Por José Castello
Rio de Janeiro, novembro de 1974: aos vinte e três anos de idade, apenas começando minha carreira de jornalista, passo secretamente e rascunhar alguns textos de ficção. Exercícios penosos, em que avanço em ritmo vacilante, sem certeza do rumo que desejo seguir.
Há, nesse momento, um livro que não consigo parar de ler: “A paixão segundo G. H.”, de Clarice Lispector. Eu o descobri um dia, ao acaso, na estante de uma irmã. Comecei a leitura sem nenhuma convicção e logo esbarrei em seu espírito acidentado e aflitivo. Insisti. Não pude larga-lo mais.
Tentando unir as duas experiências, envio um dos pequenos textos que acabo de escrever, que não chega a ser mais que uma confissão, para o apartamento de Clarice Lispector, no Leme. Mando junto meu endereço e telefone, na esperança de que ela, um dia, venha a me responder. Os dias passam e desisto de esperar. Volto a G. H.
Véspera do Natal: o telefone toca e uma voz arranhada, grave, se identifica: “Clarrrice Lispectorrr”, diz. Ela entra logo no assunto. “Estou ligando para falar de teu conto”, continua. A voz, antes vacilante, agora se torna mais firme: “Só tenho uma coisa para dizer: você é um homem muito medrrroso”, e os erres desse “medrrroso” até hoje arranham minha memória. O silêncio ensurdecedor que se segue me faz acreditar que Clarice desligou o telefone sem ao menos se despedir. Mas logo sua voz ressurge: “ Você é muito medrrroso. E com medo ninguém consegue escrever.”
Depois, Clarice me deseja Feliz Natal – e sua voz soa distante, indiferente, como a de um comercial na TV. “Para a senhora também”, eu digo, arrastando as palavras, que rangem em minha boca, sem coragem de sair. Há mais um silêncio e volto a pensar que ela desligou. Entrego todo o meu medo ao dizer: ”Alô?” Clarice é lacônica: “Por que diz alô? Ainda estou aqui, e no meio de uma conversa não se diz alô.”
Nada mais temos a nos dizer e ela se despede. O telefonema é rápido, mas deixa em mim sequelas íntimas que ainda hoje, mais de vinte anos depois, não digeri inteiramente. Posso dizer, se for para me lamentar, que ele me paralisou. Posso dizer o contrário: que ele me serviu de acesso a algo que desconhecia. Até hoje não posso escrever – reportagens, cartas pessoais, diários de viagem, ficções, biografias – sem pensar em Clarice Lispector. É como se ela vigiasse às minhas costas, repetindo o aviso: “Com medo ninguém consegue escrever…”
Maio de 1976. Na redação de O Globo, jornal para o qual colaboro, espalha-se a notícia de que Clarice Lispector decidiu nunca mais receber a imprensa. Um motivo suficiente para me encomendarem uma entrevista com a escritora. Jornalistas têm uma atração sem limites por obstáculos, ultrapassar fronteiras. Não é esse o meu temperamento, mas é o que a profissão me obriga a exercitar.
Telefono, constrangido, para Clarice. Uma voz pede que eu espere um momento, mas sou obrigado a enfrentar, mais uma vez, um longo silêncio. Por fim, Clarice atende o telefone. Tendo certeza de que sou um intruso, digo o que quero e aguardo sua recusa. Para minha surpresa Clarice aceita me receber.
Chego ao edifício em que Clarice Lispector mora, na Rua Gustavo Sampaio, no Leme, e me identifico. Ainda tenho a sensação de que sou um invasor. Sentado diante da mesa da portaria, um homem de cabeça branca, aspecto entediado, me pergunta: “Aonde você vai?’’ Indico o apartamento que Clarice me deu por telefone. Ele vacila. Folheia um caderno de capa negra que tem diante de si, vigia-me com a beira dos olhos e nada mais diz.
“Tenho hora marcada”, insisto. “Ela está me esperando.” O porteiro volta a me olhar. Sinto, porém, que seu pensamento está em outro lugar, que ele age para esconder o que pensa. Pigarreia, fecha o caderno e diz: “D. Clarice não está.” E, porque se assusta com meu susto, completa: “Ela acabou de sair. Um imprevisto.”
Decido que não vou desistir. Como se o tempo se quebrasse, todo o caminho que percorri para chegar até ali é repassado em minha memória. Descobrira Clarice por acaso. Atravessara G. H. com dificuldade, sempre prestes a desistir, e acabara encontrando o que não procurava. Agora não seria esse porteiro quem iria me tomar o que já era meu.
Teimo: “Mas ela garantiu que estaria. O senhor não quer insistir?” O homem volta a me envolver com seu cansaço e, abaixando a voz, me diz: “D. Clarice está, mas me pediu para dizer que não está”. Parece realmente aliviado por dizer a verdade.
