Por Ivan Lessa
Estou na bica de mandar uma bala na minha cabeça. Tiro o caderno de capa verde, em espiral, do bolso. Anoto lá: 13.8.06. E a hora em que pousamos no Galeão: 17 e 20. São 28 anos, seis meses e sete dias sem dar o ar de minha graça. Ausência é palavra muito forte para a paisagem vista lá de cima.
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O aeroporto está vazio e, para mim, novinho em folha. Minhas malas são as primeiras a surgirem no carrossel. O Rio não costumava me dar esse tipo de colher de chá. Alfândega, receita, polícia, chamem do que quiserem, mas são todos muito solícitos, embora com a indiferença que afeta os pobres que têm de trabalhar no domingo.
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No carro, a caminho do hotel, vou não reconhecendo nada. O que é um ótimo ou um péssimo sinal. Num certo ponto do trajeto, um fedorzinho familiar. Agora, sim. Mais adiante, lá em cima, um marco: Manguinhos? Igreja da Penha? Tanto faz. Toda minha fé está nas paisagens.
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Estou em plena Linha Vermelha. Pergunto pela Amarela. Há anos leio horrores sobre ambas. Bato no bolso do paletó conferindo passaporte e carteira. Aguardo a pista bloqueada, os meliantes armados saltando da murada e dando início ao saque das 6 da tarde. Pergunto pelos traficantes da favela da Maré, que costumam fechar as pistas para atravessar carregamentos de drogas e armas. Ninguém sabe do que estou falando. Ninguém viu o filme. E as balas perdidas? Parece que no sábado uma ou outra pessoa achou duas ou três, informa um companheiro.
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Não há bala perdida. Apenas desencontros.
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Olha aí, a paisagem continua impondo sua presença diante da equipe adversária: lagoa Rodrigo de Freitas. Quando publicitário, ajudei a vender muito apartamento com linhas mendazes: “Viva uma vida de luxo num recanto tranqüilo da Lagoa”. A mortandade trimestral de peixes ficava pelos arrastões das entrelinhas. Idem os ninhos de gaviões (até na Prudente de Moraes tinha), que atacavam residentes pacatos e, vez por outra, arrancavam seus olhos, como nas histórias de fadas. Continua bonitona a lagoa. Cresceu uns cinco ou seis andares.
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Amo hotel. Não conheço o Rio de hotel decente. As noitadas no — não citarei nomes — não contam. Aqui sou hóspede e não truão. Pelo menos até onde a criadagem (Nossa! Como tem criadagem nesta cidade. Voltarei ao assunto, se encontrar alguém alfabetizado e que conheça taquigrafia) é capaz de sacar ou dizer. Desfaço mala, chuveiro-me, vou para onde sou esperado por amigos.
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Quando me preparava para este pulo, peguei uma folha e comecei a escrever o nome de amigos e amigas que gostaria de rever. Preparava-me para encher ao menos um caderno de bom tamanho. Não chegaram a dez. Dou-me a desculpa de que morreram todos ou foram para Petrópolis ou Brasília. A verdade é que, mesmo morando nesta enorme (então bem menor) cidade, minha vida sempre se passou — a sério, para valer — entre uma dúzia de pessoas e outros tantos quarteirões. O resto era paisagem (ela de novo, sempre ela), pano de fundo, cenário para dar clima. Isso. O Rio era um clima. Ao menos, não me esborracho no lugar-comum do “Rio ser um estado de espírito”. Estado de espírito é agora, com sete mil homicídios anuais, onde antes só tinha Dana de Teffé, Crime do Sacopã, Caso Aída Cury, Fera da Penha e, essa última, sejamos francos, não podia ser mais classe operária. Pobre morria muito pouco e, mesmo em jornal vagabundo, com o mínimo de estardalhaço. Morriam feio, como sempre, mas baixinho. Agora, virou manchete. Pelo menos dura um dia só. Os dois jornais e 1/3 do Rio fazem aquele estardalhaço na primeira página e, dia seguinte, esquecem, não dão seqüência. Deve ser por isso que, até agora, com essa filmarada americana toda, não se conseguiu traduzir “serial killer” para, digamos, “assassino sequencial”.
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Mas eu estava entre os amigos, surpresa para uns, chatice para outros. Sim, estou bastante queimado. Sol de Cascais, no Estoril. Londres não dá para isso. Ninguém diz o que está pensando: “Como estamos acabados, meu Deus!”
