Por Joaquim Ferreira dos Santos
O garoto devia ter uns 10 anos e nessa idade hoje eles já estão cansados de saber de onde vêm os bebês. Queria mais. Queria o etéreo, o mistério para além da biologia profana. ‘Tio”, ele perguntou lá do fundo da sala, num encontro que tive com estudantes, “tio, de onde nascem as crônicas?”
Qualquer pessoa que abre uma tela de computador com a obrigação de em seguida enchê-la de palavrinhas sabe que essa é a pergunta basilar. De onde vem o baião, de onde nasce o mote que deflagra a criação? Eu vi, em 1996, na minha frente, Carlos Heitor Cony escrevendo uma crônica de tamanho médio, de qualidade alta, em não mais que 15 minutos. Acho que Cony sabe a resposta.
Eu, modesto aprendiz de feiticeiro, temeroso de oferecer abstrações ao garoto pragmático, recitei como única pista um caderno azul que carrego há décadas. Existe. Nele fui jogando palavras extravagantes, pensamentos curiosos, frases de efeito, pára-choques de caminhão e tudo o mais que pulsasse letras. Eu esperava que, num dia de crise, uma palavra daquelas, friccionada com as enzimas do crânio, provocasse a faísca, fizesse jorrar aquele filetinho de sangue que escorre da testa de todo autor quando ele encontra o assunto. Sabia que um dia ele me faria sentido. Ei-lo.
É íntimo demais e só vai declarado aqui porque li, ou um professor das antigas me disse, que o cronicar é de exposição do autor, um gênero de bermudas em que o dono delas, geralmente um tímido-assanhado, radicaliza o processo e parte para o desnudamento total diante da platéia.
Abrir o caderninho azul é um striptease de cabeça. Confesso que em algum momento da vida anotei nele, para reflexões que me poderiam inspirar mais adiante, tanto uma pergunta do barbudo Enéas num debate de televisão (“Lula, o que você pretende fazer com a bauxita refratária?”), como a máxima do filósofo africano Hardy Har-Har (“Não vai dar certo, Lippy!”). O juiz de futebol Mario Vianna também está perpetuado: “No meu dicionário não tem o verbo modéstia à parte.”
Jamais me acudi diretamente dessas sabedorias alheias, mas sabe-se lá como essas coisas funcionam nas engrenagens internas. São frases ora recolhidas em orações católicas (“Zombam da fé, os insensatos”, do hino “Queremos Deus”), ora em hinos de times de futebol (“Ninguém nos vence em vibração”, do Esporte Clube Bahia), ora em panfletos da Madame Cecília (“Resolve problemas de impotência e safra da lavoura”). Um caos de despropósitos. O locutor da Rádio Relógio propagandeia barato que “Depois do sol, quem ilumina seu lar é a Galeria Silvestre” e, em seguida, antes de dar a hora exata, filosofa que “Cada minuto da vida é um milagre que não se repete”. O argentino Hector Babenco explica por que ficou no Brasil: “Só aqui tem Fanta Uva.”
Comecei a registrar esse garimpo desconexo depois de ter lido, nas entrevistas da Paris Review, que dúzias de grandes autores faziam o mesmo. Anotavam o que lhes parecia curioso, engraçado, estimulante, misterioso – e entregavam à depuração de suas almas. É uma espécie de agenda de elucubrações, uma malhação intelectual, tranco que se dá quando o raciocínio não pega. Sabe-se que meia dúzia de supinos turbinam o bíceps. Mas o que fazem com a gente as palavras que jogamos para dentro?
Não sei, por exemplo, o que fiz exatamente com a informação registrada do filme “Aviso aos navegantes”. Está anotada no meu caderninho. Oscarito, falso médico, diagnostica numa paciente “um desequilíbrio no vago-simpático” e lhe receita “bigamatinil propitelamina composta de efeito fulminante”. Um disparate desses não move uma linha no texto de ninguém. Mas, delícia das delícias, sugere aos feixes nervosos do intelecto o tom de por onde você quer trafegar.
Uma crônica pode nascer de uma palavra, eu disse ao garoto enquanto desfolhava o caderninho azul, e dei como exemplo um texto surgido apenas com a intenção, o resto era detalhe, de encher seis mil toques em louvor à existência entre nós, e não deixar que morresse jamais, a palavra borogodó. Torço para que o mesmo não aconteça com bucentauro, berdamerda, nenúfar, alaúza, tremebunda, obnubilar, nefelibata, buteiro, perrengue, parlapatão, peripatético e outras palavras de muitas sílabas que fui anotando na medida em que elas desapareciam dos livros. Costumo recomendar palavras curtas a quem pede conselhos para escrever bem. Mas, de vez em quando, acho que a proparoxítona cai redonda, pedra de gelo que dá choque térmico e muda o ritmo de um texto telegráfico.
O caderninho azul que ora abro em público é uma tremenda bandeira.
Tem pílulas da ética de Don Corleone (“fique perto dos amigos e muito mais dos inimigos”), máximas cínicas do jornalismo (“a função do bom editor é separar o joio do trigo, e publicar o joio”), mandamentos da masculinidade por John Wayne (“fale com calma, fale devagar e não diga muita coisa”). Qualquer dia desses vou mandá-lo para a minha analista freudiana. Alguns escrevem diários, outros anotam frases soltas. Se existe quem leia a vida das pessoas na borra do café, imagine consultando um caderninho desses.
Anotei nele que “Escrevo para ficar louro e de olhos azuis”, declaração de um escritor perguntado sobre a razão de tanto esforço solitário com as palavras. Pode ser daí, por vaidade, que nasçam as crônicas. Anotei também a sabedoria de Tom Jobim (“O prazo é a grande musa inspiradora”). Pode ser daí, da necessidade mais prática. Donde quer que nasçam esses bucentauros de levezas que às vezes parecem querer dizer outra coisa, como o nome estranho da gôndola dos duques de Veneza, as crônicas só querem mesmo é navegar com o leitor até este porto final e desejar que ele tenha se divertido com a viagem.