Por José Castello
Abro a Folha de S. Paulo do dia 3 de junho de 1998 e encontro a manchete que já vi tantas vezes: “Ninguém me leu, mas fui até o fim, diz Hilda Hilst.” Mais uma vez, em página inteira, um texto como muitos que eu mesmo já assinei em outras publicações repisa o tema inevitável: Hilda, sem nenhum receio de parecer exagerada, ou mesmo ressentida, reafirma que é a vítima infeliz de uma condenação. Maldição, ela prefere dizer, e a seguir fornece um nome para seu infortúnio: a “maldição de Potlatch”.
A escritora não está falando só de um sentimento mórbido, ou fazendo uma metáfora, ainda que excessiva, para sua solidão; ao contrário, diz estar segura de que existe uma energia nefasta que age sobre ela e seus livros, impedindo-a de ser reconhecida pelo que é. Hilda pode exibir, de fato, uma vasta obra, composta de ficções, poemas, textos para teatro, narrativas de humor, pequeno tesouro que permanece, entretanto, no quase absoluto esquecimento e que o meio literário brasileiro, por ignorância, inveja ou outro motivo mais obscuro, se empenha em renegar. Foi por entender que sua literatura é sempre ignorada, e mais que isso, destruída, que Hilda adotou para si a ideia do Potlatch.
O conceito não é seu. O primeiro intelectual a estudar o Potlatch foi o antropólogo Marcel Mauss, e, depois, no livro “A parte maldita”, o filósofo Georges Bataille o desenvolveu, aplicando-o a outros momentos história. Foi lendo Bataille que Hilda descobriu a noção de Potlatch, e nela julga ter encontrado um nome para a maldição que a atormenta. Os etnólogos identificaram o Potlatch, pela primeira vez, entre os índios da costa noroeste americana. Em um ritual incompreensível para nossa sociedade, os ameríndios tinham o hábito de pegar a parte mais importante de sua riqueza e simplesmente destruí-la. Bataille encontrou indícios do mesmo ritual de sabotagem em outras culturas, bastante diversas entre si, o que pode indicar que o homem carrega um elemento fixo, uma espécie de impulso para o aniquilamento, que ultrapassa as circunstâncias culturais.
No século XIX, chefes tlingit apresentavam-se diante de rivais para, em cerimônias de truculência e desperdício, decapitar seus próprios escravos. Os tchukchi do nordeste siberiano, igualmente impulsionados por forças predatórias que não podiam definir, degolavam seus cães. Também os índios do noroeste americano, nos tempos de maior fartura, incendiavam aldeias inteiras, ou destruíam canoas, armas e reservas de alimentos. Dissipar riquezas, em todos esses casos, não era só um ato de auto-sabotagem, mas uma maneira de acumular outro tipo de poder, hoje bastante desprezado: a glória. O Potlatch se constrói sobre uma lógica bastante elementar, mas nem por isso menos cruel: a de que a maldição traz a glória.
A dilapidação gratuita de energia nada parece desejar em troca; mas Bataille mostra que ela busca, sim, uma forma secreta de prestígio, uma espécie de dom especial. “A dádiva nada significa do ponto de vista da economia geral”, mostra Bataille, apontando para a inutilidade das explicações baseadas nas relações materiais. O Potlatch ultrapassa o mundo da matéria: nesse exercício, gratuito e chocante, do poder de perder, o que se perde é o que menos importa. Ele conduz a uma forma invertida de glória, que nem por isso deixa de ser menos gloriosa, e que não está tão distante de nós quanto parece. Hoje em dia, a lógica do Potlatch pode ser identificada em muitos aspectos da ostentação social, do luxo exagerado, e no gozo com o desperdício, na supremacia do consumir sobre o produzir, no esbanjamento. “Uma vez volatilizados os recursos, permanece o prestígio adquirido por quem volatiliza”, escreve Bataille. O Potlatch é um emprego inútil das riquezas, seu extravio insano, seu aniquilamento sem qualquer objetivo material. “Várias de nossas condutas são redutíveis às leis do Potlatch, possuem o mesmo sentido”, afirma ele.
