele ia para o Café Ritz, na Alameda Franca, um ponto de encontro de gays e simpatizantes, e se acomodava numa das mesas dos fundos, onde, aproveitando o pequeno movimento da tarde, se punha a escrever até que, quando a noite caía e o bar começava a encher, pudesse só se divertir. No meio daquele bar vazio, com as cadeiras ainda viradas sobre as mesas, ele escreveu “Os dragões não conhecem o paraíso”, que é provavelmente seu melhor livro; uma semana depois do lançamento, em 88, sem pensar duas vezes, pediu demissão do Estado.
Tampouco pensou duas vezes para decidir que voltaria a viver na Europa, mas a decisão não perdurou e, pouco tempo depois, estava de volta a São Paulo, onde trancado em casa, alimentando-se apenas de pizzas que encomendava por telefone, escreveu o romance “Onde andará Dulce Veiga?”, que o atormentava havia treze anos e que tem como protagonista um personagem tomado de “A estrela sobe”, de Marques Rebelo, um de seus escritores favoritos. Publicado em 1990, quatro anos antes de ele receber o diagnóstico de soropositivo, “Onde andará Dulce Veiga?” é um livro premonitório, no qual o narrador é, provavelmente, positivo, e Dulce Veiga também, configurando uma história de amor entre dois possíveis contaminados. Caio considerava esse livro um “romance B”, urdido em escrita extremamente realista, que conduz no entanto a uma solução mítica, experiências alucinógenas com o Santo Daime e um desfecho sofrível, que provocou muita incompreensão.
A ideia de contaminação, aliás, já aparece nos livros de Caio Fernando Abreu, metaforicamente, desde o início dos anos 80. Caio sempre fez questão de lembrar que a Aids já aparecia em romances como “A peste”, de Albert Camus, publicado em 1947. Quase meio século antes, dizia ele, havia uma tendência latente, um sintoma que teimava em se repetir e que apontava para a doença, como se o vírus fosse não a causa, mas o efeito de um impulso para o contágio que o século, desde o início, anunciou e que diz algo muito duro a respeito do homem contemporâneo. Visto assim, o vírus teria vindo só ocupar um lugar vazio que lhe estava predestinado, um impulso para a morte que, depois de permanecer disperso e invisível por muitos anos, finalmente encontrou uma doença em que se fixar.
Depois de mais uma temporada na Europa, em que voltou a sobreviver como lavador de pratos, garçom e faxineiro, Caio chegou mais uma vez ao Brasil, a essa altura já em plena Era Collor e em um momento no qual amigos, e amigos de amigos, morriam de Aids por todos os lados. Ele sobreviveu com trabalhos avulsos, até voltar ainda uma vez para a França, em meados de 94, dessa vez para Saint-Nazaire, atendendo a convite da Casa dos Escritores Estrangeiros, na qual, instalado no mesmo quarto ocupado anos antes pelo cubano Reinaldo Arenas, que em processo adiantado de Aids se suicidou em 1990, escreveu a novela “Bien loin de Marienbad”, publicada logo depois na França, em edição bilíngue, pela editora Arcane 17. A mesma editora publicara também as “Meditações de Saint-Nazaire”, livro que resultou da temporada de Arenas na casa. O quarto que ambos ocuparam ficava no décimo segundo andar, e o escritor cubano, temendo que o desespero o levasse a se atirar pela janela, só permanecera nele hospedado por uma semana, tempo suficiente, no entanto, para que pudesse escrever seu livro. De lá, Arenas viajara para Nova York, onde, encontrando-se com o fantasma de que fugia, se atirara da janela de um arranha-céu.
