Por Joaquim Ferreira dos Santos
Aí a Marília Gabriela se debruçou como lhe é de estilo sobre a mesa do programa de entrevistas. Era o momento que eu mais temia. De casa, como espectador, já tinha percebido que aquele gestual de Gabi, uma atriz e jornalista da pesada, era a caneta vermelha com que ela sublinha visualmente a cena de maior carga dramática de suas notáveis entrevistas na televisão. Dessa vez eu era o entrevistado.
Tremi discreto, apenas com o cantinho do pâncreas, certo de que câmeras e microfones não alcançariam o deslocamento das minhas placas tectônicas. Lembrei que devia ter mandado Detefon em meu lugar, lembrei que lugar quente é na cama ou então no Bola Preta. Tarde demais. Estava num estúdio congelado em São Paulo. A boca seca, de pavor sincero, me dava a sensação de portar beiçolas tão botocadas quanto as da Angelina Jolie.
“Perdi, perdi”, eu podia ver essa declaração de fracasso passando na minha testa como se fosse um letreiro de notícias em Times Square. Era aquela hora decisiva em que os homens se separam dos meninos. A hora em que a maior entrevistadora da TV mistura pergunta crua com técnica de atriz dramática. Ela se debruça sobre a mesa e anuncia a milhares de espectadores em volta da arena que, olé, chegou a hora de cravar a espada fina no cangote desse touro acuado.
O touro era eu.
Foi aí que Gabi olhou intensamente verde no fundo da menina cansada dos meus óculos castanhos e, antes que eu registrasse o pensamento interior de migo para comigo mesmo – antes que eu me murmurasse “caraca!, como essa mulher é bonita vista assim tão de perto” –, foi aí que Gabi, com aquele texto curto dos grandes mestres das entrevistas, ao mesmo tempo que um fado triste começou a cantar na minha cabeça dizendo que “olhos verdes são traição / são cruéis como punhais” – foi aí que ela me mandou a pergunta de chofre na lata das orelhas:
“Joaquim, como você convive com a solidão?”
Eu sou um jornalista. Apenas um desses sujeitos estressados que passam a vida inteira no bar, com uma peninha hollywoodiana no chapéu, mendigando novidades. Um cara viciado na técnica fria de expor com objetividade, sem envolvimento, os fatos, as cenas e as opiniões passadas com os outros. Sejamos lusitanamente simples. Esse cacoete profissional, sempre de olho no lance externo, no pão-pão-queijo-queijo da existência, faz com que as vaguitudes internas da própria emoção nunca sejam confessadas. Solidão? Eu? Como assim? Além do mais, se o poeta falava do ferro nas montanhas de Minas para explicar o perfil duro de suas sensações sob controle, eu costumo lembrar que uma certa pedreira nos subúrbios da minha infância também deve ter feito seus estragos. “Um coração de pedra”, acusava uma ex-namorada. Boa moça. Eu não diria que estivesse errada.
Gabi esperou. Ali pertinho, no exame rápido de suas pupilas dilatadas pela tensão do jogo, eu senti que Gabi gostaria, e eu só posso lhe ser ainda mais agradecido por tamanha confiança intelectual, de receber como resposta uma crônica ao vivo de cinco mil caracteres sem espaço. Afinal, ela me sabia biógrafo de Antônio Maria, o craque existencialista que definiu a solidão como aquele momento em que o coração, se não está vazio, sobra lugar que não acaba mais.
Maria era um poeta. Escrevia de vez em quando jornalisticamente sobre o que se passava na noite do Rio, seus shows e restaurantes. Mas tornava-se grande mesmo quando expunha as entranhas no papel e sapateava sem pudor, bandeiroso, ninguém lhe amava, ninguém lhe queria, sobre o que lhe machucava a alma. Não por acaso morreu do coração. Não por acaso sua última palavra publicada foi “solidão”. Não por acaso nada disso é o caso deste sujeito que se começou a narrar lá no início, o touro perguntado por Gabi como administrava a sua.
Um cronista de jornal, e tem de haver alguma vantagem ao se entrar num negócio desses, é um fingidor. Pode até inventar uma solidão que não existe, mas tem tempo para a tarefa e ninguém está vendo como ela se constrói na tela do computador. Ganha a vida inventando assunto. O resto do jornal já está impregnado demais de realidade. A crônica é a hora em que o editor encarrega o maluco de descobrir uma pasárgada qualquer, uma maracangalha outrossim, mas tudo, pelo amor de Deus!, bem longe dos hospitais e da violência do Rio. É a hora da Redação e o Leitor respirarem aliviados. O cronista deforma as cenas ao gosto da pena e fica por isso mesmo.
Um programa de entrevistas de TV é justo o contrário. É vida real em estado bruto – embora seja uma indelicadeza, e desde já me desculpo, a aparição de uma palavra dessas numa frase em que ao final vêm o nome e a flor de Marília Gabriela.
Senti o dedo do operador de câmera fechando o foco sobre a solidão da menina dos meus óculos e a necessidade urgente, provocada pela pergunta e pelo show televisivo, de que eu e a tal menina ficássemos com os sentimentos nus. Foi aí que o “perdi, perdi” voltou a passar pelo telão da testa. Eu devia ter pedido um dó maior ao regional do Caçulinha, mais retorno ao técnico de som do estúdio e atacado, dando o crédito a Paulinho da Viola, de “Solidão é lava / que cobre tudo / amargura em minha boca / sorri seus dentes de chumbo”. Diria ao final que é tudo o que sei sobre o assunto. Mas só em espiritismo se tem tanta presença de espírito. Lamentei por antecipação que o ibope vá despencar quando o programa for exibido, mas respondi o que me estava ao alcance, alguma desinteressência tipo “aplaco a solidão fugindo para uma quadra de tênis e exercito o backhand”. Ridículo, mas fazer o quê?
Pode ter sido a pedreira suburbana, timidez, falta de jeito. Desculpe, Gabi, não foi por mal. Um cronista só fica à vontade, e tira a roupa, quando está no jornal.
(Publicada no livro “Em Busca do Borogodó Perdido”)