Hilda Hilst acredita que, agora, a lógica do Potlatch age sobre ela. Sua vasta obra faria parte daquele segmento da riqueza literária brasileira que o país, numa imitação impiedosa do ritual ameríndio, resolveu destruir gratuitamente. De fato, essa maldição, ou o que seja, parece exacerbar ainda mais o sentimento secreto de triunfo, que a escritora, mesmo quando se lamenta, não pode esconder, e aqui a lógica do Potlatch se cumpre à risca. Ao repórter Álvaro Machado, Hilda diz: “Eu sei que sou o maior poeta do Brasil, não tem importância me chamarem de megalômana. Escrevi de um jeito que ninguém escreveu. Foi a única coisa que eu soube fazer na vida.” A insistência de Hilda no Potlatch é, se pensarmos bem, bastante razoável. Primeiro, fala da solidão pessoal em que, quase sempre, está lançada. Depois, do imenso desprezo que relega sua obra não só ao esquecimento, mas, o que é mais grave, à negação, como se os livros de fato não existissem. É ainda o sonho, nunca realizado, de “vender a alma”, quimera faustiana que, mesmo quando se esforçou para isso, não pôde realizar.
Bem que Hilda tentou – e aqui não se pode dizer que ela não tenha se empenhado em seu projeto de ser lida e reconhecida. E, só para ridicularizar seus detratores e mostrar que a perseguição é indiferente à qualidade do que é capaz de escrever, ela chegou a publicar, no início dos anos 90, uma célebre trilogia de narrativas pornográficas, na esperança de que assim viessem a lê-la. “Se é isso o que os leitores querem, eu agora lhes dou”, explicou na época. A ideia era partir para a sedução direta, dando aos leitores mais teimosos a mediocridade e a grosseira que, aparentemente, tanto desejavam; mas essa estratégia evidentemente não funcionou, até porque a trilogia conserva o estilo impecável dos livros anteriores e nem pornográfica é, reafirmando o princípio de que nenhum escritor pode fugir de si. Talvez o que Hilda desejasse mostrar, e nesse ponto pode ter triunfado, é que, como uma adolescente sôfrega, pelo amor dos leitores ela seria capaz de tudo. Apesar de seus esforços para fracassar no texto e ser bem-sucedida na vida, a trilogia está à altura de toda a sua obra precedente, ou posterior – e assim, foi seu projeto de fracasso que fracassou.
Seu caso não é o dos escritores que têm uma obra vasta mas não conseguem publicar por falta de um editor; Hilda, ao contrário, já teve nada menos que dezessete editores, ainda que a maioria deles exerça sua atividade de modo precário e irregular. Teve brigas violentas com quase todos, é preciso dizer ainda, e a fama de um temperamento difícil foi se tornando aos poucos, graças à ação dos difamadores, um apêndice da obra. Talvez, ao difamar, eles tenham, sem o desejar, tocado em sua ferida secreta, pois parece ser dessa posição contínua de combate que Hilda retira grande parte de suas energias criativas, hipótese que, em vez de desmerece-la, só a dignifica.
Podemos pensar que, fosse compreendida, e não precisasse lutar para ser lida, Hilda Hilst não seria Hilda Hilst. Posta à prova, a opacidade de seus textos parece sempre prevalecer, e se isso a abate, também faz dela o que ela é. Uma grande incompreensão, é verdade, cerca a literatura de Hilda Hilst, fato que atesta a inapetência e a preguiça de seus leitores; mas isso não nos impede de pensar que o desprezo talvez tenha se transformando em condição prévia para a obra, formando, à revelia da própria Hilda, a matéria-prima de seu projeto literário. A maldição, assim, se converte em bênção.
Entrevistado por Truman Capote, o fotógrafo Richard Avedon disse, certa vez, que seus modelos, em geral artistas de idade avançada e rostos enrugados, eram santos terrestres. “Muito raramente descubro algo realmente belo em um rosto jovem”, observou Avelon, e o mesmo reparo pode ser dirigido, agora, a Hilda Hilst. Os retratos de moça que ela tanto preza guardam uma frivolidade e rapidez que não combinam com seus livros e só estimulam a crueldade de seus detratores. O desprezo, como ocorre com as mulheres trocadas por seus maridos, os homens escorraçados por seus chefes e os cães largados nas ruas, torna Hilda ainda mais bela. Fato que deve ser posto não na conta da biologia, mas sim da obra, que, afinal, é a origem de tudo.
Não posso esquecer do sol derramado na estrada, a poeira me entrando pelos olhos, enquanto eu procurava, pela primeira vez, o caminho de seu sítio, uma chácara de dez mil metros quadrados, a dez quilômetros de Campinas, São Paulo. Toda a paisagem parecia fatigada com o peso da luz vermelha; as plantas tinham dificuldade de se sustentar de pé, as árvores se curvavam, e eu mesmo, um pouco tonto, tive que me concentrar em minha tarefa de repórter para não desistir. Então, pressionado pelo céu rubro, pude entender por que ela o batizara de Casa do Sol. “Meu medo, meu terror, é se disseres: / Teu verso é raro, mais inoportuno”, escreveu Hilda. Eu levava esses versos rabiscados em um caderno, logo na primeira página, em letras bem grandes, como uma advertência, para não ceder ao impulso mais fácil da incompreensão. Hilda tem uma escrita intempestiva, e essa é a razão pela qual, se não nos agarramos com força às palavras, logo desistimos. Na estrada de terra eu tinha a impressão de que a gosma de seus versos se espalhava pela atmosfera e a dissolvia. A leitura de Hilda Hilst fizera de mim um homem muito impressionável.
