Por Chico Marques
John Fante é, juntamente com Nathanael West e Jack Kerouac, um dos romancistas que melhor souberam desvendar a alma do Estado da California. Em romances como “Pergunte Ao Pó” e “Sonhos de Bunker Hill” temos seu alter-ego Arturo Bandini seguindo sua rota errante em busca de uma leveza existencial inatingível e de um lugar ao sol – que, por mais que brilhe intensamente e para todos, não o acolhe jamais.
Admiradores desses romances tendem a subestimar o romance de estréia de John Fante, “Espere A Primavera, Bandini”, que relata a difícil infância de Arturo no gélido Estado do Colorado. É um erro. A infância e a adolescência de Arturo Bandini durante a Grande Depressão são fundamentais para a compreensão do personagem, repletas de momentos terríveis e de passagens belas e desconcertantes.
As dificuldades por que passava a família de Bandini eram rigorosamente as mesmas vividas pela família de Fante. Ambos tinham uma mãe calorosa e um pai italiano, pedreiro, beberrão, jogador inveterado, encrenqueiro e brigão, e só pensavam em deixar para trás aquela cidade gelada no meio de lugar nenhum e se mandar para a ensolarada, mas enganosa, Califórnia.
“Espere A Primavera, Bandini” foi escrito em 1938, um ano antes de “Pergunte ao Pó”, e é uma história tão intensa e verdadeira que chega a machucar. Às vezes irreverente, às vezes mal-humorado, outras vezes arrogante, Arturo admira o pai mesmo diante das circunstâncias da pobreza, respeita a mãe pela sua pureza de intenções, e se depara com sentimentos até então nunca experimentados, em situações que, mal sabe ele, provocam-lhe um amadurecimento precoce.
Enquanto a maioria dos autores donos de obras tão intensamente autobiográficas primam mais pelo estilo do que pela imaginação, Fante segue pela contramão, com uma literatura ao mesmo tempo realista e mágica que nunca cansa de buscar vida onde a vida quase inexiste.
Há momentos absolutamente sublimes no livro.
Quando Arturo sente que vai viver um Natal paupérrimo quando seu pai some de casa, largando mulher e filhos numa situação desesperadora, ele pede perdão – a Deus, ou a quem quer que possa estar ouvindo sua prece silenciosa – por ter surrupiado tempos atrás uma moeda da bolsa de sua mãe e ido ao cinema escondido de todos.
Quando Arturo e seu irmão August veem seu pai, que tinha sumido de casa há alguns dias, acompanhado de Effie Hildgarde, uma das mulheres mais ricas e bonitas da cidade, ele entra em desespero. Tenta dissuadir seu irmão mais novo a não contar para a mãe o que viram. Desesperado com a mágoa que a revelação pode causar a sua mãe, implora para que fique calado. Mas August, que é muito religioso e inflexível, acha que deve contar a ela o que viu. Arturo perde as estribeiras e soqueia seu irmão. Mesmo apanhando, August mantém-se inflexível. Ri do irmão enquanto é espancado por ele. A cena se estende por várias páginas, é de uma riqueza descritiva ímpar e termina numa espécie de brincadeira entre os dois, apesar de todo o sangue derramado na neve. Convenhamos: só um grande escritor seria capaz de criar algo com tamanha grandeza.
Depois da virada do século, John Fante começou finalmente a ter o reconhecimento artístico merecido nos Estados Unidos.
Já não era sem tempo.
Boulder, a cidade do Estado do Colorado que ele deixou para trás nos anos 1920, o considera um herói local e organiza constantemente leituras de sua obra.
O Los Angeles Times afirmou não muito tempo atrás que “John Fante é o santo padroeiro da literatura de Los Angeles”.
Isso depois do New York Times ter decretado que “ou você desconhece a obra de John Fante ou a acha inesquecível. Ele não é o tipo de autor que deixa espaço para algo intermediário”.
PS: Poucos lembram, mas “Wait Until Spring, Bandini” virou filme em 1989 pelas mãos do talentoso roteirista e diretor belga Dominique Deruddere, com produção de Francis Ford Coppola e do American Zoetrope Studios. Passou nos cinemas brasileiros com o título “Vivendo na América”, e trazia a sempre exuberante Ornella Muti como Maria, a mãe, e Joe Mantegna como Svevo, o pai, além de Faye Dunaway como a milionária Effie e o então menino Michael Bacall como Arturo. É um belíssimo filme – ainda que fiel e reverente demais ao romance, o que nem sempre é uma virtude. Nesse sentido, pode-se dizer que a adaptação que Robert Towne fez para “Pergunte Ao Pó” em 2006 foi bem mais ousada e corajosa.
Prefácio escrito por Charles Bukowski para “Pergunte ao Pó” de John Fante:
Eu era um jovem, passando fome, bebendo e tentando ser escritor. Fazia a maior parte das minhas leituras na Biblioteca Pública de Los Angeles, no centro da cidade, e nada do que eu lia tinha a ver comigo ou com as ruas ou com as pessoas que me cercavam. Parecia que todo mundo estava fazendo jogos de palavras, que aqueles que não diziam quase nada eram considerados excelentes escritores.
