“Nos últimos anos, a literatura infantil começou a ser ameaçada”, alerta a escritora premiada Ana Maria Machado. Nem mesmo na ditadura civil-militar brasileira, ela diz, com todo o aparato censor em voga, esses livros estavam tão em risco. E o problema é global. Já em 2002, havia uma espécie de index de obras banidas nos EUA. Nem mesmo Mark Twain escapou. Por conta de vocábulos hoje considerados ofensivos, optou-se por engavetar sua obra, ainda que tenha um sentido de completa rebeldia e enfrentamento ao status quo da época.
Esta foi a tônica do evento que reuniu destacados escritores de livros infantojuvenis e do mundo das ciências humanas na Academia Paulista de Letras (APL), no último dia 10, e que contou com o apoio da Fundação Editora da Unesp.
Além de Machado, participaram Mauricio de Sousa, Pedro Bandeira, Ilan Brenman, Marisa Lajolo e Daniel Munduruku. Também compuseram as mesas de debate Antonio Penteado Mendonça, presidente da APL, Gabriel Chalita, Mary Del Priore e José Renato Nalini.
Entre os temas abordados estiveram questões como a criação literária para crianças em meio à censura contemporânea e os desafios enfrentados pelos autores e editores.
“Temos hoje um dia da maior importância, pois pretendemos mostrar o absurdo que significa essa tentativa de censura à literatura infantojuvenil, pois, depois de censurá-la, vão censurar a Bíblia: já pararam para pensar que Abraão teve um filho com sua escrava Agar? Ou que a palavra sodomizar vem de Sodoma, onde tentaram estuprar um anjo? Ou que Ester, amante de Nabucodonosor, salvou o povo judeu da escravidão na Babilônia? Não podemos admitir que a estupidez tome conta do mundo”, reforçou o presidente da APL, Antonio Penteado Mendonça.
A pesquisadora e escritora Marisa Lajolo (na foto acima) ressaltou a necessidade de se pensar a literatura infantojuvenil de outra maneira, à luz dos casos de censura. Como o que ocorreu com o livro O avesso da pele, de Jeferson Tenório, retirado das escolas públicas estaduais por ordem dos governos do Paraná, Mato Grosso do Sul e Goiás. “É óbvio que a questão não é semântica, mas ideológica”, reforçou.
Para receber Pedro Bandeira e Ilan Brenman, a historiadora Mary Del Priore reforçou a “materialidade” da censura, que ficou patente nas falas de Ana Maria Machado e Marisa Lajolo no período da manhã. “Agora teremos a oportunidade de ouvir dois imensos escritores de literatura infantojuvenil falando da experiência terrível, dolorosa e marcante que é ser censurado”, disse.
“Sou veterano da censura”, contou o escritor Pedro Bandeira. “A palavra escrita era perigosa, meio pecaminosa, no meio em que eu fui criado. Mas como eu não tinha irmãos próximos de mim, a minha vida de aprender sempre foi a leitura. A vida é leitura.” E a linguagem serve para pensar. “E se você lê mal, irá mal em todas as outras áreas.” E mencionou a necessidade de reação a “um ou dois pais” numa escola que querem interditar obras literárias. A ignorância precisa ser combatida.
Seguindo a mesma linha foi também o escritor Ilan Brenman. “Só o fato de estarmos aqui hoje e podendo falar sobre censura, já é um avanço. A ditadura militar acabou, mas temos muitas outras”, registrou. Ele considera que algumas pessoas pensam que o contrário do politicamente correto é ser mal-educado, grosseiro. “Não é nada disso.” Para ele, a censura se funda, justamente, em leituras rasas de obras literárias. “A gente perdeu a capacidade de entender um texto. Entende a casca, mas não a profundidade.” Na última mesa do dia, Gabriel Chalita reforçou a importância do evento. “Nós tivemos momentos muito duros na história da humanidade, livros sendo queimados, e a gente pensava que essa era uma página do passado.”
E, para o escritor Daniel Munduruku (acima), a literatura pode contribuir para virar essa página ao “desentortar pensamentos”. “Nunca fui um bom leitor, aprendi a ler tardiamente”, contou, pela falta de acesso aos livros na aldeia em que nasceu − nos anos 1960 − e pelo papel que a ditadura civil-militar destinava à educação dos indígenas: “aprender a cultura brasileira”, apagando as próprias raízes. Hoje, com mais de 60 livros publicados, o cenário se inverteu. “A literatura, para mim, é este instrumento importante que a gente pode trazer algum tipo de esperança.”
Este instrumento também foi decisivo para Mauricio de Sousa, que cresceu ouvindo − e contando − histórias na vila em que cresceu. “Vamos todos continuar olhando e lendo histórias em quadrinhos, pegando livros nas mãos, assimilando”, disse. “Ler, ler, ler, ler.”
No fim, a educação − seja escolar, seja familiar − é a trilha fundamental a ser olhada. “Torço para que o caminho da educação não se reduza a apenas evitar mencionar a existência de tais ideias ou proibir livros em que talvez, quem sabe − é até possível − que alguma palavra esconda sabe-se lá o que. Elas precisam ser rediscutidas, refutadas, com argumento e explicações”, pontuou Ana Maria Machado. “Livro não é só para entender e concordar, mas também para fazer pensar e debater. Conversar com a criança sobre o que se lê. Opor novas leituras a velhas leituras, um autor a outro.” Em resumo: multiplicar pontos de vista.
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