Por Antonio Maria
Vi-a passar. Comecei a vê-la de longe, quando despontou na rua. Conheci-lhe a blusa, mas achei diferente a maneira de caminhar. Aquele andar mole, de quem não vai para lugar nenhum. Talvez não fosse o caso, no entanto; as pessoas, quando não estão felizes, ou quando estão infelizes, por mais que andem, parece que não vão para lugar nenhum.
Pensei que fosse outra pessoa. Há muitas blusas da mesma cor e muita gente que anda sem saber das pernas. Sem ir para lugar nenhum. Mas o cabelo também era dela – ou melhor, era dela de tarde –, puxado a escova, de um jeito qualquer, sempre às pressas, às vezes com desgosto.
Era ela, sim, e veio andando. Pensei em deixá-la passar e só dizer-lhe uma coisa, se ela me visse e me demorasse os olhos. Mas eu não havia sentido aquele aperto no coração, que as pessoas sentem, quando têm culpa, ódio ou amor, na pessoa que passa. Eu estava inocente, nela. E procurei mesmo os seus olhos, durante todo o tempo em que veio vindo.
Um simples sentimento amistoso se apossava de mim e me impelia ao gesto tristemente fraternal de abrir-lhe os braços, com aquela naturalidade dos amigos que nunca se sofreram… E dizer as palavras esparsas, sem conteúdo, sem raízes – sem a dor necessária que há no fundo de todas as palavras de quem ama.
As interjeições idiotas dos amigos banais, quando se encontram: ah! eh! ih! oh! uh! Eu senti, deploravelmente, que seria capaz de todas as interjeições idiotas, de todas as vogais com “h”, de todos os beijos desprezíveis que os amigos trocam nas bochechas. Então procurei, às pressas, aflitamente, dentro de mim, um pouco de dor – fosse ela feita de ciúme, de despeito, de vaidade (fosse do que fosse), e não encontrei. A gente quando precisa das coisas não encontra nunca!
E ela estava cada vez mais perto. Já podia ver-lhe os olhos, os mesmos e belos de sempre. Mas tão sem destino quanto o andar. Por que ao menos isso não me comovia? Não havia tempo, mas, naquele minuto que em minha mente era espaçoso e demorado, revi as minhas angústias passadas. Todas tão intensas e verdadeiras. Todas esquecidas, agora, como se eu tivesse uma memória nova, sem marcas ainda, e se a antiga apenas lhe tivesse contado o que com ela se passara. Exatamente isso: eu me lembrava, mas as lembranças, embora tão nítidas, não me faziam bem nem mal.
Ah, que desgosto de mim!
Enfim, quando passou à minha frente, disse-lhe o nome: Fulana! Parou, subitamente, como se recebesse nas costas uma flechada de índio. E não parou, apenas. Imobilizou-se, como se imobilizavam os personagens de Carne, nos Vosifeurs du sor.
Depois é que voltou o rosto e me fitou nos olhos. Eu olhei sua boca, porque era sempre em sua boca que as coisas aconteciam. Qualquer acontecimento de sua alma (de triste ou alegre) foi sempre na boca que transpareceu. Como uma criança. As crianças têm a boca mais comovente que os olhos. Aquele breve fremir do lábio inferior, que precede o choro da criança, é, a meu ver, o momento mais grave do ser humano. A gente não respeita e o chama de “fazer beicinho”…
E essa moça, que vinha vindo, guardou isso, do tempo em que foi criança.
Seus olhos sabem esconder, omitir, mentir. A boca não sabe. E foi sempre por ela que me guiei. Sempre diante dela, quando fremiu, que desci, pesadamente, a todo o meu sofrimento.
Vi-a, agora, e não sentia nada. Que sem jeito iria ficar, se ela chorasse.
Estendi-lhe os braços, amistosamente. Perguntei-lhe, sem querer, pela saúde… Como é melancólico chegar-se à paz tão perfeita de perguntar-se pela saúde da pessoa que se amou. Os amantes não cogitam dos detalhes como saúde. Fiz todas as coisas banais, dos amigos.
Beijei-lhe as bochechas. Ofereci-lhe as minhas (não aceitou), como se fosse um general francês. Segurei-lhe os ombros com as mãos. Mexi-lhe o cabelo, e, à medida que mais amistoso me mostrava, mais me perdia de mim mesmo. Agora, sim, me perdia e não conseguia fitar o seu olhar duro no meu, como que a me cobrar aquele ar magoado que sempre tive, quando…
Eu a habituara à ciumosa aflição dos meus olhos.
E agora? O que restava, agora? Se pudesse pedir que seguisse. Que me deixasse em paz, com a minha repugnante serenidade de gente livre e forte.
Seu olhar mendigo, nos meus olhos. Sua boca de criança, cujo ricto eu gostaria de desmanchar com as mãos porque sentia que, dali em diante, começaria a sofrer.
E ela entendeu. Passou, na boca e nos olhos, o punho da camisa. Como se acordasse, tirou-me de sua frente com uma das mãos, e, sem dizer nada, foi andando, com um andar que, então, não era só infeliz, mas trôpego e indefensável, como o dos bêbedos. Fiquei a espiá-la, de longe, até desaparecer entre as outras pessoas. Ia batendo os ombros contra os outros. De vez em quando, era olhada com insolência pelos homens que olham as moças bonitas.
Uns lhe diziam coisas, que deviam ser as mesmas sordices que os homens dizem, há milênios, quando passam pelas mulheres bonitas. Eu a espiava de longe, sem sentimento nenhum… Ou com um leve sentimento de proteção, que poderia transformar-se num gesto de defesa ou ajuda. Eu a espiava, apenas, vago e desatento. Quanto mais depressa desaparecesse, melhor para mim, que não tenho coração.
(Crônica publicada no jornal Última Hora em 18 de janeiro de 1960)