Assim que o táxi atravessou o portão de madeira, eu já podia ouvir um bramido que se aproximava e ondas, como se emanasse do chão. Ao sair do carro, cachorros de todos os tamanhos, cores e mestiçagens me envolveram em uma nuvem de barulho. “Já nem sei quantos são”, Hilda me disse, muito calma. Talvez beirassem os sessenta e seis, estimou, valendo-se de um número carregado de ameaças. Estão sempre adoecendo, morrendo, e outros chegam para tomar o seu lugar; é difícil saber ao certo quantos continuam vivos. Vira-latas sem nenhuma elegância, mancos, cegos, pernetas, despelados, desdentados se atropelavam à minha volta, mas nenhum deles, de fato, encostava os dentes em mim. Animais vadios, cansados, no limite de sua condição animal, que Hilda sabe amar com vigilância. A natureza, no que tem de mais torto, de mais sofrível, se encarnava naqueles cães.
Ela vinha atrás dos cachorros, arrastada por eles, com seu vestido largo, a bata da feiticeira, e um sorriso velhaco boiando sobre os cabelos. Tinha o rosto queimado, a pele áspera, e parecia um pouco ofegante, mas mantinha a postura senhorial, o queixo erguido, o olhar inquisitivo de quem jamais relaxa. “Não se assuste de encontrar uma velha carregando uma corcunda”, Hilda me disse, com uma gargalhada, “pois isso sou eu.” Nem cheguei e já estou diante da primeira lamentação: “A velhice é horrível, porque faz a gente entortar, ressecar e feder”, enumerou, como se nada daquilo de fato a afetasse.
Hilda percebeu meu embaraço e sugeriu que nos abrigássemos sob uma imensa figueira que se ergue, há mais de duzentos anos, bem à frente da casa. Os cachorros, agora mais calmos, se espalhavam pela sombra. “É uma árvore mágica”, ela me disse, como se anunciasse em segredo milenar, e eu não sabia se devia tomar o comentário como um consolo ou uma ameaça. À noite, diante de luas carregadas de presságios, Hilda promove pequenos rituais em honra da árvore. Seu (hoje falecido) amigo Caio Fernando Abreu, vestido de negro, muitas vezes a escoltou nessas cerimônias, que agora ela era obrigada a repetir sozinha.
O mesmo gosto pelas fronteiras do humano a levou a montar em casa um equipamento de radiofonia destinado a captar, através das ondas de rádio, mensagens emitidas por extraterrestres e falecidos, experiência que se iniciou ainda nos anos 70, inspirada nos experimentos do músico suíço Friedrich Jungersson. Hoje, com a mesma abnegação, ela se dedica a ler o Transcomunicação instrumental, de Sonia Rinaldi, que registra experiências de contatos com os mortos através de telefone e fax. Esses espíritos especiais, entre os quais se perfilam os de Júlio Verne, Einstein e Paracelso, habitariam um planeta chamado Marduk, localizado fora do nosso tempo-espaço; Marduk quer dizer sol. Hilda pretende, um dia, transformar a Casa do Sol numa fundação de estudos psíquicos sobre a imortalidade, que é de fato a maior de suas obsessões.
Ela se exilou no sítio de sua mãe ainda nos anos 70, abandonando uma vida agitada, que a levava para os braços de personagens como Dean Martin, que namorara por um mês, e Marlon Brando, que tentara sem sucesso namorar, e depois a entregara a um cansaço incurável. Sempre no papel de mulher irresistível, viajou pela Itália, Grécia, França e frequentou banquetes, castelos, cassinos e salões reservados. Quando a beleza começou a se esvanecer, soube se retirar. Apesar do interesse na imortalidade, Hilda repudia a ideia de vir a ser reconhecida como escritora só depois de morta; lamenta que o presente não lhe traga esse reconhecimento, e embora ainda lute por ele, não parece muito convencida de que de fato chegará. Num relâmpago, sou tomado pela impressão de que, apesar do tom lamentoso, Hilda chega a desejar o contrário. Se fala tanto sobre a maldição que a acomete, chego a pensar, é porque de alguma forma a deseja.