Peço que ele tente pelo menos uma vez. O porteiro pega o interfone, aperta um botão e depois diz: “ D. Clarice, é aquele rapaz. Ele insiste em subir.” Novo contra-senso: Clarice, sem discutir com o empregado, autoriza minha subida. Penso que quis, talvez, testar minha obstinação.
Ao entrar no elevador, tenho a sensação de que a luz está fraca e imagino algum defeito nas luminárias. O elevador se move numa velocidade incomum, como se a qualquer momento pudesse, esgotado, movimentar-se para o lado e não mais para cima, repetindo um pesadelo que desde criança me assalta. Há um espelho em que me olho: minha imagem parece fluida, o que vejo não se parece com um reflexo, mas uma sombra. Pronto: eu sinto medo.
Fantasias rápidas e desproporcionais me modificam. Clarice poderia chamar a polícia. Poderia se transtornar, me insultar, e aí a imagem da escritora brilhante estaria quebrada; e depois, constrangido, eu seria obrigado a escrever um texto cheio de decepção. Talvez fosse melhor voltar e preservá-la do que estava para acontecer. Mas eu sabia que não. Clarice me levara por um caminho que eu não esperava encontrar, mas agora eu estava ali e a estrada me arrastava; era a estrada que andava e me conduzia, e eu apenas me deixava ir. Ela sabia toda a verdade.
Ainda no elevador, trato de ensaiar as palavras que devo usar para agradecer, mas quando ela abre a porta do apartamento emudeço. Encontro outra vez um grande silêncio, que agora está dentro de mim. Vejo uma mulher de turbante, mal vestida, quase negligente. O batom, escandaloso, não segue bem a linha dos lábios. A pele é branca e adoentada, leitosa, como se estivesse desbotada. É uma mulher alta, ou pelo menos que me olha de cima. Fica parada esperando que eu diga qualquer coisa.
Eu digo: “Temos hora marcada.” Ela responde: “Eu dei ordem ao porteiro para não deixar ninguém subirrr’’, e lá estava a voz do telefone, agora incorporada numa mulher, e arrastando sua cauda de erres. “ Mas já que você subiu…”, ela se corrige, e há novo silêncio, completando assim: “Então entre.” Não é, evidentemente, uma escolha. Ela não quer se aborrecer, não tem forças para brigar, e então me recebe. Entro.
Clarice parece habitar outra esfera, situada além do humano, e estar ali representada apenas por uma máscara. Conduz-me até uma sala abafada, com móveis de uma modernidade duvidosa e um conjunto desorganizado de telas nas paredes. Muitas delas, logo percebo, retratos da escritora assinados por pintores de prestígio. Eu me sinto em um museu e me pergunto se Clarice também é pintora. Ela aponta um sofá e diz: “Então você quer uma entrevista.” Bem, essa é a desculpa.
“Sim, uma entrevista”, eu respondo, certo de que ela começa a entender. Clarice me examina detidamente, tentando achar em mim, talvez, algum sinal de que pode confiar no que digo. Ao se dar por satisfeita, comenta: “Bem, você já está aqui.” Mas logo em seguida me aplica um golpe delicado: “Então você é o autor daquele conto.” O “autor” ali é ela, eu sou apenas um repórter – então essa observação me choca. Ainda assim, envaidecido, respondo que sim. “Sou eu mesmo.” Estou tentando tomar a observação como uma gentileza, quando ela me fulmina: “Não gostei de seu conto. Você é muito medroso para ser escritor.”
Sentamos. Tento me recuperar do golpe voltando simplesmente às minhas perguntas. Tiro, então, da pasta um pequeno gravador com que pretendo registrar a entrevista e, distraído, coloco-o sobre a mesa de centro. Assim que vê o gravador, Clarice começa a gritar. “Ah, ah, ah!” Emite vagidos longos, lamentos despidos de sentido, e só posso entender, entre eles, uma palavra: “Não.” Meus olhos percorrem a sala em busca da ameaça que ela deseja afastar. Não a encontro.
Clarice se levanta e, andando pela sala, querendo fugir mas sem poder encontrar a saída, aumenta o tom de seu lamento. ”Ah, ah, ah!”, ela continua, e eu a olho. Insisto em procurar a origem daquele grito: se a sala está sendo invadida por algum desconhecido, se há algum foco de incêndio, algum sinal de tragédia a que ele possa corresponder. Nada vejo. Clarice continua a rodopiar num balé sem sentido, os braços estirados, em hélice, arrastada por um vento invisível, o rosto aos pedaços. “O que está havendo?”, grito. Ela não pode responder.
Uma mulher, vinda não sei de onde, aparece na sala e a abraça com energia. Um abraço ambíguo, que é ao mesmo tempo um golpe de força, como esses movimentos desonestos com que os boxeadores imobilizam seus adversários. Permanecem abraçadas um longo tempo. Então, mais controlada, Clarice passa a apontar para o gravador. “Tire isso daqui!”, diz ela, finalmente. “Não quero isso aqui!” Estica os braços; suas mãos se torcem, querendo pegar e, ao mesmo tempo, tentando fugir. Seus olhos, mais lindos que nunca, estão mareados de desespero.