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Procuro ser rápido no gatilho, que já o fui. Nada. Não me ocorre uma observação inteligente ou bon mot, conforme dois ou três ainda diziam, quando me mandei. Repito e ouço repetida a frase que nem por isso deixa de ser verdadeira: “Puxa, o tempo passa, hein?” E o coro, “É verdade, é verdade…”
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Na manhã de segunda-feira, maus amigos me levam à Visconde de Pirajá, dão-me refresco de açaí (aqui em Londres o indiano da esquina vende. É engarrafado e comercializado por uma indústria chamada “Monkee”) e, como o dia está bonito e beira os 28° neste inverno, decidem que devo ir à praia. Fazem com que eu compre uma sunga azul grotesca (de lycra, creio) e um par de havaianas, que os brasileiros juram ser invenção deles (não é). Depois de fuçar duas livrarias empostadíssimas, vou mudar de roupa na casa de um deles que, como todo mundo que é gente, mora na Vieira Souto, o metro quadrado mais caro do mundo, conforme gostam de se gabar os brasileiros (não é).
É biboca após biboca na Visconde de Pirajá. Todas aos urros, aos berros. Coisas escritas. Em acrílico, nos toldos. Farmácia, drogaria, butique. Não sabem, mas estão todas liquidando. Papai Noel ficou maluco, é hoje só amanhã não tem mais, salvados do incêndio. Isso, incêndio. Estão todas em plena conflagração comercial e não o sabem.
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De sunga azul de lycra (o pissilone é indispensável) e havaianas, as ilegítimas, vou à praia. Ali por volta da Montenegro e Joana Angélica. Pela primeira vez na vida, acho, sem camisa com maço de cigarro e isqueiro no bolso. Olho para baixo e nada. Estou assexuado. Uma vergonha. Confesso-me ao companheiro e, dando um toque de erudição e humor, conto a história de Hemingway, que um dia cismou de botar roupa de toureiro e ir treinar numa tourada. Olhou para baixo e, tal como eu, neris de pitibiriba — e parece que Papa era bom de pitibiriba. A. E. Hotchener, seu amigo e mais tarde biógrafo, consolou o escritor: “Dominguín usava dois lenços, Hem.” Sem lenço, sem documento, mas nunca um Caetano, vou no meu doce balanço, caminho do mar.
Eu reconheceria esta areia em qualquer praia ou deserto do mundo. Primeiro, a relva tímida em torno dessa novidade dos quiosques. Depois, um ligeiro declive, areia pelando como psoríase, corridinha (ai!) até chegar àquela parte mais fina, varrida por ventos noturnos, onde se formam pequenas telhas, que, ontem, como hoje, dá para se ir arredondando até formar um biscoito com um furo no meio e, então, jogar nos outros meninos. Não faço isso porque tenho medo de apanhar. Por fim, a areia fofa, revirada por maquinário especial todas as noites (e os namorados?), assegura-me o companheiro. Faço-me croquete em dois segundos. Talvez seja a falta de lenços.
Eu reconheceria esta água em qualquer praia do mundo. Deixo-me afundar um pouco, já que o tempo do mergulho se foi, sinto o sal na boca e na narina, conto nas pernas as camadas da água. Uma mais fria até o tornozelo, depois mais morna perto das coxas, mais fria de novo na cintura. Não fico dez minutos na água.
Uma senhora tomou conta de minhas havaianas, as fajutas, e das chaves do companheiro. Um nordestino traz a água de coco com canudinho para a gente tomar. Gozado, eu só passei a apreciar, para valer, água de coco em Londres, onde só tem, quando tem, industrializada.
Cadê as bundudas? Cadê o arrastão?
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De tarde, acertando os fusos horários no hotel, vou ao caderno verde em espiral e hieroglifo uma outra pequena dúvida. Há um problema aqui e pela proa: o que fazer com estes dias? Onde botá-los depois? Foto não me diz nada. Confio tanto em palavra escrita quanto em nossa Constituição. Não tenho mais tempo para esquecer mais coisas.
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Há uma técnica para se deixar o país em que se nasceu, não chega a ser arte. Simples como o quê: seguir em frente e não olhar para trás, feito a mulher de Lot ou Orfeu. É imprescindível não recorrer nem à Bíblia (tem uma na gaveta da cabeceira) nem à poesia. Principalmente poesia. Em prosa, não contam Proust (com exaltado fervor), Fitzgerald, Thomas Wolfe, retratos de Itabira na parede e até o melhor e menos citado, Camões, que, em português de seus dias, e nossos ainda, escreveu, “a grande dor das coisas que passaram”. Via mais com um só olho o grande vate português do que nós com todos três.
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Confiro o frigobar, mexo em todos aqueles vidrinhos no banheiro, apalpo o exagero de toalhas e roupão de velour, abro a sacola de praia com suas recomendações antiassalto e subseqüente morte. Ligo e desligo a televisão. Estão todos tentando falar português e não conseguindo.
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Dizem as moças ancoradas a seus âncoras na televisão: “Pois é, Cláudio…”, “É isso mesmo, Fernandes…” Estão improvisando, dando naturalidade, interagindo, disseram para elas. Sempre e sempre pondo a ênfase na palavra errada, em geral um pronome possessivo. As âncoras começam a entrevistar autoridades como a prostituta — ou prostituto, estava escuro — no Jardim de Alá, “O Senhor quer fazer um amorzinho legal?” “São apenas 50 reais, senhor” Ô Senhor! O gênio da língua pede algo diferente, senhor nunca no fim ou no começo da frase. Isso é dublagem, sô! Um pouco mais de intimidade e é “seu” mesmo. “Seu” Manuel, quer fazer um amorzinho legal por 10 reais?, conforme se pergunta para o dono do armazém.
