Por Joaquim Ferreira dos Santos
Deve ter sido porque eu restaurei o velho relógio Omega do meu pai, comprado em 1950, e o relojoeiro me disse para, pelo amor de Deus!, não andar com ele na rua. Deve ter sido por isso, pela insistência camicase em carregar meu pai de novo pelas ruas da cidade, preso no pulso esquerdo, justo agora que começa o agosto da comemoração do dia dos pais.
Deve ter sido por isso, saudade e medo, só pode ter sido, que me veio a lembrança de um tempo em que meu pavor infantil era não o de ladrões na esquina, mas o de morrer de corrente de ar, uma ameaça que rondava as famílias, todas com exemplos de entes queridos mortos numa daquelas lufadas assassinas que entravam pela porta entreaberta e, babau, lá se ia aquela prima bonitinha.
Ninguém morre mais de corrente de ar como no agosto da minha infância. Os meninos hoje também não têm mais espinhela caída, não usam emplastro Sabiá no peito e ninguém lhes aplica mais, goela abaixo, uma colherada maligna de óleo de fígado de bacalhau para aprimorar o desenvolvimento do físico e da memória.
Eu não estou sentindo exatamente saudade de nada disso, mas o pensamento parece uma coisa à-toa e, quem ouviu Lupicínio sabe, como a gente avoa quando começa a pensar. O relógio do meu velho e querido pai, brilhando de novo pós-restauro, foi-me puxando de volta pelo pulso e, de repente, vai entender?!, tudo ficou com um leve gosto achocolatado de Sustincau. Será que tinha?
Hoje, quatro de agosto, é dia do padre. Acabei de ver tamanha bobagem num desses livros de cultura inútil e normalmente não prestaria atenção na abobrinha. Mas, sei lá, deve ter sido por causa do tempo Omega me levando de novo até as sensações da infância e também pela mais completa ausência de sentimento religioso que me permeia a alma herege no momento. Deve ter sido pelo tique-taque dessas emoções disparadas por agosto que, ao ver a palavra padre, imediatamente me veio não o pelo-sinal-da-santa-cruz, mas alguma voz no fundo gritando o “último lá é mulher do padre” – aquele momento decisivo em que saía todo mundo correndo.
O pulso, que agora me pulsa com o mesmo relógio que antes pulsava a autoridade do pai português, sabe que o passado visto assim do alto, e cada vez mais de longe, é um grande mentiroso. O Vigilante Rodoviário devia ser tristíssimo. Uma infância dividida em pêra, uva, maçã, bola ou búlica pode dar a impressão, hoje, de recender apenas a essência do sabonete Cinta-Azul, aquele que carregava uma pedra de água-marinha no bojo de alguns dos seus tabletes.
Mas e a cachumba? O mertiolate? O boletim de notas? A priminha bonitinha te dizendo “não” antes de morrer? A saudade é acrítica e nela tudo comove. Às vezes choramos apenas pela mais sublime e básica das sensações, a de termos sobrevivido às correntes de ar e aos jogos da memória.
Domingo desses, já com o Omega paterno me servindo de bússola, fui parar no Museu do Pontal, em Vargem Grande. Eu poderia narrar alguma coisa sobre a beleza da arte popular nacional exposta ali, esculturas geniais do mestre Vitalino. O que me impressionou mesmo no meio de todos aqueles bonequinhos de barro foi a reprodução de uma cena que já me tinha sumido: a brincadeira de carniça.
Era coisa de menino suburbano. Do mesmo jeito que as meninas não passam mais o anel, não se joga mais carniça. Eu desmentiria se alguém dissesse que a humanidade está desse jeito por ter abandonado a carniça. Era tudo meio estúpido, grosso. Aos quarentões de hoje peço apenas – não vou revelar detalhes, rapazes, ficam entre nós – peço apenas um minuto de silêncio pelos camaradas que se entusiasmaram com o capítulo de molhar a caneta no tinteiro e nunca mais foram os mesmos.
Às vezes eu tenho a impressão que a saudade, por mais água-marinha que se ponha no sabonete dela, não é essa coisa toda que a gente sente e geme “ai como era bom”. Eu estou passeando por ela, orgulhoso do Omega do portuga me dando corda e passando o bastão da existência, com todos os seus compromissos e horas marcadas para entregar a crônica ao editor. Mas não consigo dizer, por mais que o garoto da outra rua me provoque com gritos de “tá com medo tabaréu, tua linha é de carretel”, ninguém vai me ouvir dizer que “aquilo sim”.
A nostalgia é uma velhota sem senso de ridículo. Havia o televizinho, o Jajá da Kibon, a maria-fumaça feita com jornal, o “que time é teu”, os cadernos Continental com o mapa do Brasil na capa e o hino na contra. Na rua, eu ouvia “Marraio, feridô sou rei” e em casa Amália Rodrigues baixava a bola, pré-dark, cantando que “tudo isso existe, tudo isso é triste, tudo isso é fado”. Havia muito mais. O resto, felizmente, vai ficando para muito antes de antes de ontem e eu agradeço, sem dó, sem precisar me confessar ao padre, à corrente de ar que pegou a memória sem camisa e, babau, matou a saudade.
O passado, quanto mais passado fica, costuma parecer restaurado, muito mais bonito, como o relógio que me encanta agora e serve de presente involuntário no dia dos pais. Melhor assim. O Omega veio do tempo em que Waldir Amaral gritava nos jogos de futebol do rádio o bordão testosterona, entre Freud e Nenen Prancha, de “O relóóóóógio maaaaarca”. Ele veio do tempo do “Papai sabe tudo”, a série da TV Tupi. Hoje a televisão vende a imagem do “Papai sabe xongas”. É sempre um sujeito perplexo como o Hommer Simpson.
Não acho ruim, não acho que o pai esteja em baixa porque lhe tiraram a capa de super-homem e a autoridade inquestionável. A família desandou, mas, por favor, o velho não tem culpa dessa. O meu era um personagem austero, como o relógio que deixou de herança. Quase não ria, não abraçava, sempre resguardado nos seus negócios. De noite, os filhos pediam a bênção antes de dormir. Tocava um fado triste na vitrola.
Se não me falha a memória, se o elixir de inhame e o xarope de alcatrão fizeram algum efeito, eram todos assim. O pai-herói entregou o bastão ao pai-moleque e deu a missão por cumprida. O relógio que me vai no pulso é apenas um rito de passagem marcando o tempo presente – e não dói.