“Tire isso imediatamente.” Olho para meu pobre gravador, uma máquina desgastada e precária, e ainda não posso entendê-la. “Isso o quê?”, pergunto. A mulher que a abraça, com voz de enfermeira, responde: “ Minha amiga se refere ao gravador. Guarde-o, por favor.” Faço um movimento em direção a ele, mas Clarice se antecipa e dá uma ordem: “Me passe isso aqui.” Sem pensar, entrego-lhe o gravador. Ela o pega com as pontas dos dedos, cheia de repulsa, e fica parada alguns segundos, controlando a respiração. Depois, vira-se e desaparece no corredor escuro, seguida pela mulher.
Fico sozinho na sala, diante daquelas paredes cheias de quadros, cheias de Clarice que me vigiam, e me pergunto o que é esperado que eu faça. Que vá embora sem me despedir? Que aguarde pacientemente por sua volta? Que as siga? Ainda estou dividido entre essas soluções, todas de aparência inútil, quando Clarice retorna com as mãos vazias. “Agora podemos conversar”, diz ela, em tom mais brando. E completa: “No fim da entrevista, eu lhe dou aquilo de volta.” E poucas vezes ouvi palavras tão monstruosos quanto esse “aquilo”.
Mais tranquila, ela consegue perceber, por fim, que também eu estou chocado. “Tranquei-o em meu armário”, diz, exibindo a chave e um ar vitorioso, que me faz lembrar dos caçadores fotografados ao lado de suas vítimas. E, com a voz burocrática dos porteiros e recepcionistas, completa: ”Não se preocupe. Na saída, eu devolvo.” Mostra-se disposta a conversar.” E agora?”, diz ela, indicando que espera minhas interrogações.
Senta-se. Inseguro, decido começar a conversa por generalidades. Perguntas clássicas, impessoais, que lhe abrissem caminho a qualquer tipo de resposta, meras gentilezas disfarçadas de interrogações.
A entrevista é tensa, cheia de suspeitas e mal-entendidos. Sem poder esquecer de seus gritos, e sem conseguir pensar, eu lhe faço perguntas de iniciante. Clarice tenta demostrar paciência, mas me responde com frases rápidas, de evidente mau humor. A conversa não avança. Sei que minha entrevista fracassou.
“Por que você escreve?”, pergunto, em um de meus piores momentos. Clarice franze o rosto em desagrado. Levanta-se, ameaça ir em direção à cozinha, mas para e reage : “Vou lhe responder com outra pergunta: – Por que você bebe água?” E me encara, com raiva, disposta a encerrar ali mesmo nossa conversa.
“Por que bebo água?”, pergunto, para ganhar tempo. E eu mesmo respondo: “Porque tenho sede.” Melhor seria ficar calado. Então, Clarice ri. Não um riso de alívio, mas de irritação contido. E me diz: “Quer dizer que você bebe água para não morrer.” Agora parece falar apenas consigo mesma: “Pois eu também: escrevo para me manter viva.” E, com um olhar debochado, me passa um copo de Coca-Cola.
Nunca imaginei que pudesse fracassar assim. A entrevista, que mal começava, estava quase no fim, pois o que mais eu poderia perguntar depois disso? Mas cumpro meu papel, pois há um salário a receber. Faço as perguntas adequadas, e ela responde, sempre com certo desdém. Clarice também sabe que a entrevista terminou naquela primeira pergunta desastrosa, o resto é só arremedo. E me suporta até o fim.
Depois, quando penso que está prestes a me enxotar, ela me convida para ir até a cozinha. “Vamos comer um pedaço de bolo”, anuncia. Ela tira da geladeira um bolo confeitado, coberto de merengues e frutas velhas. Parte fatias fartas, que dispõe em pratos baratos. A mesa, de fórmica, não tem pés muito firmes e balança. Ela não toca no bolo, limita-se a beber. “Ultimamente, só consigo tomar Coca-Cola”, diz. E toma dois, três copos duplos, em goles longos.
Já não espero mais nada, quando Clarice diz: “Gosto de você.” Vendo que aquela declaração me surpreende, ela se explica: “Você também sabe que isso tudo é uma tolice.” Não tenho certeza se a palavra foi essa: tolice. Ela quis me dizer que, no fim, o que tínhamos tentado fazer juntos era insignificante. “Você gosta de viver?”, me pergunta. Era uma fase bastante triste de minha vida, mas me sinto obrigado a mentir. Dando leves estocados com garfo, ela esfarela sua fatia de bolo.
Voltamos à sala. Clarice me faz esperar e, logo, volta com meu gravador. Carrega-o com os braços estendidos, como uma sonâmbula, pegando com as pontas dos dedos, como se ele lhe despertasse um grande nojo. Eu o guardo. “Agora sim”, diz. “Não gosto de máquinas.” E me leva até a porta. “Volte para me visitar”, diz, “mas nunca mais traga isso.”