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Bengalo-me por um ou dois quarteirões da Vieira Souto. O verbo “bengalar” não existe, mas eu uso uma bengala e, como estou no Brasil, passa a existir. Aqui se inventa, aqui se dá asas ao homem, aqui se planta, aqui se dá. Mas eu me bengalava. Pego um táxi. Sugiro uma volta pela praia com voz tristonha de manco (para que não me assalte e mate), mesmo sentado no banco de trás. Peço que vá devagar. De onde dá para se ir, no Arpoador, aquele edifício pó de pedra, que era o único que driblava o gabarito de quatro andares (isso, como tudo mais, nunca ficou claro), até a subida para a Niemeyer, é uma jaula só. Pobres ricos, pobres elites, pobres classes dominantes: tudo vivendo atrás de grades, guardadas por nordestinos incompetentes com calça azul-marinho e camisa branca puídas. Visualizo as classes abastecidas, à noite, uivando em seu cativeiro. Os porteiros fingindo não ouvir, afiando suas peixeiras.
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Teve o muro de Berlim, há a menos divulgada muralha erguida por Israel e a ainda mais invisível Barreira da Orla Marítima Carioca. À noitinha, camionetas (chamam agora de “van”) passam pela Vieira Souto e Delfim Moreira e gritam nomes, para mim cabalísticos, que serão amanhã documentários e filmes premiados com palmas, leões de ouro e oscars: “Cunhataí, Serependi, Nove Cabeças, Xerebendim” e por aí afora. Tem gente, ou quase gente, entrando e indo. Parece que é a outra parte da vida deles. Parecem palestinos com sua trabalheira para — inevitável a construção verbal — irem trabalhar.
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Tenho que ter em mente duas ou três coisas que fazem parte deste meu périplo. Primeiro, que todo suicida volta ao local onde, indigitado e tresloucado, ateou fogo às próprias vestes. Segundo, que tudo que eu escrever poderá ser usado contra mim. Ainda, que aqui não reconheço nada e nada faz questão de me reconhecer ou conhecer.
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Qualquer pessoa com seus quarenta anos, não tem nada a ver comigo, nada terá a ver comigo, nestes dez rápidos dias. Quem tinha doze anos, ou por aí, quando peguei a Avenida Brasil e segui para o Galeão, é de uma nacionalidade outra, beira o alienígena. Meu negócio são cabelos brancos.
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Deve ser por isso que paro e olho para trás, ou para o outro lado da rua, quando vejo alguém de cabelos brancos. Digo alto, sozinho ou para quem quiser me ouvir:
— Eu conheço esse cara.
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Sempre no táxi, anoto algumas frases para logo mais no caderninho verde em espiral. Não há, neste passeio, esquina ou canto em que eu não tenha sido brutalmente infeliz ou estupidamente feliz. Em algum lugar alguém deve ter escrito que uma cidade é aquilo que dela se resolveu ver ou lembrar. Também que não é que a gente se lembre da cidade, é uma parte misteriosa e calada da cidade que se lembra da gente, mas finge que não, que não é com ela, que não sabe nada de nós.
E eu que tinha jurado para mim mesmo e meus patrocinadores que não tentaria em linha nenhuma ser “interessante”. Perdão, patrocinadores. Perdão, chofer de táxi. Por penitência, resolvo citar, atravessando o sinal verde do lugar-comum, uns versos do Borges: “Y la ciudad, ahora, es como un plano de mis humillaciones y fracasos.” E cuidado que ainda vem Jorgito por aí.
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Eu: “Casa da Feijoada”, “Delícia Tropical”. Tá certo. São nomes nossos, são nossos nomes. Agora, que frescura é essa de “Doncaster, “Nero´s Palace”, “Desir d’Argent”?
Chofer de táxi: O senhor é um nacionalista, estou certo?
Eu: (com medo de muita intimidade) Mais ou menos. Depende da nação.
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Na praia, para um moleque, pegando uma água de coco num quiosque, talvez minha 34ª em três dias:
Eu: Ei, garoto!
Garoto: Quequiqué?
Eu: Você é de assalto ou de drogas?
Garoto: Os dois.
Eu: (fechado em copas) Faz muito bem, meu filho. — E me mando.
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Essas minhas duas conversações mais interessantes em dez dias. Teve também uma apenas telefônica com a Clementina, empregada (gozado essa palavra me insulta um pouco) do Jaguar. O papo foi pessoal demais e não estou autorizado a reproduzi-lo sob qualquer forma.