Olhei-a mais perto, porém, e não reconheci a mulher que se refugiava em experiências tão extravagantes. Agora, eu via apenas uma mulher plácida, carregada de anos, é verdade, mas ainda disposta e pronta para os combates que a literatura impõe. Enquanto eu tentava afastar a perplexidade, vieram-me os primeiros versos dos “Dez chamamentos ao amigo’: “Se te pareço noturna e imperfeita / Olha-me de novo”, está escrito. Foi o que fiz, mas continuei a estranhá-la. O poema se desenrolou em minha memória, que costuma ser limitada mas que ali, sob a figueira, se esgarçava: “Olha-me de novo. Com menos altivez, / E mais atento”, recordei, embaralhando um pouco as palavras, mas sem perder o essencial. E enquanto me deixava levar pela voz de seu poema, Hilda me guiava para dentro da casa.
É uma residência rosada e antiga, com pátio interno espanhol, decorado com janelões amplos por onde a luz escorre. A claridade chega ao interior da casa de través, entortando os cômodos, aumentando o volume dos móveis e distorcendo os ambientes. Ela me leva até a cozinha, onde me oferece chá inglês com bolachas. Sentamos em torno de uma grande mesa de madeira, grossa, antiga, e de um bule que fumegava. A voz de Hilda começa então a deslizar pelo silêncio pesado, pois os cães, livres de mim, pararam de latir.
Olhei-a de novo e pensei nas fotos da Hilda jovem e sedutora que já tinha visto. Agora, velha, parecia fazer questão de reter em si, como uma das marcas da velhice, todo o peso ambiente. Outros versos de Hilda, sempre com as palavras truncadas, mas o pensamento inteiro, me vieram. “Quisera dar nome, muitos, a isso de mim / Chagoso, triste, informe” está em “Sobre a tua grande face”. Hilda, que já celebrou a beleza como um triunfo sobre o transitório, agora fazia questão de ser velha – e isso lhe dava, prematuramente, uma envergadura frouxa, um olhar perdido e que era também exagerado, pois ela mal passara dos sessenta anos. Parecia tomada por um desprezo pelas aparências, de que a velhice seria o miolo; polpa cheia de ácidos, dores sem nome, duras rejeições, foco febril dos livros. Pensei ainda na obra e me veio o primeiro dos vinte e um problemas indecifráveis de Qadós em “Pequenos discursos. E um grande”: “De onde essa agonia febre-fulgor que eu carrego mil vezes cada dia?”
Hilda Hilst se sente como um dos ameríndios descritos por Marcel Mauss, um autor que está sempre a reler. Escreve para acumular riquezas e, logo depois, vê-las queimar na fogueira do desprezo. Sua obra, imensa, não repercute. Não é lida. A crítica, às vezes, cumula-a de elogios, mas eles não perduram e logo parecem inexistentes. As traduções no exterior, quase sempre na França, não ecoam no Brasil, e nem mesmo chegam a ter um significado para o mercado europeu. Os problemas de dinheiro persistem. Nada funciona. Hilda Hilst se vê como uma mulher que escreve uma longa obra sem leitores, ou só para leitores silenciosos e camuflados. Escreve para não ser lida. Para ser recusada. É, no entanto, essa maldição que a leva a prosseguir.
Quando era jovem, e vivia cercada de homens bem-sucedidos, ninguém levava a sério o que escrevia, porque textos tão densos não podiam vir de uma mulher tão desejada; e deviam ser tomados como uma brincadeira inofensiva, ou uma fraude. “Achavam que era tudo psicografado”, ela recorda, com sarcasmo. Frequentava os grã-finos, as rodas elegantes, mas também a juventude transviada, as festas secretas e os artistas de vanguarda. Gostava de atrair e de chocar, movimentos opostos que configuravam um só sentimento: o de estar imersa em seu tempo. Hoje, envelhecida, com o cabelo repartido num coque senhorial, metida em sua bata, exilada, já quase não sai de casa, nem mesmo para as homenagens que, às vezes, lhe oferecem. Mas afirma que o desterro não se deve ao sítio distante, à vida ensimesmada, ou às limitações da idade, e sim à obra que, por falta de leitores, parece destinada a não existir.
E Hilda se lamenta, sem parar, deixando-nos entre a piedade (que, no caso de uma obra tão magnífica, é ofensiva) e a indiferença, também odiosa, talvez o cansaço, e certamente a impotência. Os livros de Hilda Hilst se desviam dos padrões literários dominantes e não têm qualquer interesse em neles se confinar. Sua relação com a escrita não é formal, ou social, mas vital. Num momento em que as regras de mercado pedem clareza, ela parece opaca; o lugar-comum diz que ela não é “legível” e até que chega a ser fraudulenta. Parece ora enigmática e fechada em si mesma, claustrofóbica; ora excessivamente derramada, as palavras costuradas em um caudaloso fluxo de imagens e ideias à deriva. Embora queime a vista, pois Hilda trabalha com a superexposição das emoções que a língua evoca, sua literatura parece destinada às sombras, à opacidade, como o filtro severo que bloqueia uma lente. Seus livros mexem com paradoxos e com excessos que, diz-se, extrapolam o domínio do literário. Hilda é, então, vista como perigosa, enganadora, e ela, ciente do que esse destino tem de inexorável, dele tira ainda algum partido; então, exacerbando cada um dos elementos dessa condenação, adota-os como seus, como se fossem uma escolha.