Assim que piso a calçada da Rua Gustavo Sampaio, sinto a pele repuxada, como depois de um choque violento. “Clarice é uma compulsiva, que escreve sempre o mesmo livro”, me disse alguns dias depois um amigo, psicanalista respeitado, com quem comentei minha aventura. “É uma obsessiva, não uma escritora.” Aquilo me choca e eu me afasto desse amigo, que nem era tão próximo assim. Clarice está mais perto de mim.
Primeiro, não posso separar a mulher de um lado – desequilibrada, hipersensível, agressiva – e a obra – genial – de outro. Deve haver algum elo que mantém as duas coisas em estado de conexão. Aquela visita ao apartamento de Clarice me mostrara que os dois lados estavam ligados. Ela escreve para buscar algo. Uma vez, definiu esse algo assim: “O que há atrás de detrás do pensamento.” Usa palavras para tentar chegar além das palavras, para ultrapassá-las. Escreve para destruir as palavras. Por isso não se interessa por sua imagem de escritora.
Recordo que me disse: “Escrevo porque preciso continuar a buscar.” E, o que torna tudo mais complicado, não consegue definir o objeto que busca. É, possivelmente, a antevisão desse objeto sem nome o que a “enlouquece”. Clarice escreve para chegar ao silêncio, maneja palavras para chegar além delas, usa a literatura como usamos um garfo. Assusto – me com o que penso. Jamais imaginei um projeto tão radical.
Tempo depois, por acaso, nos encontramos na rua. Clarice está parada diante de uma vitrine da Avenida Copacabana e parece observar um vestido. Envergonhado, me aproximo. “Como está?”, digo. Ela custa a se voltar. Primeiro, permanece imóvel, como se nada tivesse ouvido, mas logo depois, antes que eu me atreva a repetir o cumprimento, move-se lentamente, como se procurasse a origem de um susto, e diz: “Então é você.” Naquele momento, horrorizado, percebo que a vitrine tem apenas manequins despidos. Mas logo meu horror, tão tolo, se converte numa conclusão: Clarice tem paixão pelo vazio.
Convido-a para um café no balcão de uma confeitaria. Diz que não vai tomar nada, que apenas me acompanhará. “Está muito quente”, comenta. ”Tenho dificuldades com o calor.” Só então percebo que está pálida e que filetes de suor desenham estranhas figuras em sua testa. Pergunto se está se sentido bem. Não me responde. “Voltou a escrever?”, ela me pergunta. Admito que não, e tenho vontade de dizer que seus comentários, em vez de estimular, me paralisam, mas não consigo. “Você continua com medo”, diz, e não sei bem do que está falando. “Não o venceu ainda.”
Já não posso recuar. “De que você acha que eu tenho medo?”, pergunto. “Ora, das palavras é que não é”, diz Clarice, para aumentar minha confusão. Seus olhos se detêm num velho que tomava café do outro lado do balcão. Eu me limito a ficar quieto. “Por que aquele velho é velho?”, ela me pergunta de repente. “Ora, porque deve ter seus setenta anos”, respondo, sempre preso à mania dos fatos, que caracteriza os jornalistas”.
Ela ri pela primeira vez. E me corrige: “Você ainda se preocupa com números. Assim não pode mesmo escrever.” Fico esperando a resposta à pergunta que ela me fez. Acho que não me dará, até que diz: “Aquele velho é velho porque tem medo do que é.” Não sei se foi exatamente isso o que disse, mas era algo assim: o velho tinha medo de ser velho, e, justamente por isso, era velho. Pareceu-me um enigma.
Descemos a Avenida Copacabana. Clarice faz sinal para um táxi e se despede. Volto, intrigado, à vitrine vazia. Ali estão os manequins, com suas poses de elegância, mas sem qualquer elegância. Fios, caixas de papelão, uma vassoura, interruptores, um balde. Olhando o vazio, começo a entender que Clarice vê as coisas pelo avesso. Vê o que há atrás das coisas.
Volto a visita-la três ou quatro vezes. São encontros difíceis, em que ela parece mais interessada em me ouvir do que em falar, e que produzem em mim uma mistura esquisita de vaidade e desespero. Na cozinha, me serve bolo e refrigerante. Faz muitas perguntas, que respondo com precaução. Faz comentários rápidos, com conclusões em suspenso e cheios de novas interrogações. Já não consigo ler Clarice sem que essa voz rascante, cheirando a bolo e Coca-Cola, interfira em minha leitura. Passarei muitos anos sem conseguir tocar em seus livros.
Tempos depois, Clarice adoece gravemente. É internada. As notícias dizem que o câncer se generalizou. Penso em visita-la no Hospital da Lagoa, mas não sei se ela gostará de me receber. Nem sei se pode receber visitas. Ela está certa: tenho muito medo.
