Por Joaquim Ferreira dos Santos
O jornalismo é uma profissão deveras divertida e neste momento ele está me levando pelo braço, mais exatamente é Fernando Sabino, de blusão branco, manga curta, quem está me levando pelo braço até o velhote rabugento, um sujeito que se conserva assim meio que por farra, meio que por angústia sincera, e está sozinho com um copo de uísque na mesa.
“Ô Rubem, fala aqui pro repórter do Jornal do Brasil o que você acha da personalidade do aniversariante”, provocou Sabino.
Rubem Braga, que já tinha se deixado fazer de pele a noite inteira pelos amigos, virou-se para o humilde repórter JB que ora vos fala, tudo isso tendo acontecido no janeiro da graça de 1984, e mandou que este eterno foca atrás das sardinhas da informação escrevesse no bloquinho.
“Anota aí”, disse com a voz mais grave do seu repertório de assustar o próximo. “O aniversariante é um doido varrido.”
O jornalismo tem dessas coisas e aqui, mais uma vez em genuflexo, só posso lhe ser grato por me oferecer tamanha cena. Lá estava eu reportariando para o Jornal do Brasil a festa dos 60 anos do psicanalista-doido Hélio Pellegrino, na casa de sua mulher, Maria Urbana Pentagna, no Jardim Botânico. Ao fundo, uma plêiade de astros da literatura dançando “ô balancê balancê” da Gal. Entra na roda, morena, vem ver.
Maria Julieta Drummond de Andrade havia acabado de chegar de Buenos Aires e era “cantada” por Alfredo Machado para publicar na Record. Ferreira Gullar criticava o governador Brizola que, num golpe, encerrara a carreira de seu “Vargas”, no João Caetano. Otto Lara Rezende, de barba branca, me contava que o psicanalista-doido não queria dar festa nenhuma, mas que ele o convencera roubando-lhe o próprio jargão profissional.
“Você está querendo fugir de quê, Hélio? Fuja para a frente, deixe os outros gostarem de você. Faça 60 anos com altivez, ora. Até parece que você não é analisado.”
No final do mês, o patrão no JB ainda me pingaria algum na conta bancária como paga por eu ter passado um punhado de horas degustando pasta de siri com Flávio Rangel e relatado ao grande público depois. Um salário razoável para bebericar vinho branco com Wilson Figueiredo, ver Dina Sfat jogando os cabelos para trás na pista de dança (“adorei o Shakespeare em catalão que assisti na Espanha”) e ouvir Pellegrino resenhar os sessentinha para Sabino.
“Valeu a pena. Investi na amizade, no capital erótico e não me arrependo. A salvação está em você se dar, se aplicar aos outros. A única coisa não perdoável é não fazer. É preciso vencer esse encaramujamento narcísico, essa tendência à uteração, ao suicídio. Ser curioso. Você só se conhece conhecendo o mundo. Somos um fio desse imenso tapete cósmico. Mas haja saco!”
Fernando Sabino deu uma bolsa a tiracolo para o aniversariante e, prestes a fazer também seus 60 em outubro, contava uma história acontecida com o marechal Juarez Távora. Convidado por militares para uma conspiração aos 60 anos, Távora negara-se. Aos 60, justificava, fazia-se tudo às claras. Jogo aberto. Sabino, mineiro típico dos sentimentos retraídos, concordava ali na roda do quintal. Estava alegre. Achava que os 60 iam jogar ele e o amigo Hélio para fora das sombras das montanhas de Belo Horizonte. Finalmente o sol do Rio abriria luz sobre suas cabeças.
Não foi, como se sabe, o que aconteceu. Pellegrino morreu logo em 1988 e Sabino, depois do mal compreendido livro sobre Zélia Cardoso, trancafiou-se em casa, assustadoramente mineiro. Nada disso importa, xô baixo-astral. Hoje é o dia de comemorar os 20 anos daquela festa de arromba dos literatos mineiros e a minha sorte jornalístico-existencial de encontrar por perto Braga e Sabino, autores das crônicas que me fizeram de alguma maneira caminhar para estar lá e sem as quais eu definitivamente não estaria aqui – se é que me faço claro e não deixo a emoção turvar a homenagem.
Lamente-se daquela reunião no Jardim Botânico apenas a ausência no salão de Paulo Mendes Campos, o mais ansioso de todos os quatro amigos mineiros. Ele começou a bebemorar a data por volta das dez da manhã e não pôde prolongar os serviços pela noite. Perdeu. “Ser brotinho”, ele escreveu num texto célebre, “é ter horror de gente morta.” Na festa, meninos serelepes curtindo um com a cara do outro, eles ainda estavam todos na voz ativa daquela crônica. Ser brotinho é lançar fogo pelos olhos. E assim o faziam.
“Só um louco procura o psicanalista Hélio Pellegrino”, dizia, segundo Ferreira Gullar na festa, o letreiro anunciando os serviços do honorável médico na Belo Horizonte nos anos 40.
Hélio, aproveitando que o LP de Gal tinha dado um tempo na vitrola, mandava ver no meio da roda. “A pedra, o vento, a luz alteada / o salso mar etéreo, o grito / do mergulhão, sob o infinito azul: / Deus não me deve nada”, recitava anunciando o livro que estava para lançar.
Nunca mais vi esses doidos geniais ao vivo, embora suas palavrinhas não tenham parado de pulsar por baixo de todas estas que acabaram de ser digitadas, e tenho certeza de que assim pelos tempos e tempos será. Imagino todos reunidos agora numa daquelas nuvens de branco leitoso que Braga achava ser o do lombinho no almoço mineiro e o da primavera quando batiam as quatro e meia da tarde. Tagarelam na nuvem como faziam na festa, zoando da própria situação. Paulo Mendes Campos, um dos grandes humoristas brasileiros, certamente já reescreveu o “Ser brotinho” e breve alguém psicografará o novo texto, agora intitulado “Ser mortinho”.
“Deus sabe o que faz”, “afinal descansou”, “é preciso a gente se conformar”, deve estar dizendo o recém-chegado Sabino, morto dias atrás, citando o chorrilho de clichês de condolências que relatou num dos verbetes de Lugares-comuns, um de seus livros mais divertidos. “O que consola é saber que ele está melhor que todos nós.”
Saí da festa e escrevi a reportagem que me pedia a pauta do JB. Mas, de tanto ler Sabino, eu desconfiava. Aquela noite dava uma crônica sobre a amizade, o bom humor e os delicados mistérios da existência.