Cantadas Literárias

Malhação do Judas Carioca

Postado por Simão Pessoa

Por João Antônio

A tradição, bem portuguesa, foi adotada no Brasil colonial e é coisa bem nossa. Teve momentos mais gloriosos em que a polícia permitia usar nomes de políticos, delegados ou ministros. E, apesar do progresso, nos subúrbios cariocas, a malhação de Judas continua viva, firme, principalmente para a molecada e a rapaziada do Largo da Candeia, da Barreira do Vasco e do jacarezinho. E já que nomes importantes não podem ser malhados, a moçada fere, desce o pau e mete fogo nos amores, futricas, fofocas e mazelas dos vizinhos e das vizinhas.

Nem chuva renitente, nem camburão de Polícia, nem abaixo-assinado impedem a malhação do Judas no Sábado de Aleluia nos lugares em que o costume é tradição viva na Zona Norte. A rapaziada trata de remexer, com espírito e humor, muita vez expresso em palavrões e licenciosidade, a vida e o amargo da vida suburbana. Por uma coincidência fotogênica, o Rio esquecido, pobre, ignorante salta para os corpos dos Judas.

Assim, mazelas de maridos traídos, prostituição levada ou flagrada dentro dos lares, desmandos do jogo do bicho, falsas virgens virtuosa e homossexuais confessos ou incubados vêm a público nos cartazes, enquanto a molecada miúda, numerosa, peitos nus debaixo de sol ou de chuva e paus na mão, aguarda o momento da malhação e do atear fogo.

Silêncio no Largo da Cancela

A molecadinha e a rapaziada de São Cristovão, no Largo da Cancela, assistem, constrangidos, decepcionados, ali por volta das nove e meia de Sábado da Aleluia, à chegada encabuladora do camburão que limpa, rapa, retira seus judas já tradicionais do Largo e obriga a moçada a catar outros tantos.

Mesmo tangida pela polícia que age em nome da ordem e do respeito, a garotada está disposta a continuar a tradição e arrasta seus judas e testamentos (inscrições) para a Rua da Liberdade, ruela próxima ao Largo da Cancela. São seis, sete judas e acabam executados a pau, palavrada e fogo na marca das dez da manhã, que ninguém espera o meio-dia para o pau comer.

Mãos gordas, zelosas e temerosas impedem na ruela chamada da Liberdade que os filhos menores – pelo menos os menorzinhos de seis anos – participem do movimento que ocupa todos e envolve donos de botequim, homens que escrevem jogo do bicho, meninos, mocinhas, rapazes e velhos curiosos, bisbilhoteiros, sorridentes ou cooperantes.

O pequeno mundo da Rua da Liberdade, seu ambiente de futricadas, fofocas, pinimbas e amores vai sendo passado a limpo, sem falsas peias e maiores delongas pela crônica dos testamentos pendurada em cartazes nos judas. A vida enxerida de Gracinha, perigosa de Carioca e matreira do escrevente de bicho Arerê vão sendo expostas em português de morro, palavras licenciosas e objetivas. Os tipos mais populares são ridicularizados, os mais calados também. Poucos vão escapar do testamento. Desmandos do bicheiro, da esposa infiel, do gabola, do mulherengo, do falso tímido e do homossexual dissimulado pelo bom comportamento são pintados cruamente.

A Zona Norte acontece em preto-e-branco. Rapazes e mocinhas, íntimos da vida suburbana, deliciam-se com os ditos infamantes, mães, pais e esposas atingidos estão fulos e garotos, às vintenas, mesmo sem entender, fazem um clima de polvorosa na rua comprida e sem largura, ruela, que é a da Liberdade, em São Cristovão.

Judas pendurados e enforcados botam as mágoas do povo pra fora e ouvem os xingos do motorista de caminhão que não pode atravessar a rua com tanto movimento.

Gentes mais antigas comentam que, de ano para ano, o judas está mais fraco, a polícia dá em cima, procurando evitar que eles ofendam as autoridades. Antigamente era melhor, segundo uma velha senhora que segura o seu neto para que ele não caia na gandaia da Rua da Liberdade:

– A rapaziada mexia com todo mundo e com gente grossa. Uma vez, me lembro, fizeram um judas para o Venâncio Veloso, das Casas da Banha e outro para o delegado Padilha. Hoje ninguém mais mexe com eles, só fica bulindo é com o pessoal daqui mesmo, principalmente com a vida das mocinhas e das mulheres.

E, enquanto o Largo da Carioca não ferve, vigiado pelas idas e vindas do camburão, a Rua da Liberdade explode com palavrões e rumor. E pára o movimento doméstico de manhã de sábado. Mães vêm para as janelas, a rapaziada de bermudas sai à rua e até o ponto do bicho tem de parar.

Alguns testamentos são praticamente escritos com palavrões claros e francos. Outros, mais leves, como o do Arerê, que se vê obrigado, em pessoa, a assistir a malhação do seu próprio judas.

Testamento do Arerê

1. O meu pique (corrida) para o Oto.
2. A minha calça para o João.
3. Minha blusa para o Luís Orlando.
4. Minha cabeça para o Miguel.
5. Minha casa no morro para o Carioca.
6. Meu sapato para o Luisinho.