Caio embarcou para Sanit-Nazaire com problemas na pele e não muito convencido do diagnóstico médico, que apontava uma prosaica dermatite de verão. Durante os dois meses que passou na Casa dos Escritores, teve febres constantes e chegou a perder peso. Apesar disso, conseguiu escrever sua breve novela, que relata a história de um viajante sem nome (o próprio Caio?), autodenominado Leopoldo dos Mares, e que viaja seguindo pistas deixadas por outro personagem sem nome (Arenas?), que se assina apenas K. Em uma de suas fugas, K. deixa como pista, em um apartamento vazio, recortes de textos literários de origens diversas, entre eles fragmentos de uma narrativa de Reinaldo Arenas – deslocado assim para a margem da história que protagonizava. O encontro com Arenas, que na verdade foi um encontro com a sua ausência, é mais um sinal de mau agouro, que Caio insistia em desprezar. No fim da temporada francesa, ainda viajou para a Noruega para visitar alguns amigos, mas seu estado de saúde se agravou, e, a contragosto, pois já parecia saber o que ainda não sabia, ele foi abrigado a retornar ao Brasil.
Por conta própria, e acreditando sem acreditar (como fazem as crianças e os teimosos) que estava contaminando, resolveu se submeter ao teste de Aids. Depois de descobrir que era soropositivo, e de passar algumas semanas em forte depressão, Caio, quando tinha todo o direito de permanecer pessimista e infeliz, encheu-se de vida. Primeiro, desprezou qualquer consolo da piedade, atitude que se expressou no falar livremente a respeito da doença e transformá-la no que, afinal, toda doença é: uma parte da vida, já que mortos não adoecem. O ânimo dark que compunha o pano de fundo de sua obra, e também dos aspectos mais aparentes de sua vida, foi imediatamente deixado para trás.
Vencidos o susto e a decepção, Caio passou a dizer que a condição de soropositivo o tornara também um “escritor positivo” e desde então, manejando o adjetivo fatídico a seu favor, ainda sujeito de sua vida e não objeto de um diagnóstico, ele não se cansou mais de afirmar sua nova condição existencial. Para os doentes de Aids, mas não só para eles, o adjetivo “positivo” passou a ter, desde então, essa dupla significação. Tornou-se uma palavra enigmática, dessas que guardam em si uma afirmação seguida de uma negação, e que podem ser desdobradas, para o avesso e para o direito, repetidas vezes, tudo dependendo só do desejo de quem as manipula. Na verdade, toda palavra é enigmática, toda palavra contém seu avesso – somos nós que as petrificamos.
Mesmo com o diagnóstico nas mãos, Caio considerava exagerado o alarde que se costuma fazer em torno da Aids e discordava da posição de escritores como o francês Hervé Guibert, homossexual e soropositivo como ele, que lidava com a doença de modo “muito mórbido, muito obsessivo”, quando existem, lembrava ele, coisas bem mais graves a pedir nossa atenção. O trajeto desse Caio “positivo” se torna cheio de surpresas, ao menos para aqueles que acreditam que todo homem reage do mesmo modo e todo diagnóstico produz as mesmas consequências.
Depois da primeira internação hospitalar, em julho de 94, Caio começou a escrever uma peça, “O homem e a mancha”, livremente inspirada no “Don Quixote”, de Cervantes, publicada postumamente em 1997, em seu “Teatro completo”. É a história de um autor que procura um personagem eminente, Don Quixote, e encontra outro: um funcionário público que acaba de se aposentar. Esse aposentado, repetindo uma experiência vivida pelo próprio Caio, decide trancar-se em seu apartamento, isolar-se do mundo e viver só de refeições pedidas pelo telefone. Desse homem, emerge um outro, obcecado por uma mancha que tem no corpo. E desse segundo homem, por fim, ressurge um terceiro, o Don Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, compondo assim uma condição existencial triangular – e a ideia do triângulo, que vinha de narrativas anteriores, se perpetua. Esse homem que surge de dentro de outro, claro, é também Caio Fernando Abreu – e o quixotismo pode ser tomado como a tradução literária mais fácil, mas também mais inevitável, para sua luta contra a doença. Alguns amigos de Caio sempre o chamaram de Quixote, apelido que lhe foi conferido por Clarice Lispector. A brincadeira agora se confirmava.