A literatura de Hilda Hilst parece inconveniente – numa palavra: obscena. Hilda entendeu isso muito bem. Tentou dar uma resposta adequada a leitores e críticos partindo para a atuação, isto é, tentado ser obscena mesmo. Quando escreveu, no início dos anos 1990, sua trilogia marota (“O caderno rosa de Lori Lamby”, “Contos de escárnio” e “Cartas de um sedutor”), não foi muito feliz. O artista plástico Wesley Duke Lee se recusou a ilustrar Lori Lamby, considerando-o “um lixo absoluto”. Intelectuais que respeitavam sua obra se declaram “chocados”, e muitos, em nome do pudor ou da sanidade, cortaram relações pessoais com a escritora. Poucos, muito poucos, puderam perceber a qualidade da resposta que Hilda Hilst lhes estava dando.
Em sua trilogia, ela nada mais fez que repuxar sua escrita até os limites da normalidade, pois nada mais “normal” que o obsceno, que não passa de um expediente que tenta domesticar o indomesticável. Ela manipulou as expectativas mais inconfessáveis de seus leitores, mexeu com seus pudores mais secretos e mostrou que a arte não pertence apenas ao domínio do voluntário. Não basta desejar fazer, ou mesmo saber fazer – alguma coisa “se faz”, sempre, à revelia do autor. A arte lida com o obscuro, o não-manipulável, os sistemas autônomos da mente, as sombras, e por isso, aos ingênuos ou apressados, lembra uma maldição. Nessa série obscena, Hilda tenta dizer que entende, sim, o que seus leitores sentem quando leem seus livros: abandono, desamparo, solidão. Sentem-se nauseados diante de algo que lhes perturba e que, talvez, preferissem evitar. Fala do intolerável que se manifesta quando ela, sem ceder ao desejo de agradar ou de desagradar, usa a literatura para afundar a face no essencial.
“Cartas de um sedutor” começa com uma citação do filósofo romeno E. M. Cioran: “A vida só é tolerável pelo grau de mistificação que se coloca nela.” Uma dessas mistificações é a norma literária, nessa segunda metade da década acossada por exigências “profissionais” de legibilidade, efeitos inócuos e pressa. A literatura hoje tende à inocência, falsa candura que só vem disfarçar o horror pelo novo; Hilda não só não está preocupada em se adaptar a essa norma, como começa pelo fim: ela parte da borda do literário e, em vez de avançar rumo ao centro gerador de normalidade, lança-se numa viagem para fora da literatura. Por isso escreve livros que se distanciam das expectativas médias e se aproximam do susto.
Parece sempre que Hilda trabalha com as palavras erradas, com as palavras mal ditas e com a dissimulação, pois de um escritor tudo o que se espera, hoje, é a nitidez. Ela não parece temer, porém, o lado obsceno que ata a literatura ao homem e que torna todo escritor que dele tenta escapar um refém da futilidade, ou da afetação. Hilda sabe que a literatura só serve para algo quando deixa de lado os protocolos letrados e se oferece como instrumento de sobrevivência. Em “A obscena Sra. D.”, ela começa com um aviso bastante esclarecedor: “Vi-me afastada do centro de alguma coisa a que não sei dar o nome.” Já na primeira frase, as palavras lhe escapam – isto é, a literatura falha. Hilda trabalha com o fracasso, e, por isso, sua obra não pode ser aferida pelos padrões do sucesso, erro que ela mesma, na aflição de escapar ao isolamento, não se cansa de cometer. O leitor deve se preparar para o medo, pois ler Hilda Hilst é acompanha-la sem a garantia de equipamentos de segurança e sem um destino fixo – ou cair fora, cinicamente, reclamando do “peso” de sua escrita.
Em um dos dez poemas de “Da noite”, ela avisa: “Costuro o infinito sobre o peito. / E no entanto sou água fugidia e amarga.” HH se propõe tarefas que, desde logo, sabe que não poderá cumprir. É a distância, o imenso intervalo entre o abismo da imaginação e a fraqueza do humano que a interessa. Sua literatura se ergue sobre uma declaração de impotência; como se avisasse aos leitores, repetidamente, que dela nada devem esperar, pois o escrever não é objeto, é isca. Ela não teme a cisão que preside o ato de criar. Por isso pratica uma literatura que não se lê impunemente.