Clarice morre. Tomo um ônibus lotado, infestado de baratas, e atravesso o verão do Rio até o Cemitério Israelita, no Caju, para assistir a seu sepultamento. Vou agarrado a um encosto, olhando aqueles seres ovais, achatados como moedas, que se arrastam pelas paredes do ônibus, e penso em G. H., que, um dia, devorou uma barata para provar a vida. Ignorando a tradição judaica, surpreendo-me ao encontrar o caixão lacrado. Clarice não morreu, é o que isso me diz. Seu corpo não está ali, o caixão está vazio. Preparam-se para sepultar apenas uma casca. Com asco, penso que só as baratas têm casca.
Na volta, tentando evocar os momentos frágeis que passamos juntos, recordo-me de uma frase, uma frase terrível, que eu havia esquecido: “Entenda uma coisa: escrever nada tem que ver com literatura”, acho que ela me disse. Mas terá mesmo dito, ou terá sido apenas o que me ficou do que não conseguiu dizer? E como seria isso? Se não era a escrita, o que seria a literatura? Que fenda era essa que Clarice, enchendo-me de coragem, abria sob meus pés?
Julho de 1991. Em um pequeno bar do Leblon, tomo um uísque com o escritor Otto Lara Resende, que me passa preciosas informações para minha biografia de Vinicius de Morais. O poeta nos leva sempre às mulheres, e, entre tantas, chegamos a Clarice Lispector.
Quando pronuncio pela primeira vez o nome de Clarice, Otto respira fundo, como se algo o arrastasse para longe dali e devesse se concentrar muito para não se perder, e depois me diz: “Você deve tomar cuidado com Clarice. Não se trata de literatura, mas de bruxaria.” E sugere que, sempre que vier a ler seus livros, eu me encha de cautela.
A declaração, pronunciada pelo cético Otto, toma uma dimensão grave. Eu a guardo como mais um enigma, um entre tantos que a aproximação com Clarice Lispector já me ofereceu, e que algum dia, quem sabe, chegarei a decifrar. É verdade que, desde muito tempo, Clarice tem sua imagem associada à feitiçaria. No início dos 70, como convidada de honra, chegara a participar de um Congresso Internacional de Bruxaria, realizado em Santa Fé de Bogotá.
Ciente de que o mistério não era seu, mas inerente à literatura, Clarice aceitou o convite, mas se recursara a discursar. Limitara-se a ler “O ovo e a galinha”, um dos textos mais obscuros que já escrevera. Bruxas, magos, feiticeiros a ouviram em silêncio.
Otto foge da conversa sobre Clarice, que parece perturbá-lo. Eu insisto. “Vamos falar de Vinicius”, ele me corrige. Mais à frente, um outro nome de mulher aparece: Claire Varin. Otto se refere a uma canadense de Montreal, professora de literatura, que é autora de dois livros sobre Clarice Lispector. Misterioso, adverte: “Não se trata de uma atração intelectual, mas de uma possessão. Claire está possuída por Clarice”, diz. Passa-me o endereço de Claire, mas enfatiza que devo tomar cuidado. ”São bruxas”, diz, “não se deixe enganar.”
Só posso tomar o comentário de Otto como um exagero. Ele sorri e, ainda misterioso, toma um gole farto do seu uísque. “Pode ser o uísque”, cogito, para me tranquilizar. Mas depois que nos despedimos e tomo um táxi para casa, sinto que a inquietação não passou. Agora são as palavras de Otto que continuam a agir sobre mim. Talvez o bruxo fosse ele.
Curitiba, dezembro de 1995. Recebo pelo correio um exemplar de “Langues de feu” (“Línguas de fogo”), coletânea de ensaios sobre Clarice Lispector recém-lançada por Claire Varin. Otto, antecipando-se, tratou de lhe enviar meu endereço. Não quis deixar que tudo se perdesse numa mesa de bar. Agiu, mais uma vez, como bruxo. Doce bruxo. Nesse meio tempo, em uma livraria do Hotel Rio Palace, em Copacabana, consigo comprar, por acaso, um exemplar de outro livro de Claire, “Clarice Lispector: encontros brasileiros”, editado pela editora Trois, de Quebec. As peças, sem que eu precise agir, se encaixam.
Claire é doutora em Letras. Seus livros, porém, não são obra de especialista, mas de uma apaixonada. Ainda tenho em minha agenda o telefone de Claire Varin em Montreal, que Otto me dera, e que eu jamais chegara usar. Agora é o momento.
Claire me atende efusivamente. Conversamos por mais de uma hora com a intimidade de duas pessoas estranhas, de hemisférios opostos, que no entanto compartem o mesmo segredo. Em certo ponto, querendo me advertir a respeito de nossa paixão em comum, ela pede licença para rememorar uma frase, nada confortável, que Otto lhe dissera: “Tome cuidado com Clarice. Não se trata de literatura, mas de bruxaria.” Exatamente a mesma frase.
A partir dessa sentença, e disposta a decifrar a obra de Clarice, Claire desenvolveu o que chama de “método telepático”. A base é tão simples quanto desnorteante: só é possível ler Clarice Lispector tomando seu lugar – sendo Clarice. “Não há outro caminho”, ela me garante.
