Por Luiz Rebinski
O escritor Deonísio da Silva vem há décadas acompanhando a produção de Dalton Trevisan e Rubem Fonseca. Sobre o autor de O Vampiro de Curitiba escreveu um trabalho acadêmico, ainda nos anos 1970, quando era estudante de Letras. Rubem Fonseca também é caso antigo. Deonísio pesquisa a obra do autor desde 1972 e, em 1996, escreveu “Consagrado e proibido”, em que esmiúça a produção de Fonseca. Nesta entrevista, realizada em maio de 2015 para a Biblioteca Pública do Paraná, o também contista Deonísio da Silva fala sobre as semelhanças e diferenças das obras de Rubem Fonseca e Dalton Trevisan. Dois autores que, na sua opinião, mereceriam o Nobel de Literatura
Dalton Trevisan e Rubem Fonseca completam 90 anos este ano (Fonseca já fez aniversário, Dalton faz em junho). Ambos com mais de meio século dedicado à escrita. Qual o lugar desses dois autores em nossa tradição literária?
Eles estão consolidados no cânone literário, ainda em vida, o que é raro entre escritores. Filiam-se ao lado de outros grandes, como Machado, Adelino Magalhães, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Benito Barreto. Todos os citados mereceram ou merecem o Prêmio Nobel. Não ganharam porque o português é a um só tempo “esplendor e sepultura” e um dialeto na Galáxia Gutenberg. Mas Tolstói, Proust, Kafka, Joyce, Ibsen e Borges também não ganharam. Melhor ficar na companhia destes! Rubem Fonseca, aliás, incluiu o conto “Onze de maio” no livro O Cobrador (1979), em que dá umas dicas sutis do que achava ao ter passado dos 50 anos. Como sempre digo a ele, é o escritor brasileiro mais entrevistado do mundo. Por si mesmo, em seus livros.
Você tem um trabalho acadêmico sobre Dalton Trevisan, escrito ainda nos anos 1970. Em que aspecto da obra de Dalton Trevisan seu trabalho se atém?
Rapaz, tudo o que você faz, se faz no Paraná, é mais difícil de fazer. O estado é um sino de lata. Não é só o caso de Dalton Trevisan, que faz uma das melhores literaturas do mundo. É uma plêiade de nomes de valor extraordinário, que enfrentam barreiras que não existem em outros lugares. O Estado sofre de uma indiferença literária inusitada. Dalton inovou muito nas artes e nas técnicas de suas narrativas curtas. Inspirado em modernos como Tchekhov, caracterizado por uma narração concisa sobre o desentendimento entre homens e mulheres, quase sempre triturados por pesadas engrenagens sociais e psicológicas, ele seguiu em O Vampiro de Curitiba uma referência solar da literatura universal, que sempre se fixa num tema, num personagem e numa localidade. De uma obra literária de qualidade, você lembra os personagens referenciais. Meu trabalho chamou-se “O vampiro de Curitiba: articulação de um modelo” e foi publicado ainda na década de 1970, quando eu era aluno de Letras, num livro chamado A ferramenta do escritor. Não o reeditei mais porque o que presta ali são apenas dois pequenos ensaios: este e outro sobre a violência e o erotismo nos contos de Rubem Fonseca.
No seu livro sobre Rubem Fonseca (Proibido e consagrado), grande parte da narrativa mostra como a literatura do escritor foi lida (e produzida) nos anos em que o país vivia uma ditadura militar, inclusive relatando o caso da proibição de Feliz ano novo pelos censores. No entanto, há na biografia do escritor, uma passagem dele pelo IPES, um instituto anti-marxista financiado pelo governo. A partir disso, muitas pessoas passaram a rotulá-lo como um escritor que, de alguma forma, endossou a ditadura. Esses fatos têm alguma relevância na obra do escritor?