“A Sra. D.”, a propósito, empaca numa palavra: “derrelição”. Do latim “derelictione”. Abandono, desamparo. O que significa pensar em solidão, isolamento, esquecimento. Talvez derrota. Há uma acepção jurídica: “Abandono voluntário de coisa móvel, com a intenção de não mais a ter para si.” A literatura de Hilda Hilst parece governada por esse não dar conta, esse largar, essa impotência original. Ao escrever, ela se abandona; escrever é, um pouco, desistir. Os diálogos entre a Sra. D. e Ehud, seu amor morto, se travam em terreno pastoso e sombrio. O tempo é viscoso, com suas bolhas de acontecimentos: diálogos que se interrompem, divagações que não chegam a um destino, recordações em farelos, cenas dispersas, imprecisões. A Sra. D. chega a dizer que para ela, “viver foi uma angústia escura, um nojo negro”. Escrever, mais uma vez, é fracassar.
Sua escrita dá a impressão de não ser trabalhada, de ser “jogada”, talvez um pouco mediúnica, quando se trata bem do contrário: ela escreve com extrema vigilância para não embonecar a ficção, não decorá-la, e nem facilitá-la. A literatura, para Hilda Hilst, é um ponto de partida para saltos longos e desgovernados, e não um ponto de chegada. Ehud pergunta à sua Hillé, a Sra. D.: “E o que foi a vida?” Ele mesmo responde: “Uma aventura obscena de tão lúcida.” Obscenidade e lucidez sendo as duas faces do mesmo devassamento, laço que, no mundo asséptico desse fim de século, é bem difícil de aceitar, e diante do qual muitos leitores, enrubescidos, preferem fechar os olhos.
A literatura de Hilda mexe com as duas últimas fronteiras da modernidade: paixão e morte. A paixão desorganiza; a morte fulmina. A modernidade, por isso, as remete à margem. A paixão, então, é psicologizada; a morte, medicalizada. Procedimentos de contenção com os quais se tenta refrear o pavor que essas experiências provocam. Hilda, ao contrário, insiste em escrever a partir desses extremos longínquos e, por isso, parece estar sempre começando pelo fim, como um alpinista que preferisse, primeiro, experimentar a queda. Escreve de um lugar perigoso para os que pensam em eficiência, em rendimentos mensuráveis, em idoneidade, elegância e bom gosto. Isso desoriente aqueles que sustentam a independência absoluta da imaginação diante do real, falácia que Hilda desmonta habilmente em suas ficções.
Seu projeto literário quebra a fronteira que separa e protege o leitor do escritor, a vida da ficção. Nesse ponto, Hilda Hilst se aproxima dos poetas – torna-se poeta. Faz questão de mostrar que não tem compromisso algum com o literário – aqui entendido como a norma que diz o que é e o que não é literatura e que afere os patamares de competência e incompetência da escrita. Isso lhe outorga um poder letal: a literatura que se faz paixão tanto pode salvar como pode matar. Nunca é demais pensar nos métodos de exclusão que tornam Hilda Hilst, embora viva e atuante, uma autora “esquecida”.
A literatura em nosso país é hoje mais legitimada por seus efeitos externos – presença nas listas de mais vendidos, facilidade de digestão, poder de evocar a “brasilidade” e o que ela tem de excêntrico, vocação para as versões “leves” no cinema ou na TV – que por sua temperatura interna. O espaço entre o leitor e o livro, território clássico da intimidade, da emotividade e da reflexão pessoal, está conturbado por interferências violentas: exposição do escritor na mídia, imagem pública dos autores desenhada por especialistas, técnicas de marketing e de embalagem, conflitos de política literária, lutas de prestígio. Esse excesso de ruídos torna uma voz firme e dissonante como a de Hilda Hilst quase inaudível.
Essa negação aponta, quem sabe, para uma fobia. Ao se defrontar com a escrita suculenta de Hilda, o leitor anoréxico se sente denunciado; é também destituído dos anteparos aconchegantes que envolvem o leitor clássico, aquele senhor de robe acomodado no calor de sua poltrona e isolado dos perigos do mundo, sendo nessa ruptura que o medo do obsceno aparece. Pois o que é o obsceno, a rigor, senão aquilo que fere nossa suposta pureza e que, por isso, não suportamos ver? A obscena Sra. D. termina com um pedido: “Livrai-me, Senhor, dos abestados e dos atoleimados.” Todos nos tornamos um pouco tolos e abestalhados quando deparemos com o essencial. Hilda Hilst, por princípio, só trabalha com essências, condição que a torna mesmo inconveniente e ameaçadora.