A Aids ainda aparece em outra peça de Caio muito pouco conhecida, “Zona contaminada”, montada em meados dos anos 90 na discoteca Kitchenette, a antiga Crepúsculo de Cubatão, em Copacabana, no Rio. O espetáculo, com Scarlet Moon, Ana Maria Magalhães e Fausto Fawcett no elenco, foi um grande fracasso, mais isso não o abalou; essa foi a primeira montagem de um texto no qual ele trabalhou por quinze anos, morrendo sem dá-lo por terminado. Caio, antes apaixonado por sua tristeza, tornava-se agora um homem flexível. A doença o deixou muito apegado a um velho ditado francês: “Ah, se os jovens soubessem, se os velhos pudessem!”, que para ele resumia, em palavras simples, todo o sentido trágico, mas também as melhores esperanças, da existência. Toda a obra de Caio, desde os livros de iniciante, pode ser relida agora à sombra da doença fatal que viria a mata-lo; um risco de desesperança permeava cada página desde o início, conduzindo até o diagnóstico que só chegaria muito tempo depois. O estranho, em seu caso, é que tenha sido justamente da escuridão, quando o diagnóstico foi finalmente revelado, que a claridade se fez.
Já recolhido à casa dos pais em Porto Alegre, Caio se pôs a revisar os originais de “Morangos mofados”, coletânea de contos publicada em 82, e então se defrontou com o tom lamuriento, o sentimento errante de náusea pela vida e personagens acometidos por um desgosto sem causa que, naquele momento, não condiziam mais com seu estado de ânimo. Saudável e muito jovem, ele fora capaz de produzir aqueles contos tristes, carregados de lamúrias e de negativismo que, doente e condenado, ele passava a considerar inaceitáveis e estava decidido a alterar. Mas mudou novamente de ideia: a partir desse momento, e mesmo com alguma repulsa, tratou de aceitar, como quem ampara um menino triste, o Caio Fernando Abreu que ele tinha sido e que já era mais. “Hoje só faço duas coisas”, ele me disse: “Fico aqui regando as flores e o meu passado.”
O vínculo escorregadio entre esses dois Caios, o saudável e negativo de um lado, o doente e positivo de outro, vem reafirmar que as relações entre vida e morte, assim como entre vida e literatura, mesmo estando sempre a agir, não guardam as proporções mecânicas que, por desleixo intelectual, por preguiça, lhes emprestamos. Esses laços são irregulares, e a ficção pode apontar exatamente o contrário do que se passa na vida, o que não significa dizer que o vínculo foi desfeito. Também entre morte e vida existem relações complexas que não podem ser reduzidas aos clichês do sentimentalismo; onde havia vida podia haver também tristeza, e onde há doença pode haver alegria. Mesmo sendo um livro da era pré-Aids, “Morangos mofados” traz um tom agourento que o percorre de ponta a ponta, como uma cerração depressiva, inflexão que se inverte e se torna positiva nos livros terminais, quando todos os argumentos estavam dados para a melancolia.
Em “Morangos mofados” já se podem ler alguns indícios da doença que, no momento do diagnóstico, os médicos consideraram incubada havia dez ou doze anos, o que coincide com a primeira edição do livro, de 1982. São paralelos que, vistos a distância, produzem calafrios, mas que Caio se dedicou não só a manipular, mas também a incentivar. “Todos temos a espada no pescoço”, declarou ele um dia, num dos intervalos de sua vida pacata de jardineiro. “A Aids só me fez ver aquilo que eu já via.”
Três anos antes de descobrir que estava doente, caminhando pela Avenida Paulista numa madrugada, Caio encontrou-se com uma amiga distante e, em meio a rápida conversa, ela lhe perguntou: “O que você mais gostaria de fazer na vida que ainda não fez?” Sem vacilar, e para sua própria surpresa, ele respondeu: “Plantar roseiras.” E, depois das despedidas, continuou intrigado com a resposta que, sem pensar, fora capaz de produzir. Alguns anos depois, já doente e recolhido ao jardim de seus pais, em Porto Alegre, ele pôde realizar esse sonho. Para pagar os medicamentos, ainda fez, quando tinha forças, alguns trabalhos de tradução. Em parceria com a amiga Miriam Paglia, traduziu “A arte da guerra”, clássico chinês, de autoria de Sun Tzu. Dizer que a doença fez de Caio Fernando Abreu um guerreiro é um lugar-comum do qual, desde então, já não se pode mais fugir.
(Publicado no livro “Inventário das Sombras”, de 1999)