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Gozado. A gente vê aquele Cristãozão lá no morro, o mar, as ilhas, o verde todo e, mentalmente, como um elevador, vamos fazendo uma musiquinha enlatada interna. Em geral, “Aquarela do Brasil”, “Onde o Céu Azul é Mais Azul”, “Corcovado”, “Garota de Ipanema”, “Rio de Janeiro”, “Valsa de uma Cidade”, por aí. Para ser franco, nada descreve melhor o Rio do que — quem diria? — o Aloysio de Oliveira, com música do Tom. “Inútil Paisagem”. Confiram:
Mas pra quê
Pra que tanto céu
Pra que tanto mar
Pra quê
De que serve esta onda que quebra
E o vento da tarde
De que serve a tarde
Inútil paisagem
Estou certo ou não estou certo? Certíssimo, claro, tira a paisagem e sobra aquilo que a gente — que vocês — sabem. De cartão-postal, plano geral e bandeja feita com asa de borboleta, não vale. Assim até Brixton, aqui em Londres, é páreo.
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E o tédio de tudo que passou, a chatice do passado? Essa não ocorreu a nosso querido Marcel, que, mais uma vez, dormiu demais, acordou quando já era noitinha. O passado é meio ridículo. Feito aqueles filmes mudos, granulados, coberto de riscos. As pessoas andando pra cima e pra baixo em passo acelerado, os homens de bigodinho, tirando e pondo o chapéu, olhando para a câmera, dizendo coisas ininteligíveis. Tudo pronto para cair de bunda no chão.
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Muita força para achar graça no que me cerca. Eu fui, olhei para trás e me transformei numa “estáltua” (como dizem os teleatores) de paçoca. Agora chove, venta, troveja e tanto meu projeto “Aquarius” quanto o do maestro Isaac Karabtchevsky foram para as picas. Desmilinguo-me no ar condicionado do quarto de hotel diante das Cagarras, nós dois, que nos vimos tanto e até hoje não nos cumprimentamos.
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Cumprimento, subindo a Niemeyer, em perigoso passeio noturno, o portão da casa de Elis, quando ela estava casada com Ronaldo Bôscoli e, aos domingos, expulsava da casa, aos berros, quem estivesse puxando um fumuzinho legal, conforme se dizia. Como subiu gente! E continuamos a subidinha cautelosa.
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De noite, na Vieira Souto, esperando um amigo, sempre de carro e com ar condicionado (ninguém sente calor. Sente-se é assalto) ouço um baita ruído, meio trovão contido, em nada familiar. Logo me dou conta: foi o Vidigal que avançou mais dez centímetros.
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No boteco, pela segunda vez, para as empadinhas. Só então me dou conta, fora buteco mesmo, daqueles com U, balcão para a cachaça, duas mesas de mármore barato e havia, pregado na parede, um telefone. Queria ter um pastel de ar por telefonema dado depois de meia-noite para uma jovem senhora que morava nas cercanias. Seu telefone tinha 8, tinha, 9 e tinha 0, que essas coisas, esses números a gente não esquece nunca, nunca, nunca. Era briga feia após briga feia, as pazes — não chamemos aquilo de pazes — feitas de madrugada. Às vezes, eu muito alto, não tinha peito para falar. Ela dizia para que eu viesse, que ela abria a porta da portaria. Eu caminhava o quarteirão e meio até a entradinha do pequeno edifício onde ela já me esperava. Só dei pela coisa de volta a Londres. Tenho um frio na barriga e uma porção de lugares-comuns pelo corpo de nosso cancioneiro e cheguei a botar na vitrola Elizeth cantando “Que é Que Vamos Dizer”, do Marino Pinto, que eu pedia para meu compadre, Mister Eco, botar mil vezes seguidas no som, para escarafunchar mais a coisa. Nem dá para chamar de ferida. Na época, com aquela idade, menos de trinta anos, devia ser bom. A uma certa altura, eu não tinha mais como distinguir a diferença. Borges ataca de madrugada e eu o parafraseio: numa certa faixa de disco, será sempre 1963.
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Domingo no Centro. Tudo fechado. Ninguém nas ruas. Meus cicerones não são daqui, não manjam porra nenhuma do Centro. Querem me mostrar a Colombo. Expliquei que está fechada, como o resto. Fomos assim mesmo. Nada mais desolado no mundo. Eu ia dizer que estava saigonizada a cidade, mas Saigon, pomba, se estourou toda, mas saiu vitoriosa de não pouca bosta. Vamos errando caminho por caminho. Pude constatar mais uma vez a destruição do Palácio Monroe pelo Geisel, que parece agora que é “Sacerdote” ou “Feiticeiro”. Bobagem da turma. Chama tudo de “Açougueiro” e “Carniceiro” e façamos as pazes com a realidade.