Pergunto se tal método pode de fato funcionar. Claire me responde lendo um trecho de uma crônica de Clarice, que está em “A descoberta do mundo”. Vale reproduzi-lo: “O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor.” Clarice já se encarregara de avisar.
Claire Varin se bate ferozmente contra as interpretações racionais da obra de Clarice. Afirma que elas só podem conduzir ao que lhe é estranho, e logo ao fracasso. “O leitor deve se tornar um médium, através do qual Clarice se incorpora”, afirma. “É o único método garantido.” Eis a base do “método telepático” a que se referia antes: um procedimento em que a intuição é mais importante que o entendimento e, por isso, deve desalojá-lo e tomar seu posto.
Depois de desligar o telefone, ainda tento resistir às ideias de Claire Varin. “Parecem roubadas de um tratado de esoterismo”, eu me digo. Tenho vontade de rir, mas é um riso dolorido que me vem. Luto para não aceitar uma explicação que me parece flácida e perigosa. Mas tudo me leva na direção contrária, tudo me faz acreditar em Claire.
Entro em meu quarto e deparo com um exemplar de “Água viva” jogado sobre a cama. Uma cena do passado me volta. Alguns anos antes, em uma entrevista, o roqueiro Cazuza me dissera que “Água viva” era seu livro de cabeceira. Fazia muito tempo que não conseguia dormir sem ler pelo menos alguns parágrafos. Ao fim de cada leitura completa, marcava um X na contracapa. Já tinha lido “Água viva”, ele me garantira cento e onze vezes.
Quantas vezes terá lido ainda antes de morrer, dois ou três anos depois? Jamais saberei. Mas a imagem de Cazuza, belo e rebelde, com seu “Água viva” aberto, jamais me abandonou. Ela parece, agora, materializar as ideias imprecisas de Claire. Um livro não é só um livro. Um livro fechado não é nada, mas se o abrimos, e começamos a ler, passamos a ser parte dele. Livros só existem na cabeça de leitor. Melhor: no coração.
Em “Langues de feu”, Claire cita um trecho de uma carta que Otto enviou, certa vez, a Clarice. Ele confessa: “É engraçado como você me atinge e me enriquece ao mesmo tempo que me faz um certo mal, me faz sentir menos sólido e seguro.” Otto descreve, com precisão, o estado ambíguo em que os leitores de Clarice são lançados. Aqueles que não sintonizam, apalermados, fecham o livro. Só os que entram em harmonia com a escrita de Clarice, os que conseguem oscilar como ela entre a palavra e o susto, podem seguir adiante.
Não são histórias que se leem, e a respeito das quais depois se pode pensar: “Aconteceu isso e depois aquilo.” Não temos nem mesmo a certeza de estar lendo um relato. Em “Água viva”, Clarice leva sua estética do fragmento ao paroxismo, ao escândalo. Difícil dizer o que lemos – e é impressionante pensar que uma outra pessoa, Olga Borelli, sozinha com sua tesoura, “montou” o caos que Clarice anotou em guardanapos, lenços de papel, jornais, bulas de remédio. Quando Clarice não podia mais ordenar o que escrevia, Olga a escoltava. E, sem se intrometer no que lia, tratava de abrir um caminho, uma direção para aquela tempestade escoar.
Olga já relatou isso: Clarice lhe entregou uma pilha de fragmentos, que ela pacientemente dividiu em dezenas de envelopes, e depois foi encaixando-os, como as peças de um puzzle. Sem consciência de que escrevia um livro, Clarice escreveu um livro. Aos leitores é exigida, agora, a mesma liberdade. Liberdade para avançar às cegas e só muito mais tarde descobrir.
Quando se trata de Clarice, os críticos repetem sempre uma palavra: epifania. Termo tomado das religiões, que se refere à aparição ou manifestação do divino. Clarice, porém, não fala em deus, mas no “it” – isto é, a coisa. Os críticos logo se apressaram a confrontá-la com a fenomenologia. Passaram a dizer que Clarice Lispector escrevera “romances filosóficos”. Pode ser uma saída, mas não sei aonde leva. Certamente, a muito longe de Clarice.
Há uma mulher em Paris, Hélène Cixous, que não vacila em afirmar: “Clarice é uma autora filosófica. Ela pensa, e nós não temos o hábito de pensar.” Confronto o comentário de Hélène com o de Claire e fico pensando quantas Clarices cabem numa só mulher. Porque cada um a lê de uma forma particular, cada um é Clarice de uma maneira. Clarice, então, me obriga a encontrar a minha.
Porto Alegre, agosto de 1995: enquanto passeamos pela Rua da Praia, o escritor Caio Fernando Abreu rememora alguns de seus encontros com Clarice Lispector, de quem foi grande amigo. Certo dia, Caio foi a uma noite de autógrafos de Clarice. Ela fez com que ele se sentasse a seu lado, e, enquanto autografava os livros, repetia baixinho: “Você é o meu Quixote, você é o meu Quixote.” Caio, sempre muito magro, usava na época um grande cavanhaque.