Um dos mais atentos estudiosos da obra de Hilda Hilst, o crítico literário Leo Gilson Ribeiro, mostrou que ela reúne em sua escrita duas escatologias: a do Eskhatoslogos, a doutrina final do tempo; e a do Skatoslogos, a doutrina que disserta sobre as fezes. O grande personagem de Hilda é Deus, mas “um deus tão sujeito às paixões humanas do ódio, da crueldade deliberada ou da omissão quanto as divindades do Olimpo na Grécia antiga”, como Leo Gilson mostra. Uma divindade bárbara, nunca compreendida, apenas esboçada; um deus com o qual se deve sempre brigar e no qual não se deve nunca confiar. Essa religiosidade aparece ainda em uma frase do teólogo Paul Tillich, que Hilda gosta de repetir: “Todo aquele que pensa em profundidade é um ser religioso.” É exatamente por isso, porque pensa sempre em abismo, que ela dispensa as religiões institucionais, embora admire Brama, Buda e os santos católicos.
“Você se sente realmente vítima de uma maldição?”, eu lhe pergunto. “Há coisas de fato estranhas”, Hilda me diz, esforçando-se para me mostrar que não abre mão da lucidez. “Mas essa é uma pergunta que não sei responder.” Ela às vezes pensa que a maldição emerge do texto, porque todos os seus personagens têm o mau hábito de pensar. “Mesmo quando decidi escrever pornografia, meus personagens viviam com a cabeça cheia de pensamentos”, diz. “Eles pensam sem parar. Até no meio do sexo, decidem sempre fazer perguntas complicadas.” Outras vezes, afastando-se do que escreve, chega a atribuir a maldição, de fato, a alguma força exterior, e então se sente cercada de inimigos. Mas, para se consolar, recorda o “Hípias Maior”, um dos diálogos de Platão, cuja autenticidade é contestada. A certa altura, Sócrates diz: “É melhor se desavir com todos do que com aquela única pessoa com quem se é forçado a viver depois de ter se despedido de todos.” Hilda acha que, se um autor é coerente consigo mesmo, o resto é suportável, o que não deixa de causar um tipo difícil, mas verdadeiro, de alívio.
Hilda volta a pensar na maldição de Potlatch. Escreveu há trinta anos e tem quase trinta livros publicados, que mereceram críticos elogiosas, traduções no exterior e prêmios de prestígio. “Estou continuamente exibindo minhas riquezas, entregando o que tenho de melhor, mas os outros jogam fora o que lhes ofereço”, constata. Adquiriu, com o tempo, o “poder de perder” que Mauss viu nos ameríndios. Para mitigar a aflição pensa numa frase de Chesterton: “Um homem pode ser gordo para certos lugares e magro para outros.” E a refaz: “Meu texto é magro para uns, mas é gordo para outros.”
Essa recusa produz nela, muitas vezes, uma sensação de estranhamento, experiência que, vista de fora, se assemelha mesmo à loucura. Há alguns anos, Hilda foi à Universidade Católica de São Paulo para assistir à defesa de uma tese sobre sua obra, “A linguagem delirante de Hilda Hilst”, assinada por Clara Silveira Machado. Um estudo de mais de quinhentas páginas, resultado de treze anos de dedicada pesquisa acadêmica. “Sentei-me quietinha na primeira fila e me pus a ouvir”, relata-me. Mas nem assim escapou. Toda vez que uma senhora da banca falava em paranoia, ou esquizofrenia, apontava para ela – e Hilda olhava para trás, na esperança de que fosse para outra pessoa. Depois da defesa, que a deixou muito envaidecida, a autora veio cumprimenta-la. E, entusiasmada, revelou: “É a primeira vez no departamento que se defende uma tese sobre a obra de um escritor vivo.” Hilda a olhou sem conter o desprezo e respondeu: “E você pensa mesmo que estou viva?” Na saída, cruzando com a senhora da banca que a olhava espantada, não resistiu e perguntou: “O camburão e a equipe médica já chegaram?”