Apesar de eu explicar direitinho onde fica a Gonçalves Dias, estamos na Praça Tiradentes e eu posso apontar curiosidades, o Recreio, o João Caetano, falar do Baile das Atrizes. Também passamos por Senhor dos Passos, sem restaurante árabe, e, bobeássemos, iríamos até a Aldeia Campista, Gamboa, por aí. Ninguém na rua. Estacionamos na Rio Branco onde deveria estar aquela galeria que eu não me lembro o nome. Na esquina de Ouvidor, um nordestino — sempre, sempre os nordestinos — com uma camiseta escrita “Fuck you!”, armado apenas de iPod, revela que a Colombo é aquele toldo azul lá embaixo. Muito chique, aliás.
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Ligo para a primeira namorada. Está divorciada. Combinamos nos ver. Em Cascais, achei fotos nossas tiradas em 1951. Sorridentes no Posto Seis, crentes que tudo ia acabar bem. De certa maneira, estávamos certos. Acabou e aqui estou eu, aqui estás tu, eu Joujou, tu Balangandãs.Tirei cópia de todas fotos e trouxe num envelope pardo. Passados 55 anos, falamos calmamente um com o outro, sem sentimentalismos, sem aflições. Somos a coisa mais natural desse mundo, só que 55 anos mais velhos. Marcamos encontro no bar do hotel, meio da tarde. Tomamos refresco de morango. Eu, dois, para não perder a fama de exageradão. Falamos de coisas normais, gentes normais. Nada mais nos espanta. Nenhuma hora da saudade. Apenas o inegável prazer de nos vermos. Por menos de hora e meia. Ocorre-me um dado fantástico. Digo para ela nos imaginar, em 1951, falando sobre os acontecimentos passados há 55 anos, lá por volta de 1897. Estaríamos então discutindo Canudos e a morte ainda recente de Antônio Conselheiro. É a única maneira de se contar o tempo, de se usar um calendário de verdade. Ir à história para valer.
Rimos do susto.
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Por sobre as nossas cabeças brancas, duas fadinhas, feito aquela do Peter Pan, a Sininho, jogam peteca na beira da água do Posto Seis. Riem, em seus maiôs de duas peças, e aumentam a velocidade do ritmo do jogo, que é disputado com aquela peteca formada de várias camadas de borracha redonda, com algumas penas amarelas em cima. E nos despedimos, os quatro. A gente se vê. Afinal, eu tenho em casa os discos de Jacob do Bandolim, Jorge Veiga e tudo que pude de Sílvio Caldas. “Todo mundo chorou de saudade, todo mundo menos eu.” Ah, sim, a gente se vê. Se vê.
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Mataram, no meio da semana, um rapaz português em frente a um hotel que agora fica onde era o Cine Rian, que é Nair ao contrário. O rapaz levou a sacola do hotel anunciando-se turista. Levou uma peixeira no estômago. Deu um dia no jornal. No outro, sumiu. Feito sumiu o assalto e a morte de um procurador na avenida Brasil, uma ou duas semanas antes. Ambos não viveram mais que o tempo de uma manhã. Feito as rosas de um poema
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Tiro uma tarde para render homenagem às nossas estátuas. Começo no Leblon, com Zózimo Barroso do Amaral, o paletó pendurado em dois dedos de uma das duas (ou seriam três?) mãos. Um livro do lado simboliza a eternidade de seu pensamento e sua obra. Em seguida, passo por Drummond, na beira da praia, de costas para o mar. Deveriam é ter botado (ou colocado, conforme enfiam agora) na fila do ônibus da Francisco Sá, esquina de Conselheiro Lafayette, bem depois da cabrochinha que ia para a Central. O poeta com a expressão concentrada de quem já começou a bolar as candentes entrelinhas de sua coluna no JB condenando algumas das arbitrariedades (ao menos contra livro, pô!) do regime militar. Depois passamos pelo Ibrahim, agora de ouro, em praça própria, na semi-rotunda de quem vai entrar no Copacabana Palace. Ainda é perigoso fazer qualquer brincadeira com o Turco. Mesmo a salvo, em Londres, enfio o galho. A de Ary Barroso, a pessoa que dirige o carro se nega a me levar. Perigoso demais. Morei 100 metros adiante, na Ribeiro da Costa, quando eu é que era perigoso. Mas a melhor estátua, a que vai para o trono, a que ganha o troféu “Fernando Pessoa na Brasileira em Lisboa”, é a do Braguinha, o João de Barro, ainda vivo, compositor de milhares de sambas e marchas inesquecíveis, tais como “A Mulher do Fu Manchu”,”A Serpente do Faquir” e “Bandeira de Minha Terra”, todas três em parceria com Alberto Ribeiro.
Não entendo é por que não botam todos eles a cavalo. Afinal, estátua eqüestre é muito mais respeitada. Vejam só a do Marechal Deodoro.