Nenhuma relevância para a obra. Mas toda calúnia tem efeitos devastadores sobre a pessoa. A calúnia não foi do autor do livro, o cientista político uruguaio René Armand Dreifuss, que, aliás, nada entendia de literatura, nem este era seu propósito. Foi de quem resenhou e repercutiu seu trabalho. Leram mal uma pequena nota sem importância e deduziram que implicava Rubem Fonseca e Nélida Piñon no IPES. E ninguém faz a pergunta que não quis calar: foi crime escrever contra um governo e não foi crime pegar em armas contra outro? E no IPES estavam também escritores como Rachel de Queiroz, Fernando Sabino e Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Ataíde, entre outros. E deles nada se disse. Por que elegeram Rubem Fonseca de alvo? Não se pode dividir as pessoas entre boas e más. Rubem era diretor da Light. A ditadura comprou a Light para poder demitir seu diretor, que era um dos autores mais proibidos do período pós-64 e que levara aos tribunais censores como o ministro da Justiça, Armando Falcão, que assinara a proibição de Feliz Ano Novo, que só veio a ser liberadoem 1989! E por 2 a 1, em grau de apelação no TRF do Rio. Um dos juízes queria mantê-lo proibido.
Rubem Fonseca é conhecido por ser um cinéfilo. Em seu livro, Proibido e consagrado, ao citar o romance A grande arte, você fala que há uma grande influência de recursos cinematográficos na narrativa. Em que sentido a literatura do autor é cinematográfica?
O cinema de qualidade usa poucas palavras. Precisa dizer com imagens e personagens cujas ações (muitas) e falas (poucas) desenvolvam as tramas do roteiro em locações vinculadas ao tema que se quer desenvolver e narrar. Rubem faz isso logo na abertura de suas narrativas. Ele agarra o leitor com cenas avassaladoras. A troca rápida de cenários, os cortes, as elipses, os personagens devidamente tipificados, os heróis problemáticos, os vilões mais repugnantes e as mulheres mais encantadoras, todos estes recursos do cinema estão na literatura que ele faz.
Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, apesar de incursões pontuais no romance, estabeleceram suas carreiras no conto, um gênero que já gozou de grande prestígio, mas há algumas décadas vem sendo preterido pelas narrativas longas. Ou seja, em um país que lê pouquíssima ficção, dois dos maiores escritores brasileiros optaram pelo gênero menos vendido. Como vê esse aparente paradoxo?
Autor bom não tem que se preocupar com venda, com resenha, com convite para eventos, com compras no atacado, feitas pelos governos, com nada disso. Mesmo que não haja público para um gênero, havendo um bom produto na praça, haverá interessados. A qualidade pode demorar a predominar, mas prevalecerá sempre. Olhemos para trás. O Conde de Afonso Celso vendeu 200 mil exemplares de Por que me ufano do meu país, em 1900. Machado de Assis vendia algo em torno de mil exemplares de cada livro seu na mesma época. Quem ficou na literatura brasileira? Quanto venderam os livros de Cruz e Sousa, Amando Fontes e Graciliano Ramos? Isso não tem importância. Vejo com um misto de tristeza e piedade esses escritores que dão excessivo valor ao mercado e à mídia, almejando que suas obras sejam compradas pelos governos e buscando uma atenção que não deve ser tarefa do escritor. Os que fazem isso, fazem por desespero, por busca de um reconhecimento que não têm, que só o têm efêmero, porque serão suas obras que vão ou não vão sustentar isso.
Desde o início da carreira, Dalton Trevisan persegue um padrão estilístico baseado em uma linguagem enxuta, onde o mínimo é dito para contar uma história. Houve, em sua opinião, alguma mudança mais brusca na literatura do escritor, seja na forma ou no conteúdo, de Novelas nada exemplares até o mais recente O beijo na nuca?
Sim, mudanças houve, mas não foram bruscas, não. Do primeiro livro ao mais recente, o que se vê é um caminhar lento, firme e constante em direção, não a uma narrativa mais curta apenas, mas no rumo de algo menor, com frases ou orações muito curtas e que dizem muito, semelhando o haicai, palavra que em japonês quer dizer “brincadeiraorganizada”, de que são exemplos: “Maria, como é que você dobrou o João, esse flagelo das mulheres? Não dobrei o João – eu dobrei os joelhos.” E esta: “O amor é uma corruíra no jardim. De repente ela canta e muda toda a paisagem.” E ainda: “Melhora muito o convívio de Sócrates e Xantipa assim que um deles bebe cicuta.”
Grosso modo, em uma comparação, Rubem Fonseca seria um escritor influenciado pela tradição literária norte-americana/ inglesa, enquanto a literatura de Dalton Trevisan tem suas bases na prosa clássica, dos mestres da ficção mundial (Machado, Maupassant, etc.). Consegue identificar a gênese das duas literaturas?
