Mesmo que o nome colocado em destaque seja o de Julian Assange (Wikileaks), é bom deixar claro que o livro “Cypherpunks: Liberdade e o futuro da internet” (Editora Boitempo) é a transcrição de um debate que também contou com a participação de Jacob Appelbaum (Wikileaks e Projeto Tor), Andy Müller-Maguhn (membro da Chaos Computer Club) e Jérémie Zimmermann (membro da Paris-based La Quadrature du Net), debate este ocorrido na embaixada do Equador na Inglaterra, local onde Assange permanece como fugitivo da polícia em estado de asilo político.
O que conecta todas essas pessoas é o fato de participarem da lista de discussão de um grupo autodenominado “Cypherpunks”, cujas atividades desembocaram em outros grupos como Wikileaks, ajuda eletrônica na execução do que ficou conhecido como Primavera Árabe e na luta pelo uso da criptografia pelas pessoas comuns como forma de dificultar acesso dos órgãos de comunicação e governo às suas informações.
O lema dos Cypherpunks é “Privacidade para os fracos, transparência para os poderosos”, pois sua principal bandeira de luta é a popularização do uso da criptografia para guardar ou transmitir informações de modo seguro.
Em tempos como os de hoje, em que projetos de lei como Stop Online Piracy Act (SOPA) e PROTECT IP Act (PIpA) nos EUA visam manter legalmente o controle da internet por parte dos estados nacionais, cuja indústria do entretenimento está por trás em grandes financiamentos de campanhas, “Cypherpunks: Liberdade e o futuro da internet” é um livro extremamente importante para compreendermos de verdade como o mundo em que vivemos funciona.
Algumas dessas verdades são perturbadoras, como o fato de todas as conexões de internet da America Latina passarem pelos EUA através de cabos de fibra óptica, tendo então o governo americano livre acesso a interceptação dos dados de quaisquer usuários! E a China está tentando fazer o mesmo com a África, investindo na tecnologia informacional daquele continente em troca do controle de seus fluxos de dados.
Se projetos como SOPA e PIPA desencadearam protestos e medo no mundo todo, o que aconteceria se fosse revelado às pessoas comuns que todas as ligações telefônicas (fixo e móvel) são gravadas de modo permanente e em qualidade razoável de áudio em galpões do mundo inteiro?
Se nos fosse dito que invasão de privacidade é OUVIR estas conversas, sendo portanto legal a existência de suas gravações por parte das empresas de telecomunicações (Nos EUA é legalizado pelo Stored Communications Act, que pode também forçar a revelação de registros de comunicação a pedido dos órgãos do governo sem ser necessário um mandado emitido por Juiz)?
Se lembrássemos que o Facebook tem no mínimo 1 gigabyte de informação sobre seus usuários, entre páginas acessadas, registros das conversas, quantos minutos se ficou em cada item do site, qual os horários de acesso, opção sexual, religião e etc.?
Pior ainda, se soubéssemos que o Facebook vende essas informações para empresas praticarem “propaganda inteligente”, focando diretamente em seu público alvo? Ainda mais estranho, se nos fosse revelado que o Facebook em seus registros internos trata o usuário como “alvo” e não “usuário”?
Notícias como essas parecem distopias de ficção, típicas de um 1984 de Orwell, mas como pessoas que trabalharam dentro ou enfrentaram as empresas de comunicação da Europa e América do Norte, Assange e os outros debatedores afirmam que já vivemos essa distopia sem nem nos darmos conta. Ou mesmo ignorando a sua existência.
Os Cypherpunks são exatamente aqueles que se negam a ter suas informações expostas e desenvolvem programas de criptografia de código aberto, para o uso de todos, mesmo quando isso incomoda grandes potências como os EUA que vêem a criptografia como um perigoso mecanismo de ocultação de informações. A criptografia é tão perigosa aos olhos do governo Norte Americano que é tratada como arma, havendo severas restrições em relação ao seu desenvolvimento e uso.
Segundo os Cypherpunks, existem quatro argumentos principais contra o sigilo total de informações que a criptografia proporcional, é o que eles chamam de “infoapocalipse”, o sensacionalismo populista para tentar manipular a opinião pública: terrorismo, pornografia infantil, drogas e lavagem de dinheiro.