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Mais uma vez, antes de me mandar, peço para ver os edifícios de nossa orla marítima. Quero guardar na retina e nos ouvidos o doudo vernáculo arquitetônico, por trás das grades, deblaterando em suas jaulas, falando em línguas. O preciso equivalente à menina do Exorcista, quando tomada pelo demônio Pazuzu. Edifícios que dão uma volta de 360º na cabeça, viram os olhos para dentro, ficam verdes, e vomitam na cara dos turistas. Alguém tem de ir e preparar um “coffee-table book” com eles. Sem esquecer daquele cara do Bar 20.
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Lá vão eles de novo pela Avenida Atlântica. Os vinte macaquinhos daquele episódio de “Os Simpsons”. Na vida real, são iguaizinhos aos retratados pelo Matt Groening. Os tambores de gasolina jamaicanos, sempre presentes, reforçam ainda mais a realidade dos fatos.
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Tardinha e vou encontrar, na velha Taberna Atlântica, o amigo que não vejo há sessenta anos. Tarde também para nós, velhos também. Passamos a nos falar apenas de alguns anos para cá. Email. Troca daqueles pequenos filmes, graças, gracinhas e graçoilas informáticas. Ele trouxe as fotos oficiais do colégio para os anos de 1944 a 1946. Lá estamos os dois, no meio de uma porção de outros meninos, nas três fotos dos três anos em que estávamos na mesma classe. No lusco-fusco (ô alegria de enfim usar a palavra de dois barris!), ele me aponta quem é quem e o que anda fazendo ou parou inteiramente de fazer. São os famosos dois dedos de prosa: o sinal da vitória dado na direção geral do tempo. Aqui estamos, ó Tempo, eu tomando a água de coco que ele teve a gentileza de ir pegar, logo em frente; ele pronto para entregar, de cor e salteado, a ficha técnica de toda uma leva dos anos 40. E você aí, Tempo, gaguejando a mesma coisa dia após dia.
Em sessenta anos, não trocamos tantas palavras quanto nos quarenta minutos em que estivemos juntos. O papo continuará por outros caminhos — cibernéticos, claro. A vitória sobre o Tempo — tome lá mais uma maiúscula, paspalhão! — é nossa e foi de lavagem.
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Fui prudente e não perguntei “Então, o que é que há de novo?”
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No quarto do hotel, o rapaz (do norte, ora se!) veio me deixar o bombom que, de certo por recato, deixa na mesa de cabeceira e não pousado no travesseiro. Como em outras oportunidades, despede-se com “um abraço, ‘seu’ Ivan”. Gosto da intimidade, prezo o “seu” em vez de “senhor”.
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Vou até a janela pegar os 180º de Arpoador a Leblon e ver se o Vidigal, aquele cágado gigantesco sofrendo dos efeitos da explosão atômica, como nos péssimos filmes de ficção científica, cresceu mais uns centímetros de ontem para hoje. Uns metros, seria o ideal. Lá estão as vans e suas falas cabalísticas. Nenhum ônibus da Favelastur. Não são bestas de fazerem excursão à noite. Só entre nove e duas da tarde. Um pouco mais à direita, a tenda branca que me confundiu há uns dias. Tinha uma bandeira do Brasil, que essas estão em toda parte, e uma da Itália. Perguntei ao companheiro se era jogo de vôlei ou sofríamos a visita de algum alto dignatário italiano, inaugurando novo restaurante metido a besta nas cercanias. O companheiro explicou que não era nada disso. Apenas uma forma que os hotéis da orla encontraram para não se chatearem com as prostitutas. Os encontros amorosos são marcados na tal tenda e a bandeira indica a nacionalidade, e, conseqüentemente, a língua, do freguês em potencial. Um “fucktur” paradão, por assim dizer. A bandeira da Itália tremula muito nas areias de Ipanema. Buona gente. Espero que não fajutem tanto quanto nos restaurantes arrogantes que melhor presença fariam na New Jersey de Os Sopranos.
E que paguem o que é justo a nossas jovens que se fazem passar por “demaiores”, fazendo-as assim um pouquinho mais felizes do que diante de, digamos, um ravióli de pato, ou um misto quente travestido de tramezzino.
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Dezessete amigos, nove ex-namoradas, 146 conhecidos, 48 parentes, 329 botecos, 112 restaurantes, 18 cinemas, e paro por aí, deprimido, fazendo a lista de perdidos, nestas quase três décadas. Preciso de um Lexotan. Preciso de muito Lexotan. Não vejo outra coisa a não ser gente, de minha intimidade ou não, tomando Lexotan. Isso me lembra o Zagallo e aquele campeonato do mundo, perdido também. Não sei se Zagallo entra na lista ou não. Amanhã pergunto a alguém, que, como é costume nosso, prazeroso me dará a notícia, caso calhe de ser infausta.