Sim, é isto mesmo. Dalton bebeu mais nos clássicos europeus das narrativas. Ele começou por Cervantes, que é prolixo no Dom Quixote, mas enxuto nas Novelas exemplares. Prosseguiu com Maupassant, em Machado de Assis, que repassa a Dalton influências inglesas, depois tomou o rumo dos contos de Tchekhov, de Isaac Bábel, que são de uma concisão extraordinária. Pois ele conseguiu ser ainda mais breve. Rubem Fonseca sempre mostrou influência de outras fontes, como os russos Dostoiévski e Tolstói, os americanos Raymond Chandler e Dashiel Hammett. E do cinema. Ele viu muitos filmes quando bebê no colo da babá, em Juiz de Fora, que ia muito ao cinema com o bebê, quando seu pai, tendo falido no Rio, foi morar em Minas. É por isso que Rubem nasceu lá. Seu pai tinha um estabelecimento comercial no Rio cuja propaganda dizia que ali se vendia de tudo, de um alfinete a um automóvel. Além do cinema e das obras policiais, dá para identificar também vestígios de Kurt Vonnegut Jr, de Philip Roth, de John Uppdike, de William Faulkner, de poemas de Dylan Thomas e do judeu- -polonês Czeslaw Milosz, de quem Rubem recita com frequência estes versos: “Não quero ser um deus ou um herói, apenas tornar-me uma árvore, crescer um longo tempo, e não ferir ninguém”.
Há um axioma que diz que “com bons sentimentos se faz a pior literatura”. Dalton Trevisan tem seguido à risca (em direção contrária, é claro) o alerta, já que sua prosa é feita, basicamente, de maus sentimentos?
Dalton e Rubem são seres líricos, sujeitos dulcíssimos, pessoas de prosa encantadora à beira de copos e pratos. Não apenas nos livros que publicam. A literatura de Dalton, por exemplo, tem momentos muito doces, como o da corruíra, que citei há pouco. Mas eu vejo a literatura alheia, a minha e a vida de outro modo. Pode-se fazer tudo na vida, inclusive má literatura, com maus ou bons sentimentos. O mau sentimento leva ao ressentimento, um veneno que os ressentidos tomam pensando em fazer mal aos que os detestam ou são por eles detestados. Mas o veneno prejudica apenas a quem o bebe, como diz Shakespeare ou o anão José Zakkai, não sei…(risos). O bom sentimento leva-nos a sofrer menos. Sofreremos apenas quando o sofrimento vier. Não é preciso degustá-lo antes, nem desejá-lo, ao contrário das alegrias, que podem ser saboreadas antes, durante e depois, pois lembrar as coisas boas também nos fazem bem.
A violência é outro traço marcante na obra do escritor curitibano. Assim como é um elemento forte na prosa de Rubem Fonseca. Como vê esse tema na obra dos dois escritores?
Dalton, no varejo. Rubem, no atacado. Dalton põe cenas de violência num microscópio. Rubem, num telescópio. O primeiro vê os efeitos terríveis da violência horizontal, de que são exemplos as brigas de casais de uma mesma classe social, evidentemente. Mas Rubem, não. Rubem mostra uma violência ainda maior, que até despreza a visão microscópica, olhando os conflitos por um telescópio, mirando a luta de classes. São duas formas de tratar o mesmo tema, cada um a seu modo. No conto-título de “Feliz Ano Novo”, despossuídos assaltam um réveillon para buscar a riqueza onde ela está! É uma expropriação à mão armada. Eles fazem individualmente o que as revoluções também fazem, só que coletivamente, ou em nome da coletividade.
Você é amigo de Rubem Fonseca. Alguma vez já falou com ele sobre a literatura de Dalton Trevisan? Sabe o que ele pensa da obra do colega?
Já. Ele sempre falou bem da literatura do Dalton. Rubem é muito engraçado ao falar de escritores. Eu adoro ouvir uma historinha que ele conta de um encontro entre ele, Carlos Drummond de Andrade e João Guimarães Rosa. Os três são mineiros (Sim, gato que nasce no forno não é biscoito, pois o carioca Fonseca nasceu em Juiz de Fora). Ele diz que o que mais lembra são os comentários de Drummond e Rosa sobre uma cerveja chamada Ouro Branco que eles estavam tomando. Ninguém falou de literatura naquele encontro. Só de cerveja.