Ninguém em sã consciência acha que essas quatro coisas devam ser permitidas, mas também não podemos ser idiotas ao ponto de entregarmos o controle de todas as nossas informações ao governo ou qualquer empresa na hora que desejarem apenas por alegarem a proteção da comunidade em que vivemos. Ou de permitirmos que todos os nossos dados sejam arquivados e disponibilizados maciçamente a consulta para nos protegermos desses quatro elementos.
O que os Cypherpunks defendem é que o governo investigue suspeitos de forma legal e autorizada democraticamente pelo judiciário, e não através do acumulo massivo de informação para posterior triagem de dados, pois isso proporciona margem a perseguições de cunho pessoal e político.
Os Cypherpunks alertam ainda para o perigo de vivermos numa sociedade de hardwares e softwares proprietários, de código fechado, pois compramos produtos em que temos licença apenas para uso e não para alteração. Por isso as empresas se profissionalizam em tornar pouco acessível o modo como funcionam os mecanismos de seus aparelhos, e isso é perigoso pois assim elas podem deixar brechas voluntárias para ter acesso a nossas informações e por não termos acesso ao seu modo de funcionamento não podemos nos defender. O usuário deve ter o direito de poder entender como funciona cada parte do aparelho ou software que possui, e mais, modificá-lo para melhor desempenhar certas funções.
Para os Cypherpunks, há uma guerra sendo travada dia e noite, se um dia houver um vencedor nesta disputa entre o Estado e as empresas de comunicação, o prêmio será o acesso livre a todos os nossos dados de telefonia e internet. Daí em diante, com uma espécie de monopólio em mãos, apenas alguns poucos especialistas em criptografia estarão livres da subjugação das autoridades.
Segundo Julian Assange, na qual talvez seja a parte mais importante do livro (p. 128):
“Minha experiência é que no Ocidente a coisa é muito mais sofisticada em termos de número de camadas de desonestidade e obscurecimento sobre o que está realmente acontecendo. Essas camadas existem para poder negar que a censura está sendo realizada. Podemos pensar na censura como uma pirâmide. É só a ponta dela que aparece na areia, e isso é proposital. A ponta é pública – calúnias, assassinatos de jornalistas, câmeras sendo apreendidas pelos militares e assim por diante –, é uma censura publicamente declarada. Mas esse é o menor componente. Abaixo da ponta, na camada seguinte, estão todas as pessoas que não querem estar na ponta, que se envolvem na autocensura para não acabar lá. Na camada subsequente estão todas as formas de aliciamento econômico ou clientelista que são direcionadas às pessoas para que elas escrevam isso ou aquilo. A próxima camada é da economia pura – sobre o que vale economicamente a pena escrever, mesmo se não incluirmos os fatores econômicos das camadas anteriores da pirâmide. Então vem a camada em que está o preconceito dos leitores, que têm um nível de instrução limitado e que, por um lado, são fáceis de manipular com informações falsas e, por outro, não têm condições de entender verdades sofisticadas. A última camada é da distribuição – algumas pessoas simplesmente não têm acesso a informações em uma determinada língua, por exemplo. Então essa seria a pirâmide da censura…”
O que fazer? “A força de praticamente todas as autoridades modernas provém da violência ou da ameaça de violência. É preciso reconhecer que, com a criptografia, nem toda a violência do mundo poderá resolver uma equação matemática” (p. 80).
A criptografia permitiria criar novos espaços fechados em relação aos Estados, regiões livres das forças repressoras do Estado externo, sendo que a tarefa estatal de perseguir quem usa criptografia nesses lugares fechados demandaria recursos infinitos. Há alguns tipos de criptografia que seriam difíceis até mesmo para a NSA quebrar.
Segundo Assange: “Se todas as informações coletadas sobre o mundo fossem divulgadas ao público, isso poderia reequilibrar a dinâmica de poder e permitir que nós, membros de uma civilização global, tenhamos o poder de decidir nosso próprio destino” (p. 156).