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Zapeio. Dei a sorte de pegar temporada de eleições. Vans de verde e amarelo nas ruas quase atropelando os macaquinhos dos Simpsons. Na televisão, tem o horário gratuito de campanha eleitoral. Surgem na tela, uns por um tempinho, outros por um tempão, uns homenzinhos estranhos, todos com sotaque nordestino, dizendo de forma enfática coisas incompreensíveis. Fosse na rua, daria uma gorjeta pra todo mundo e pediria que saíssem de minha frente. Parece que há um sistema aleatório de partidos. Siglas todas, ou quase todas, começando com P. Detenho-me num comercial filmado no antiqüíssimo cacoete do cinema verité. Trata-se de um homem, suponho que seja o candidato, num cenário paupérrimo, sendo argüido judicialmente. Esse pelo menos o que bolaram em matéria de “cenário” (roteiro, guión), conforme agora cismaram de escrever, dizer, chamar. São perguntas idiotas, sem pé nem cabeça, respondidas pelo, quero crer, futuro deputado, senador ou governador, que une sobriedade à sua inegável objetividade. No encerramento do comercial eleitoral gratuito, o candidato é mostrado como se flagrado às escondidas, conversando com um, suponho, cabo ou sargento eleitoral. “Então, como é que foi, Marcola?” E o futuro eleito, sem titubear: “Foi ridículo.” Tinha toda razão. Fora mesmo. Seu partido, se é que consigo decifrar direito o que garatugei aqui num recibo do “Bob’s”, é o PCC. Pena. Deve ser comunista.
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Eu falei em recibo do “Bob’s”. É mesmo, está aqui do meu lado olhando para mim. Este o cartão-postal que resolvi trazer comigo. Lá está, “Venbo comércio de Alimentos Ltda, rua Visconde de Pirajá, 463, loja a, Ipanema. 1 milk shake ovo, R$ 5.80.” Não, não é de ovo. É de Ovomaltine. Tomei uns quatro ou cinco na temporada. Justifica — e como! — o slogan da Venbo: Gostoso como eu gosto. Pena a decadência das instalações. Era todo de metal reluzente, gente muito limpinha e bem treinada servindo. Agora… Bem, deixa pra lá.
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Na banca de jornais, depois de mais um milk shake, este tamanho grande. Como temos jornais e revistas e nada, nada para se ler. Isso é que é vida. Sobrar tempo para os livros que vão empilhando em casa, hein? Jornal carioca eu adoro. Pego de manhã, na entrada do refeitório (é isso?) do breakfast (esse é isso) no hotel e rigorosamente estão lidos em cinco minutos os dois e 1/3. Nem dá para sujar as mãos. Até outro dia, eles melhoravam muito quando catados na Net. Agora foram e “melhoraram”. Você é obrigado a ler aqueles classificados todos, tudo quanto é anúncio de loja de eletrodomésticos e loções para bronzear — hmmmm — a pele.
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O refeitório do breakfast. Bem cedinho, umas sete da manhã. Lá estão, naquele uniforme esportivo, dois ou três soldadinhos americanos com tema de camuflagem tropical. No peito, em cima do bolso direito, “US Army” e uma bandeirinha. Na Comunidade Européia daria, não digo casus belli, mas, ao menos, um papo entusiasmado, interessante, entre certos segmentos da população e os defensores e distribuidores e atacantes do nobre jogo democrático.
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Na banca, eu acabo comprando é paçoquinha e mariola, que um companheiro paulista insiste em chamar de “bananinha”. Eu e o jornaleiro rimos muito. Pobres paulistas, bem que merecem aqueles baianos todos. Baiano é como eles chamam os nordestinos.
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A via dos corredores perto dos quiosques. Devem estar ficando fortes e saudáveis, formosos é que não. Não mesmo. Aprendem ainda a esquecer, a deixar para lá. Deve ser bom estar fechado naquele corpo, suando e ofegando. Depois vem um idiota, escreve que somos hedonistas e tem todo mundo que ficar rebolando por aí, digitalizado, diante dessas câmeras. Anda-se na rua e, acima da zoeira dos toldos, luminosos ou não, lá estão: centro de malhação após centro de malhação. Malhai-vos, cariocas suleiros, malhai-vos, antes que venha o derradeiro arrastão para a última malhação.
Mas isso só pode ser mágoa de um caboclo que, como eu, tem de ir com bengalinha até a esquina.
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Final de temporada. Dez dias é um pouco por sobre o demais, feito se dizia. Mesmo protegido por excelente hotel e ainda melhores amigos. Todos preocupados em servir bem ao velhinho, nesta cidade de moços. Eu não consegui encaixar, em papo ou texto, uma única observação digna de nota ou nota digna de observação. Um presente enorme assalta — deve ser o tal do arrastão — o passado, todo retalhado em postas fedidas (faisandés, digamos), com que vivo em Londres, satisfeito que tenha acabado e que, a cada dia, vou aprimorando mais, ajudado por velhos filmes, velhas revistas, velhas fotos, velhos livros. Um velho se cercando de velharias para atravessar o dia, a semana, o mês, e, com sorte, o ano. O presente me assalta e me leva todos os documentos. Tudo cópia fotostática, que o original deixei em Londres, que eu não sou besta.