Outra vez, caminhando juntos na mesma Rua da Praia, os dois pararam para tomar um café. Clarice, com a agenda cheia de compromissos literários, já estava em Porto Alegre havia quase uma semana. Mexendo seu café, com ar casual, ela se voltou para Caio e perguntou: “Em que cidade estamos mesmo?”
Caio se acostumou logo com a intimidade que Clarice tinha com a imprecisão. Com as pulsações que cercam os fatos, e não os fatos. Com os miasmas, e não com as razões. Leu-a, ininterruptamente, durante anos a fio. Um dia, sentiu-se obrigado a parar. “Se eu não parasse, não conseguiria mais escrever”, afirma. Também o cerrado Caio se sentiu, em dado momento, invadido, por Clarice. Não pela mulher alegante e discreta que tanto admirava, mas por sua literatura.
A tese que Clarice Varin roubou de Clarice parecia, assim, se confirmar: quando um leitor se apaixona por um escritor, o leitor se torna o escritor. A figura magra e sonhadora de Caio fez Clarice pensar no Quixote, de Cervantes. Mas Caio, durante muito tempo, tinha medo de se olhar no espelho e ver Clarice Lispector, o que só serve para atestar o perigo guardado nas imagens.
“Não sei se o que Clarice fez é só literatura”, ele me diz. Não contém o riso ao dizer “literatura”. A palavra parece não se adequar, parece não dizer tudo. “Alguma coisa fica de fora”, me diz. Antes que eu lhe pergunte, completa: “E não sei o que é.”
Teve que se afastar. Chega um momento irremediável em que não há escolha: ou o leitor se afasta do escritor e volta a ser ele mesmo, ou estará perdido. Caio soube perceber o momento e se afastar a tempo. Passou a escrever “contra” Clarice – em luta com a escritora que o invadia. Talvez Clarice estivesse certa: ler é, provavelmente, a maneira mais intensa de escrever.
Paris, setembro de 1996. Chego, como repórter do jornal O Estado de S. Paulo, ao apartamento da escritora Hélène Cixous, que é apontada como a mais importante especialista europeia na obra de Clarice Lispector. Tão longe do Brasil, minha esperança é encontrar alguém que a decifre.
A entrevista exigiu uma negociação difícil, pois Hélène é uma mulher secreta e desconfiada. Para chegar até ela, precisei passar primeiro pelo escritório da líder feminista Antoinette Fouque. Que é também a proprietária das Éditions des Femmes, a editora francesa de Clarice.
Antoinette começou a editar Clarice Lispector em francês em 1978, com G. H., seu livro mais conhecido pelos leitores parisienses. Oito anos antes, a Gallimard tinha lançado a edição francesa de “A maçã no escuro”. “Em 75, Clarice veio a Paris, visitou as Éditions des Femmes, mas eu estava de viagem”, ela se lamenta. Soube que seus assessores se impressionaram muito com a escritora brasileira. Um laço misterioso, porém, que pode ser tomado mais como um impedimento, persistiu. Entre 75 e o ano da morte de Clarice, Antoinette Fouque esteve pelo menos três vezes no Brasil. Tentou sempre se encontrar com ela, mas, por motivos diversos, jamais conseguiu.
Antoinette não gosta que chamem Clarice de bruxa. “ Sinto-a em contato mais intenso com as forças do bem, com as divindades, que com a feitiçaria”, avalia. Para ela, Clarice é genial porque consegue manejar os extremos do humano: o esplendor e a miséria, a grandeza e a perdição, sem deixar nada fora. “Parece que ela não sentia medo”, me diz. Logo a mim.
Chego, por fim, ao apartamento de Hélèna Cixous. Ela, de fato, se mostra cheia de suspeitas. Tem a seu lado uma assessora anônima, que lhe passa documentos, pontua os comentários com informações objetivas e, discretamente, me vigia. Discípula de Jacques Lacan, confidente de Michel Foucault e amiga íntima de Jacques Derrida, Hélène é uma típica intelectual parisiense.
Ela também não conheceu Clarice pessoalmente. Mas, mesmo sem saber o que esperava, desde muito cedo aguardou esse encontro. “Eu me sentia realizada como escritora, mas achava sempre que me faltava uma outra”, diz. Derrida era seu outro masculino. Faltava-lhe o feminino. “Imaginava, no entanto, que jamais iria encontra-lo”, diz.
Lendo a obra da escritora austríaca Ingeborg Bachman (1926-73), chegou a ter a sensação de que a estava encontrando. Mas ainda não se sentia satisfeito. Até que, um dia, conheceu em Paris a cearense Violeta Arraes, irmã do governador Miguel Arraes. Num comentário casual, Violeta lhe disse que a maior escritora brasileira acabara de morrer, no Rio de Janeiro. Chamava-se Clarice Lispector.