Já o Testamento da Glorinha, pregado a uma parede, tem uns quinze itens e dedica partes íntimas do corpo a este e aquele e se refere a certas qualidades de forma aspada, como “donzela”, “virgindade”, “porta-seios” e por aí assim. O Testamento de Carioca revela dois homossexuais incubados e sem coragem para a confissão.

Massacre na Barreira do Vasco

Pendurado a um poste defronte a uma companhia de armazéns gerais, um judas-mulher. Fantasia de mulher, bolsinha de couro e o resto do componente de colares, embelecos, penduricalhos. Expões palavrões infamantes e xingos, onde as palavras “pegadeira” e “piranha” são as mais leves. E tome humor carioca.

Mulheres faveladas se aproximam, enfiam-se no meio da molecada magra e maltrapilha, fuxicam a vida íntima das vizinhas, conhecidas, desconhecidas e rivais. Sem quê, nem para quê, os palavrões voam. Um ressentimento.

– Eu queria pegar quem escreveu isso.

Mas são dez e meia e a malhação começa. Depois das pauladas, a cabo de vassoura, rápido começa o atear fogo. O movimento da Rua Ricardo Machado é interrompido, debaixo de pau. A bolsa de couro da judas-mulher voa longe e alguém, disfarçadamente, a carrega, a manda, a enruste, no meio da confusão. À porta do botequim, charlando e rindo, homens bebericam cachaça e cerveja.

Fogo, pau e água

Muita coisa leva o povo da Zona Norte a viver no passado. Até o judas de Sábado de Aleluia, que já foi melhor, mais intenso, a rapaziada terrível mexendo com todo mundo, criando confusão, prisões, brigas e até mortes. Estava disposta a tudo nas inscrições. Na palavra dos antigos:

– Só não chamavam de santo porque o cara não era mesmo.

De resto, a vida pública, principalmente a polícia, os atacadistas e a política eram achincalhadas. O esculacho colocou vários governadores e delegados, enquanto judas, sentados em latrinas sórdidas ou de penico na mão.

Mas é a garotada do Jacarezinho, unida e conluiada, a que mantém mais aceso o judas, mesmo em tempos de bom comportamento. Eles aparecem muito enfeitados e grotescos, além de muitos nas ruas General Belfort, Dr. Manoel Cotrim e, especialmente, num quegê, o da Rua Teixeira Leite.

Sete letreiros viperinos, vexatórios, francos e chulos enfeitam as paredes de uma colchoaria. Mais de trinta moleques enfiam-se assanhados na multidão de curiosos, atiçadores ou basbaques. Os homens, na maioria pouco atingidos, riem do ataque ferino e acachapante contra as mulheres nos testamentos – faladeiras, futriqueiras, “cunhadas”, “madrinhas”, “titias”, “comadres”, infiéis, virgens falsas, viciadas em jogo do bicho e, principalmente, as “candinhas”. É o mundo pobre e de baixo nível dos subúrbios cariocas gritando em preto-e-branco.

Ninguém escapa. Sentado numa latrina em plena calçada, o judas da Rua Teixeira Leite tem às suas costas os sete letreiros que descarnam, sem restrições e economias, os traços mais vivos das intimidades da região. Praticamente tudo é mexido e remexido:

“Alô, dona Candinha, que bicho deu? Os Imortais do Bairro; Carlinhos do Mar; Wilson dos Vidros; Os Convencidos; A Colchoaria do Diabo; As Perfeições Furadas; Restaurante Chic: a pedida é alta e a comida é pouca”.

Sentado na latrina, o judas tem uma inscrição no peito, que diz mandado por quem e a que veio: “Homenagem aos comerciantes de Jacaré”.

A cena é ridícula, grotesca, mas tensa. A tal dona Candinha das inscrições do judas vem passando, vestido comprido e fora de moda, vermelho, mexendo-se barriguda, atarracada, baixota de óculos e cabelos tingidos de acaju. Não tem como fugir, vê-se obrigada a ler o cartaz. Fula nas pernas cambaias e em sapatos de saltos comidos, atrás dos óculos, ela procura, atentamente, informações sobre o autor da infâmia. Um gaiato querendo acalmá-la, recomenda:

– Calma, dona Candinha. Aqui em jacaré tem muitas Candinhas. Pode ser que não seja a senhora. Não leve a rapaziada a mal.

De mãos na cintura, a portuguesa dona do boteco abespinha-se com a molecada que dança em frente ao judas. Os rapazes gozam da situação. Letras grandes, está no testamento do judas:

“Alô, pessoal! Façam suas apostas. Qual dos dois bares vai falir primeiro: Dona Maria ou seu Antônio?”

Logo depois, o testamento, alfinetando a vida da vizinhança:

1. Meu cabelo para o Jorge Gordo.
2. Um de meus olhos para o Ricardo que é cego e só falta a bengala.
3. A camisa para o Galileu que só tem uma.
4. A gravata para o malandro do Jacaré, o Isaltino Kibon.
5. A calça para o Zé Mota, o novo vagabundo do bairro.

Dona Maria, portuguesa do botequim, zangada, braços cruzados no peito, vê o judas sendo queimado e se vinga. Fala para as vizinhas lavadeiras:

– Deixa estar. Com estas fagulhas, que tem roupa no varal está estrepada.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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