O que escreviam era uma mistura de sutileza, técnica e forma, e era lido, ensinado, ingerido e passado adiante. Era uma tramóia confortável, uma Cultura-de-Palavra muito elegante e cuidadosa. Era preciso voltar aos escritores russos pré-Revolução para se encontrar alguma aventura, alguma paixão.
Havia exceções, mas estas exceções eram tão poucas que a leitura delas era feita rapidamente, e você ficava a olhar para fileiras e fileiras de livros extremamente chatos com séculos para se recorrer, com todas as suas vantagens, os modernos não chegavam a ser muito bons.
Eu tirava livro após livro das estantes. Por que ninguém dizia algo? Por que ninguém gritava?
Tentei outras salas na biblioteca. A seção de religião era apenas um vasto pantanal… para mim. Entrei na de filosofia.
Encontrei alguns alemães amargos que me animaram por algum tempo, depois passou.
Tentei matemática, mas a alta matemática era exatamente como a religião: me escapava. O que eu precisava parecia estar ausente por toda a parte. Tentei geologia e a achei curiosa mas, no fim, não sustentável.
Encontrei alguns livros sobre cirurgia e gostei deles: as palavras eram novas e as ilustrações maravilhosas. Apreciei e memorizei particularmente a operação do cólon.
Então larguei a cirurgia e voltei à grande sala dos escritores de romances e de contos (quando havia suficiente vinho barato para beber eu nunca ia à biblioteca).
Uma biblioteca era um bom lugar para se estar quando você não tinha nada para comer ou beber e a senhoria estava à procura de você e do aluguel atrasado. Na biblioteca, pelo menos, você podia usar os toaletes. Eu via um bom número de outros vagabundos ali, a maioria dormindo sobre os livros.
Eu continuava dando voltas na grande sala, tirando livros das estantes, lendo algumas linhas, algumas páginas, e depois os colocando de volta.
Então, um dia, puxei um livro e o abri, e lá estava. Fiquei parado de pé por um momento, lendo. Como um homem que encontrara ouro no lixão da cidade, levei o livro para uma mesa. As linhas rolavam facilmente através da página, havia um fluxo. Cada linha tinha sua própria energia e era seguida por outra como ela. A própria substância de cada linha dava uma forma à página, uma sensação de algo entalhado ali. E aqui, finalmente, estava um homem que não tinha medo da emoção. O humor e a dor entrelaçados a uma soberba simplicidade. O começo daquele livro foi um milagre arrebatador e enorme para mim.
Eu tinha um cartão da biblioteca. Tomei o livro emprestado, levei-o ao meu quarto, subi à minha cama e o li, e sabia, muito antes de terminar, que aqui estava um homem que havia desenvolvido uma maneira peculiar de escrever. O livro era Pergunte ao pó e o autor era John Fante. Ele se tornaria uma influência no meu modo de escrever para a vida toda.
Terminei Pergunte ao pó e procurei outros livros de Fante na biblioteca. Encontrei dois: Dago Red e Espere a primavera, Bandini. Eram da mesma ordem, escritos das entranhas e do coração. Sim, Fante causou um importante efeito sobre mim. Não muito depois de ler esses livros, comecei a viver com uma mulher.
Era uma bêbada pior do que eu e tínhamos discussões violentas, e frequentemente eu berrava para ela: “Não me chame de filho da puta! Eu sou Bandini, Arturo Bandini!” Fante foi meu deus e eu sabia que os deuses deviam ser deixados em paz, a gente não batia nas suas portas.
No entanto, eu gostava de adivinhar onde ele teria morado em Angel’s Flight e achava possível que ainda morasse lá. Quase todo dia eu passava por lá e pensava: é esta a janela pela qual Camilla se arrastou? E é aquela a porta do hotel? É aquele o saguão? Nunca fiquei sabendo.
Trinta e nove anos depois, reli Pergunte ao pó. Vale dizer, eu o reli neste ano e ele ainda está de pé, como as outras obras de Fante, mas esta é a minha favorita, porque foi minha primeira descoberta da mágica. Existem outros livros além de Dago Red e Espere a primavera, Bandini. São Full of Life e The Brotherhood of the Grape.
E, neste momento, Fante tem um romance em andamento, Sonhos de Bunker Hill.
Por meio de outras circunstâncias, finalmente conheci o autor este ano. Existe muito mais na história de John Fante. É uma história de uma terrível sorte e de um terrível destino e de uma rara coragem natural. Algum dia será contada, mas acho que ele não quer que eu a conte aqui. Mas deixem-me dizer que o jeito de suas palavras e o jeito do seu jeito são o mesmo: forte, bom e caloroso.
E basta. Agora este livro é seu.