Hélène não se interessa pelo feminismo. Interessa-se por filosofia, e é como filósofa, diz, que lê Clarice Lispector. Lendo-a, descobriu que a diferença sexual não existe apenas na anatomia, mas também na escrita. Lamenta que as escritoras, quando escrevem, não consigam fixar essa fronteira entre os dois sexos. “Só a encontrei em Clarice”, me diz.
Hélène passou a fazer seminários em todo o mundo sobre a obra de Clarice Lispector. No Japão, estimulados por ela, cerca de dois mil estudantes se esforçam para aprender o português só para ler Clarice. “Não são mais que dois mil, também, os franceses que a lêem com dedicação”, lamenta. Entende que a obra de Clarice se dissemina em silêncio, pelas sombras, restrita a pequenos grupos, a círculos quase secretos, mas dedicados.
Mesmo sem jamais ter visitado o Brasil, Hélène já conheceu muitos brasileiros apaixonados pela obra de Clarice. Da cantora Maria Bethânia, ganhou, certa vez, um retrato da escritora, que ela mesma lhe dera. Ele ocupa, hoje, um lugar de honra em seu apartamento.
Hélène propõe, então, uma tese sobre o poder de sedução da escrita de Clarice. “A rigor, cada escritor escreve em sua língua particular”, diz. “Eu, por exemplo, escrevo em Cixous. Clarice escreve em Lispector.” Ela destaca, primeiro, as particularidades do português falado no Brasil, que estudou a fundo. “Só em brasileiro se pode escrever uma frase assim: ‘É.’ Nenhuma outra língua tem esse poder de síntese.” Clarice, nascida na Ucrânia, pôde fazer uma escuta distanciada do português. E levou essa síntese à beira do abismo.
“Alguns chegam a dizer que Clarice fez feitiçaria, e não literatura”, eu me arrisco a lembrar. Hélène, primeiro, se recusa a pensar na hipótese que lhe ofereço. “O Brasil é um país muito arcaico”, diz, e eu me sinto um pouco ofendido, mas procuro me controlar. “Mas se a feitiçaria é uma metáfora, posso aceita-la”, reflete depois. E conclui: “Não é feitiçaria, é conhecimento da língua.”
É que, diz Hélène, falamos dia e noite, sem cessar – mas sempre em estado de inconsciência. Não temos noção da língua, de usar uma língua, nem do que se guarda nas palavras. Clarice, ao contrário, tinha a respeito da língua uma espécie de hiperconsciência. Sentia-a todo o tempo, e sabia que em cada palavra toda a língua era posta em jogo.
Saio do apartamento de Hélène carregando uma declaração que me parece quase insuportável: ela afirma, sem vacilar, que Clarice é a maior escritora do Ocidente no século XX e que sua obra só é comparável à de Kafka.
Kafka, o sem-pátria, pode ser uma referência. Nascida na Ucrânia, Clarice veio para o Brasil ainda pequena. Casou-se com um diplomata, pai de seus dois filhos. Terminou de escrever seu segundo livro, “O lustre”, em Nápoles. O terceiro, “A cidade sitiada”, foi escrito em Berna. Muitos contos de “Laços de família” foram escritos em Londres. “A maçã no escuro” foi escrito em Washington, entre 1953 e 54. Clarice foi uma escritora sempre descolada de seu centro, ou melhor, sem centro.
Uma escritora desterrada. Clarice, Hélène me convence, habitava a língua – habitava o Lispector. O Brasil, para onde sua família emigrou vinda do Mar Negro, foi só um acidente em sua biografia. Quando tinha nove anos de idade, perdeu a mãe, e com isso a voz estrangeira, ucraniana, que a habitava. Dizia, mais tarde, que seus longos “rrrr” eram só um efeito da língua presa. Talvez não fosse apenas isso. Mas sua dificuldade com a língua era evidente – a sua grandeza como escritora é, em grande parte, um resultado dessa dificuldade. Só uma pessoa que não se adapta à língua, que a revira, que dela desconfia, pode escrever uma obra como a de Clarice Lispector.
Curitiba, dezembro de 1997. Tomo um ônibus e me sento por acaso ao lado de uma moça magra, de mãos compridas, nariz quebrado e testa pálida, que está imersa na leitura de G. H. Espreito suas reações, pequenos movimentos, muitos sutis, mas que lhe conferem uma dignidade especial. As páginas abertas trazem anotações, garranchos, setas em vermelho. A lombada está torta, e a capa, amassada. O ritmo de leitura é curioso: a moça dá saltos de uma página à seguinte, e de volta à anterior, até avançar mais um pouco e logo voltar mais uma vez. Parece imobilizada pelo que lê. Eu a olho: jovem, os cabelos presos num laço azul, olhos amendoados, sardas salpicadas pelo rosto e uma expressão solene, que poderia ser tomada como afetação, mas que não passa de um susto. Clarice diria que aquela moça é o que lê. Ela é Clarice.