Hilda não gosta de falar em público, por achar que os leitores a temem. Certa vez, depois de muita insistência, resolveu participar de dois debates sobre sua obra, promovidos pela Unicamp. No primeiro, depois de falar um pouco, e vendo que nenhum dos alunos tinha coragem de lhe fazer qualquer pergunta, virou-se para o coordenador da mesa e disse: “Por que, durante os debates, ninguém se dirige a mim?” O professor respondeu: “Ora, os alunos tem medo de você.” No debate seguinte, tentando inverter as expectativas dos alunos, ela começou sua fala assim: “Não se preocupem, porque sou eu quem tem medo de vocês.” De nada adiantou, o medo persistiu. Hilda me diz que tem uma amiga japonesa que sempre lhe promete de presente uma coleção de máscaras orientais. “Talvez assim, com uma máscara de brava, eu imponha respeito”, consola-se. Ela não acredita mais que possa escapar da maldição que cerca sua obra. “Talvez, depois que morrer, ela estanque”, me diz. “Talvez desapareça junto comigo.” É uma esperança que, no entanto, não chega a consolá-la.
Cabe cogitar um pouco mais, por fim, a respeito das vantagens que Hilda Hilst pode estar retirando do papel de maldita. Empenhado em pensar os impasses da literatura contemporânea, o escritor argentino Ricardo Piglia defende a ideia de que o grande problema do escritor no mundo de hoje não é o fracasso, mas o sucesso. Até o século XIX, o escritor era um homem que vivia em eterna aliança com o fracasso. Baudelaire é, desde muito, o símbolo desse escritor amaldiçoado e incompreendido, que vivia com problemas de dinheiro, era visto como inadaptado, desprezado pela família e estava condenado ao isolamento e ao desastre. Piglia diz que hoje, ao contrário, o escritor se tornou a imagem por excelência do homem bem-sucedido, ainda que essa representação se construa, muitas vezes, mais à custa de fantasias que de fatos. O escritor de hoje recebe adiantamentos em dólares, pontifica na televisão, viaja para feiras internacionais e seminários, recebe royalties de traduções no estrangeiro; é também adulado pela mídia e pelos leitores, ocupando, muitas vezes, o lugar de um verdadeiro guru, que está sempre à disposição, com seu currículo e a força de seu prestígio, para emitir opiniões e julgamentos. O escritor de sucesso pode ser solicitado, a qualquer momento, para estar em Nova York, em Frankfurt, ou em Tóquio, para dizer isso ou aquilo, se engajar em tal ou qual movimento, e sua presença será sempre cercada de pompa e decorada por uma legião de fãs.
Nesse novo quadro, o êxito, e não mais a maldição, é o grande problema do escritor, já que o sucesso o obriga a se repetir e o impede de falhar, quando toda literatura que merece esse nome se constrói sempre à beira do abismo, sendo o fracasso sua condição primeira de existência. Além disso, o sucesso, conquanto traga vantagens pessoais, apresenta também muitos problemas – e que infinidade de problemas, a começar pela desconfiança imediata dos leitores mais cultos. Um escritor best seller deve sempre justificar cada palavra que diz, que escreve, e cada atitude que toma, além de aceitar que a mídia vigie seus passos, que sua vida pessoal seja devassada e sua fortuna posta, sempre, sob suspeita.
O escritor de sucesso, por mais que se esforce, nunca parece estar à altura da glória que lhe destinam; se assemelha, ao contrário, com um eterno devedor: deve o grande livro que não vem, a grande declaração que não é capaz de pronunciar, a grande iluminação que todos aguardam. A posição de amaldiçoado, ao contrário, destina ao escritor, mesmo ao mais arredio e imóvel deles, uma série de favores que ele não precisa se esforçar para merecer. Piglia fornece o exemplo de Franz Kafka, que desejou sempre ser invisível e, antes de morrer, chegou a manifestar desejo de que toda a sua obra fosse queimada; paradoxalmente, foi esse desejo de invisibilidade que serviu de base para a construção do mito Kafka, pois, ao contrário das vantagens mundanas que são transitórias, ele lhe trouxe a posteridade.
Ao repetir insistentemente que está condenada por uma maldição, Hilda Hilst nada mais faz, pode-se cogitar, que fugir do problema do sucesso e se refugiar no papel mais seguro da ruína, solução que pode não trazer vantagens imediatas, mas cerca sua literatura de sombras que apontam para o futuro. Podemos, quem sabe, inverter os termos da maldição de Potlatch e ver nela um modo que Hilda encontrou para escapar das grandes questões da literatura contemporânea, sendo a maior delas o sucesso e suas armadilhas. Agindo como uma couraça que a protege dos problemas do êxito, cercando-a do mistério necessário para que não seja esquecida em meio ao rebanho cinzento dos escritores fáceis, a maldição de Potlatch pode funcionar, quem sabe, como uma bendição, pois acaba cercando a obra de Hilda de segredos e promessas. Nada disso, no entanto, afeta as qualidades de sua obra, o que só vem provar a literatura, se é grande, e a de Hilda Hilst é, perdura além de toda consagração.
(Publicado no livro “Inventário das Sombras”, de 1999)