Faz sentido? Não vem ao caso. O que interessa é que passei, de algum tempo para cá, a me entender comigo mesmo, que é o que importa. Eu manjo de perder cidades. De estalo, seria capaz de citar três ou quatro. Mas isso é muito pessoal e as gentes com a papelada em ordem para passar pela minha aduana são poucas. Mesmo se levarmos em conta que eu sou o único brasileiro, vivo ou morto, que não sabe batucar em caixa de fósforos ou coisa alguma.
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Copacabana, Ipanema, Leblon, Centro, zonas Leste e Oeste, o que quiserem. Curtam o pôr-do-sol, recortem o Corcovado e os Dois Irmãos e botem à venda no eBay. Virá gente. Muita gente. Mas uma vezinha só, ao contrário de Naomi Cambell, que, como se sabe, nasceu e continua assombrando o pobre do bairro de Catumbi. Aqui, no Rio, como poderia escrever o poeta sobre Macau, nada de interessante ou sério aconteceu ou acontecerá.
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De que eu mais gostei, além da imensa alegria de rever amigos? Daqueles guetos que eu continuarei a conhecer de propaganda, cinematográfica ou televisiva, pois é isso que fazem deles. Desses imensos campos que por pouco escapam do horrendo apodo de serem chamados “de concentração” ou “de extermínio”. São assentamentos ou colonatos, bantustões, a que dão o pitoresco nome de “comunidades” ou o sentimental “favelas”.
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Trepada num balde, diante do carro parado diante do sinal (uma gentileza, já que as autoridades recomendam não respeitá-los), uma menina tenta equilibrar três bolas amarelas de tênis, enquanto um — comparsa? — pendura no espelho retrovisor um saco de balas pobres que nunca, nunca será vendido.
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Passam de novo os macaquinhos dos Simpsons, enquanto um moleque taludo faz xixi no meio da rua, diante de todos, mexendo assim com o equilíbrio do meio ambiente mundial, ajudando no cavar o abismo da desigualdade social reinante no país. Essa turma dos Simpsons é tudo uma canalha só!
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Sabe-se que a noção de indivíduo nasceu com a Renascença. Quando nasceu, ou nascerá, o carioca? Ou o brasileiro? Quem fez a caricatura maldosa? Millôr ou Jaguar?
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O ar do Rio tem uma luminosidade que, em nele se procurando tocar, sente-se uma mistura do recato da ostra diante da gota de limão ou de virgem, com falsa modéstia, frente a frente ao marzapo ebúrneo. (Também dá uma tosse danada em quem sofre de enfisema. Nisso que dá tentar fazer literatura barata.)
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Um cidadão, numa mesa de bar, eu tomando um caldo de feijão, me falou da lúcida e violenta alegria sexual de se abrir um rombo com chumbo na cara de alguém e depois ir revirar os bolsos do presunto para roubar suas coisas, enquanto, do lado, a meninada joga bola de gude. É, ele usou as palavras “alegria sexual”.
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A sisudez estúpida do futuro. A imbecilidade enfadonha do presente. Bom mesmo é o passado, com o qual a gente pode bulir, mexer, atirar a língua, depois sair correndo e, do outro lado da rua, gritar “Fiau!”. Mas há um preço enorme a ser pago e não aceitam cartão de crédito.
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Seguinte: para cada naipe de passado guardado, há uns dez ou doze de presente tentando cobrir. Para cada sorvete do Moraes, há um milk shake de Ovomaltine se interpondo. Para cada porteiro do cine Ipanema que fechou, há uma moça na portaria do hotel perita em ligar laptop (“Temos nomes iguais. Eu sou Ivana. Meu pai era Ivan também.”). E assim por diante. Dez dias não dão para apagar. Da mesma maneira com que lutei durante o mesmo tempo com as luzinhas vermelhas do telefone do hotel, sempre apagando e acendendo, sempre eu derrubando tudo pelo quarto, sempre tendo que chamar o arrumador, o mesmo que, logo no segundo dia, perguntou se podia aspirar, e eu — o grande brincalhão! — disse que “só se for com o aspirador.” Deve ser por isso que me desejava um abraço cada vez que me via. Essas coisas fazem uma algazarra temporal dos diabos na cuca.
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Aí entra a bala na cabeça que mencionei há — quanto tempo foi mesmo? Ela passou dez dias escavocando e escarafunchando aquilo lá. Espalhando miolo e fibras nervosas pela aura do córtex cerebral, os segredos do lugar onde o hipocampo seleciona novas sensações a serem comparadas às antigas. Neurotransmissões se calaram com os estalos dos fogos de artifício sinápticos. A bala foi detonada no Galeão e fez seu percurso de dez dias a 700 km/h.
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Eu quase que não senti. Agora é tentar me recuperar, e a algumas coisas, e botar tudo em seus devidos lugares. Só um troço: que coisas? Que devidos lugares?
(publicado na revista Piauí, em 1º de outubro de 2006)